Provisional Figures. O grito dos esquecidos de Great Yarmouth

Provisional Figures. O grito dos esquecidos de Great Yarmouth


Depois do Reino Unido e do Porto, chega a Lisboa, a fechar a temporada do Teatro Maria Matos, “Provisional Figures”. Um espetáculo de Marco Martins com não atores a partir de Great Yarmouth, vila costeira do Norfolk inglês onde acabaram os sonhos de muitos emigrantes portugueses


O grito vem sem som, é só expressão. “O som do pássaro, não faças, faz só a respiração”, pede Marco Martins a Sérgio, um dos não atores de “Provisional Figures”, num ensaio antes da estreia no Teatro Maria Matos, onde o espetáculo que montou em Great Yarmouth chega, depois da estreia no Reino Unido e de passar pelo Porto. Sérgio, como todos eles, corrige os acertos à primeira. O texto está sabido, como só podia. Personagens são eles. Os nove não atores que compõem o elenco de “Provisional Figures” – título roubado à designação estatística dada aos imigrantes com situação indefinida ou provisória que trabalham no Reino Unido. 

No caso, em Great Yarmouth. Há dois anos que ouvimos Marco Martins falar sobre isto. Um lugar do Norfolk inglês que algures no pico da crise era descrito aos portugueses que partiam em rodos de um país que deixara de ter lugar para todos como “o Algarve inglês”. Certo seria descrevê-lo como um Algarve pós–apocalíptico, o Algarve depois de deixar de ser, o Algarve onde já não há hotéis, há hotéis feitos casernas para desespero de quem chega de fora com o sonho de uma vida melhor. Pessoas? Números. Ou animais?

A partir de um convite de Renzo Barsotti, do Centro de Criação para o Teatro e Artes da Rua, Marco Martins chegava há dois anos a Great Yarmouth à procura dos trabalhadores portugueses que faziam a mão-de-obra das fábricas de transformação alimentar que, desaparecido o turismo, se foram transformando numa das principais indústrias de uma região que sofria, de resto, com uma das mais altas taxas de desemprego do Reino Unido. Mas o que encontrou não foi apenas isso. “A partir de certa altura comecei a interessar-me muito por aquele lugar, pela energia daquele lugar e pelas suas várias camadas. É um lugar muito particular, de quase degredo, um fim do mundo. Integrar ingleses no espetáculo permitiu- -me falar também sobre o lugar e sobre o que juntou todas aquelas pessoas naquele lugar.” 

The less you know

O que foi percebendo ao longo dos quase dois anos de trabalho em Great Yarmouth, nas mais de 200 entrevistas que fez durante a pesquisa, foi que a comunidade portuguesa, que à época fazia a mão-de-obra de grandes fábricas onde se matavam e desmembravam perus para embalar, não se misturava com os locais. “Os ingleses não têm grande noção do que é a imigração portuguesa ali, não existe qualquer relação entre as duas comunidades. Aliás, no referendo, aquela zona teve 70% de votação pró-Brexit. O mais fácil seria explorar essa oposição.” Mas Marco Martins não foi por aí. Em vez do que os dividia, escolheu o caminho do que os unia.  

Daí foi “Provisional Figures” dar a este palco em passadeira, com o público sentado dos dois lados. Como numa catwalk para um desfile de histórias de desgraça diretamente de Great Yarmouth. Visto daqui, o lugar onde a esperança vai morrer. 

Richard, ex-trabalhador da construção, um dos ingleses que Marco Martins escolheu para integrar o elenco deste espetáculo, repete o único conselho que o pai, talhante, lhe deu na vida inteira (“não sejas talhante” – e que ele percebeu da primeira vez em que, chegado o Natal, o trabalho com que ajudava no talho era depenar perus mortos) e dará voz ao manifesto para um novo começo: “No to virtuosity, no to transformations and magic and might believe. No to the heroic, no to the anti-heroic, no to the seduction of the spectator… Life is an artwork and the artwork is life. The more we know, the less we understand, the better it is.” 

Cheiro a merda e sangue

Manual de instruções para o que virá a seguir, por esta passerelle para histórias de humanos, de animais, de humanos feitos animais e a pergunta recuperada de “Masculin Féminin” sobre o que é o centro do mundo, afinal. O amor, que é o que salva, do lugar em que, se existe, não o vimos passar? O amor, sim, respondia Paul a Madeleine no filme de Godard.  

Já aqui… aqui matam-se perus. 

Aqui matam-se perus de dia, dorme- -se em quartos para quatro à noite. Aqui, onde se vagueia à procura de descontos em supermercados, também se rouba depois comida dos frigoríficos nos hotéis-dormitórios. Dorme-se em quartos para quatro e quatro metros quadrados são o suficiente, escreve Gonçalo M. Tavares no conjunto de textos- -ensaio que intitulou “Europa”, escritos a pedido de Marco Martins a propósito do espetáculo. De espetáculo, aqui só o da tragédia de Victoria, ex-miss Great Yarmouth que um dia escolheu o anúncio errado e perdeu o casting do qual Victoria Beckham sairia como a última das Spice Girls. “Se eu tivesse sido uma Spice Girl, seria a Poor Spice, ou a Psycho Spice. Agora sou só a Old Spice.”

Segundos para um descanso que nunca durará mais do que isso, no que acontece quando se assiste a um espetáculo com um elenco exclusivamente de não atores que não são mais do que eles próprios, com as suas histórias. E vem a de Carmo. Maria do Carmo, que recorda que um dia foi responder a um anúncio do “Correio da Manhã” ao Marquês de Pombal, em Lisboa. Que o que lhe disseram foi que era para irem embalar fiambre para uma fábrica no Algarve inglês. 

“Fizemos análises ao sangue, mostrámos as mãos, os dentes. E que nos telefonavam passados três dias. E assim foi. Passados outros dois, chegámos a Great Yarmouth às oito da noite. Éramos 35, fomos distribuídos por pensões. A mim calhou-me a White House, com 23 quartos. Roubava-se comida dos frigoríficos. Apanhámos o autocarro às 20 para as cinco da manhã, chegámos à fábrica ao quarto para as seis, estava um tradutor à nossa espera porque éramos todos portugueses. Deram-nos umas botas, um overall, uma touca, um capacete, seguimos por um corredor que ao fundo tinha umas cortinas plásticas, de onde vinha um cheiro intenso a merda e a sangue. Abrimos as cortinas e estavam perus pendurados a deitar sangue. A mim levaram-me a um sítio para tirar as tripas. Vi homens grandes, musculados, a chorar. Não aguentavam o trabalho. Eu acabei por lá ficar oito anos.”

Até ao dia em que deixou de poder trabalhar. O maior problema, dizia uma mulher que não está no espetáculo mas que Marco Martins manteve no início, é quando se aceita tudo sem falar. Quando se aguenta tudo para se poder continuar a trabalhar. 

“I don’t know how to explain this. It’s too much for me to explain.”

“A vida é isto? A vida é isto?”

A vida é isto, em ecos: agarrar no peru, choque elétrico, cortar a garganta, tirar as penas, separar a pele do pescoço, furar o cu, tirar as tripas, tirar os pulmões, o fígado, o coração. Os tomates, “para a China, para fazer afrodisíaco”. Tirar os papos. Cortar as asas, cortar as pernas. Cortar peitos. Embalar para os supermercados em packs de quatro.   

The big bouncy castle

“Enjoy your work”, de novo em ecos, e se o palco era uma passerelle, passará a tapete de linha de montagem. Desfile ao som de Charles Chaplin em “Chanson Incompréhensible”, de “Tempos Modernos”, e isto não para, não há como parar uma linha de montagem. Virá então Ivan, esloveno, ex-cozinheiro, para um espetáculo em que todos são ex-qualquer coisa, explicar-nos como se cozinha um peru, o melhor peru. Virá a série dos anúncios das famílias obscena e insuportavelmente felizes. Amor não é um anúncio, amor é a história de como se arranca da carne, com lixa, um nome de uma tatuagem.

A Maria do Carmo sobrará lavar as mãos, mas lavá-las em sangue. Como a Bob, que em tempos trabalhou como guarda de uma reserva natural, sobrará na desgraça morrer como morre um cisne. “A pobreza é inimiga do tempo”, avisara no início, para terminar a contar que, depois de tudo, teve dois filhos, que comprou um grande castelo insuflável em que os filhos daqueles que podiam pagar se divertiam na praia. Que quando os seus filhos cresceram passaram a divertir-se também, com as outras crianças, no seu “big bouncy castle”. 

E entra em palco o insuflável. Vermelho, azul e branco, com estrelas – será, como as histórias destes nove não atores que chegam ao Maria Matos de Great Yarmouth, real? E toca Patti Smith, “Smells Like Teen Spirit”, e afinal o "big bouncy castle" – depois de tudo, só "big bouncy castle" – é ficção. Fim.

PROVISIONAL FIGURES / Great Yarmouth BY MARCO MARTINS from Provisional Figures GY on Vimeo.

Provisional Figures. Um espetáculo de Marco Martins a partir de uma ideia original de Renzo Barsotti. Com os habitantes de Great Yarmouth Ana Moreira, Maria do Carmo e Sérgio Cardoso de Pinho (Portugal), Ivan Ammon (Eslovénia), Pedro Cassimo (Moçambique), Peter Dewar, Richard Raymond, Robert Elliot e Victoria River (Inglaterra) 

Onde Teatro Maria Matos, Lisboa. Quando Ter-dom/ 21h30, até 04/07. Preço €12