Não tem dúvidas de que os migrantes e refugiados estão a ser usados como “bodes expiatórios” pelo falhanço da austeridade pós-crise económico-financeira de 2007-2008 e alerta para a existência de uma “crise da hospitalidade”. Mehdi Aliou, sociólogo, especialista em migrações, e professor de Ciências Políticas na Universidade Internacional de Rabat (o Sciences Po marroquino), considera que “os europeus eram mentalmente mais abertos às outras sociedades do que são hoje”, produto do “medo de perder o que têm” no pós-crise. Por causa desse medo e falta de hospitalidade, não descarta a possibilidade da União Europeia se desintegrar. Entretanto, diz, os governos europeus adotam os discursos e espírito da extrema-direita para lidarem com a imigração.
A Europa pode estar à beira da desintegração com a crise da imigração?
Não é por causa da crise de imigração, mas por causa da crise de hospitalidade. É por isso que a desintegração é possível. A austeridade na Europa tornou-se um problema por causa da globalização, que, por sua vez, fez com que as mentalidades mudassem. As pessoas ficaram com medo de perder o que têm. Esta fobia foi canalizada contra os imigrantes. É como se fosse uma colonização das mentalidades – uma nova. Os europeus eram mentalmente mais abertos às outras sociedades do que são hoje. A Europa é hoje muito rica, muito democrática e com Estado de direito, compreende que a escravatura e a colonização foram crimes e aprendeu com o que aconteceu com o nazismo. Isto é um paradoxo, porque, depois, tem medo do outro. Há uma onda reacionária que tem fechado a porta da hospitalidade. Não um a um, porque os povos europeus são muito hospitaleiros nessas situações, mas têm medo que essa generosidade possa implodir com a ordem social europeia, com o Estado Social e roubar os empregos. A pobreza está a aumentar na Europa e a responsabilidade nunca é das políticas, mas dos “outros”.
Os refugiados são o bode expiatório.
Exatamente.
A Europa continua sem ter uma estratégia para lidar com a imigração?
Não existe qualquer estratégia. Aconteceu e nada está a ser feito. Pode-se ser negro e português, negro e presidente de um país, muçulmano e prefeito de Londres, gostar de cuscuz e ser francês, etc. Vivemos com este multiculturalismo, mas, por vezes, dão-se crispações que nos cegam. Não estão a conseguir pensar numa estratégia global. Espanha precisa de imigrantes, mas Bruxelas disse-lhe para não abrir as suas portas. “Se abrirem as portas e lhes derem um visto Schengen, vão-se transformar num país de trânsito”, dizem-lhes. É muito importante reafirmar que há 15 ou 20 anos Espanha e Itália eram considerados países de trânsito, como Marrocos ou Líbia hoje, mas por outro lado não é verdade. Eram os verdadeiros destinos da imigração.
O ministro do Interior do novo governo espanhol disse quer quer retirar as vedações em Ceuta e Melila.
Ele não disse isso. O que ele disse foi que retirava os picos no topo da vedação que magoam as pessoas para serem vedações humanas.
Só isso?
Só isso. No território marroquino temos imensas vedações e entre elas existem terras de ninguém onde a Guardia Civil tem o direito de lá estar, como se se tratasse de colonização. Marrocos não diz nada por causa do comércio e por receber benefícios de governo para governo, de Madrid para Rabat, por muita da população que vive nos territórios espanhóis ser marroquina. Comércio basicamente.
Como tem reagido o governo marroquino à crise de imigração?
Em Marrocos temos duas coisas diferentes: a monarquia e o governo. O monarca, Mohammed VI, é o chefe de Estado, mas o governo é quem delineia as políticas. O rei, por vezes, transmite orientações ao governo, mas não é como em Espanha ou Reino Unido, porque não somos uma verdadeira democracia, mas caminhamos para tal. Temos um governo islâmico que fez uma coligação com os nacionalistas – que para mim são direita radical. São muito capitalistas, xenófobos e até um pouco racistas, especialmente contra os cristãos. Não é um bom governo. O rei tem uma mente mais aberta que o governo.
Que tipo de políticas tem o governo aplicado?
Em 2014, o rei decidiu alterar radicalmente a política marroquina para a imigração. Antes disso, tínhamos uma lei contra os imigrantes que colocava muitas pessoas nas prisões e que criminalizava quem ajudava os imigrantes. Dez anos depois dessa lei entrar em vigor, tivemos uma instituição de direitos humanos marroquina – porque somos um Estado de Direito, se bem que ainda não nos moldes da Europa – que publicou um relatório sobre os resultados destas políticas e depois disso o rei decidiu alterar a política. O rei quis alterar, mas o governo não quis, então decidiu impor ao governo essa mudança.
O governo está a aplicar a política do rei?
Não tem alternativa. Não é como uma democracia. A política baseia-se na legalização de todos o imigrantes e agora Marrocos vai dar direitos a mais de 60 mil, como o direito à assistência médica. A partir desse momento as pessoas, que são muito pobres, passarão a poder ir ao médico gratuitamente. Não apenas antibióticos, mas também tratamentos para o cancro e etc.
Marrocos poderá transformar-se na principal rota de imigração para a Europa quando esta reforçar o controlo da Frontex no Mediterrâneo?
Não me parece. Marrocos nunca foi um dos principais países de trânsito. Ao invés, os marroquinos são os primeiros a irem para a Europa e, antes da crise económica de 2007, iam principalmente para dois países: Itália e Espanha. Nesta altura, o primeiro migrante a morrer no Mediterrâneo tinha nacionalidade marroquina. A maioria dos migrantes era marroquina e agora os migrantes vêm de países próximos de Marrocos, como Nigéria e Senegal. Marrocos era um país de imigração ilegal à semelhança do México, porque na Europa querem trabalhadores marroquinos por serem mão de obra barata. Com a crise económica, Espanha encerrou as fronteiras.
As pessoas que tentam atravessar a fronteira são marroquinas?
Não desde a crise económica. Agora, são de outras nacionalidades os que tentam chegar à Europa via Marrocos, mas sabem que a rota está fechada. Essa é a razão para o número de estrangeiros em Marrocos estar a aumentar. É preciso entender que os marroquinos foram os primeiros não-europeus a irem para a Europa. Em conjunto com os turcos, temos as duas maiores nacionalidades imigrantes na Europa.
Os líderes europeus vão reunir-se para decidirem qual a estratégia europeia para a imigração. Sabemos que Donald Tusk, presidente do Conselho Europeu, sugeriu o reforço da Frontex e a criação de “plataformas regionais de desembarque” fora das fronteiras europeias. O que acha desta estratégia?
É uma loucura. Não vejo qualquer diferença com o que Trump está a fazer, apenas que é mais vulgar. É exatamente a mesma mentalidade e espírito que está a levar à separação de famílias de forma muito violenta e se o nosso país não o pode fazer por ser um Estado de Direito, outro país o fará. A Alemanha está a falar com o Sudão e Eritreia – onde há um genocídio – para ver se podem construir um campo para refugiados somalis. É loucura. É contra os valores europeus. Se o quiserem fazer terão de contornar a ONU e o Conselho dos Direitos Humanos.
A medida foi inicialmente sugerida pelo primeiro-ministro húngaro, Viktor Órban, em 2016. Acha que os governos europeus estão a abraçar as ideias dos governos de extrema-direita europeus?
Ainda não, mas assemelham-se cada vez mais à extrema-direita. Demais. Pegam nas mesmas palavras e espírito, mas ainda não temos governos de extrema-direita em Espanha, França e Alemanha com as mesmas políticas. Têm é um discurso semelhante e isso é muito perigoso. Há 20 anos era tabu falar-se como falam, mas agora não há problema. Veja-se o que se passa nos EUA com Trump. Quando é normal falar-se desta forma, então temos o pior. Órban é louco, Trump é louco e não quero ver outro líder assim [como Sarkozy, presidente de França entre 2007 e 2012] no governo francês, senão vamos entrar em guerra. Este tipo de separação cria animosidade e o outro lado do Mediterrâneo não está calmo. Temos terrorismo, islamismo; temos imensos problemas. Precisamos de apoio.
A UE anunciou que iria investir 40 mil milhões de euros no Norte de África para ajudar a desenvolver e impedir a imigração. Como vê esta iniciativa?
Um Plano Marshall, porque não? Precisamos de mais cooperação, livre circulação e investimento, mas o Plano Marshall foi para países com infraestruturas destruídas pelas bombas. Nós não precisamos de reconstruir um país, mas construí-lo. Somos sociedades e civilizações muito antigas, mas Estados modernos muito recentes. Não acho que a solução seja apenas económica. Precisamos de reconstruir a confiança entre as civilizações e do apoio de Estados de Direito para avançarmos com a liberdade e democracia. Isso é o que precisamos e o que a Europa estava a fazer há alguns anos atrás.
Culpa a Europa pelo estado em que o Norte de África se encontra nos dias de hoje com a intervenção militar da NATO na Líbia?
Culpo a Europa por querer manter o sistema e por não o querer mudar. Com um sistema diferente não beneficiaria tanto ou talvez tivesse novos concorrentes. Não se mudou a mentalidade de dominação do Norte para o Sul e quando se vê a extrema-direita, como a Frente Nacional, tão forte, não sei se o podemos mudar.
Os últimos números da ONU dizem que os pedidos de asilo desceram em 2017. Acha que poderá ser uma tendência para os próximos anos?
Não, não irá descer. Quando se tem desenvolvimento tem-se mobilidade e quando se tem mobilidade há mais migração internacional. A transição não é fácil. Com o desenvolvimento vêm as estradas, os portos, os aeroportos, etc., e mais pessoas têm dinheiro. Este tipo de desenvolvimento é complicado por as pessoas terem as infraestruturas e dinheiro, mas não viverem como querem. Então, querem sair do país. Há muito tempo que se associa a imigração às pessoas muito pobres. É verdade que alguns imigrantes são pessoas pobres, mas a maioria pertence à classe média.
O que se pode fazer para travar o avanço do racismo e extrema-direita?
Para mim começa por se respeitar os Direitos Humanos. O artigo 13.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos diz que qualquer pessoa tem o direito de sair e voltar a um país, ou seja, livre circulação. Sou contra os vistos e contra as fronteiras. É preciso discutir os direitos das pessoas que entram num país a lá permanecerem. É preciso haver mais informação sobre os Direitos Humanos. As pessoas falam constantemente deles, mas raramente os leram. A livre circulação é um direito humano.