Descobriu a cirurgia cardíaca nos anos 70 em Joanesburgo: antes de enveredar pela especialidade já tinha operado 15 doentes com facadas no peito. Se não fosse África do Sul, provavelmente tinha ficado como cirurgião geral. Um convite trouxe-o de volta a Portugal, para fundar o centro de cirurgia cardiotorácica hoje integrado no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. Manuel Antunes completa 70 anos a 20 de julho e abandona o SNS ao fim de três décadas de exclusividade, sem uma facadinha no casamento que lhe possam apontar, assegura. Só vai pensar no depois quando chegar o dia, mas promete não ficar parado. No próximo dia 16, o círculo de amigos do centro oferece-lhe um jantar de homenagem no Convento de S. Francisco, em Coimbra. Além da Medicina, geriu o seu serviço com personalidade – o atual ministro da Saúde chamou-lhe um dia a “manuelantunização”. É algo que o cirurgião interiorizou cedo: “Uma pessoa não chega a lado nenhum a andar a passo.”
A semanas de se reformar do SNS, qual é o seu estado de espírito?
Para quem dedicou mais de 30 anos a esta mulher que é o SNS – disse-o noutro dia ao ministro da Saúde porque isto verdadeiramente é como se fosse um segundo casamento – é complicado. Estive aqui em exclusivo desde dezembro de 1987 e claro que tenho pena de deixar. Se não fosse a lei determinar que o serviço público cessa aos 70 anos, uma lei publicada pela primeira vez a 5 de janeiro 1929, não pensava em sair já.
É uma lei que já não faz sentido?
Acho que não. Não digo que se deva obrigar as pessoas a ficar… Mas em 1929 quase ninguém atingia os 70 anos e em 2018 praticamente toda a gente ultrapassa os 80. Esta porta vai abrir-se para me mandar embora mas não faço conta de ficar parado.
Já sabe o que vai fazer?
Não. Também o disse ao ministro: casei com esta mulher e nunca fiz nem o pecadinho de olhar para outra.
Nunca trabalhou no privado?
Nunca ninguém me viu ir ao privado, tirando uma vez para ser operado. Decidi que até ao dia dos 70 anos não vou pensar nisso. No dia 20 de julho darei a última lição no hospital e depois logo se vê. Mas é uma sensação de estômago vazio.
Sente-se maltratado pelo Estado?
Não, a lei é assim. Se me sentisse maltratado já tinha saído. Se tivesse optado pelo privado estaria muito melhor em termos financeiros do que estive aqui.
Alguma vez fez essas contas?
Nem é preciso. O meu ordenado aqui é o ordenado de funcionário público, nem mais nem menos. Ganho mais porque trabalho 70 a 75 horas por semana há 30 anos, trabalho que é naturalmente pago como suplementar, o que praticamente duplica o salário. Mas faço 12 a 14 cirurgias por semana, uma dessas cirurgias lá fora cobria esse ordenado.
Como se mantém esse ritmo?
Não tem nada de especial… Não percebo estas teorias, agora já passaram os funcionários públicos todos para as 35 horas, querem passar os do privado. Venho para o hospital às 8 e saio às 20h, às vezes chego mais tarde, às vezes mais cedo. Faço aqui em média uma noite a cada duas semanas, o que dá mais 12 horas. E depois passo cá três ou quatro horas ao sábado e uma ou duas horas ao domingo.
E a sua “primeira” mulher nunca o chateou?
Claro que o tempo que passei aqui não passei com a minha família. Tenho três filhos, quatro netos, passei menos tempo com eles do que se só trabalhasse 35 horas por semana. Se tivesse sido engenheiro de pontes se calhar só trabalhava as 35 horas, mas tive esta vida. Prejudiquei a minha família mas penso que beneficiei os doentes. Sempre tomei isto como uma missão.
Pela sua forma de ser ou também por entender que estava a dar o exemplo?
Penso que mais por mim, mas no subconsciente esperando que os outros à minha volta sigam esse exemplo. Tenho mais voluntários a vir do que a querer ir embora. Quando vejo esta grande comoção para que diminuam o número de horas de trabalho… Acho que o nosso país não tem estrutura para isso.
Não tem estrutura porquê?
Já somos os menos produtivos da UE.
Trabalhar mais horas pode não significar produzir mais.
Se uma pessoa trabalhar 70 horas vai produzir mais do que se fizer 40 horas. A questão, claro, também é conseguir que as pessoas trabalhem com mais alegria e dedicação. Fazemos 2000 cirurgias por ano, o que dá um rácio de cirurgias por cirurgião maior do que em qualquer serviço. Se vai perguntar às pessoas se não se sentem cansadas às vezes, claro que sim. Eu também sinto. Durmo um bocadinho mais e no dia seguinte acordo fresco para continuar.
É a dormir que carrega baterias?
Sim. Depois do hospital ainda trabalho em média duas horas em casa na minha atividade pedagógica e editorial.
Portanto ainda se fecha no escritório.
Para não me afastar tanto fico na cozinha (risos). Tiro a toalha da mesa e ponho o computador.
Deita-se tarde?
Também não sou desses. Funciono bem se dormir sete a oito horas e às vezes no fim de semana durmo mais um bocado. É uma questão de hábito.
Já em miúdo era assim?
Sempre fui muito ativo, ninguém me vê parado um minuto. Mas isto tem a ver depois com o caminho que a pessoa quer seguir. Uma pessoa não chega a lado nenhum a andar a passo.
Teve cedo a noção disso?
Desde a primária. Quando fui para a escola o meu pai já me tinha ensinado a ler.
Isso em Lourenço Marques.
Sim, fomos daqui quando eu tinha cinco anos e meio. O meu pai tinha emigrado para ganhar para a família quando eu tinha um ano e meio. Tinha um irmão para nascer que ele só conheceu quatro anos depois quando nos juntámos.
O pai fazia o quê?
Aqui era motorista. Estávamos em 1948, três anos depois da guerra. A economia era péssima, o trabalho esporádico e ele foi à procura de uma vida melhor. Coincidiu com os grandes movimentos de colonização, em especial em Angola e Moçambique, e ele foi trabalhar como condutor de autocarros da câmara municipal de Lourenço Marques. Trabalhava dia e noite, por turnos. Os da manhã pegavam às 5h e saíam às 11, vinham para a casa, entravam às 19h. No dia seguinte faziam a tarde. Trabalhou muito para dar alguma coisa à família. Tive este exemplo e tenho muito orgulho.
Era bom aluno?
Vou mostrar na minha última aula algumas anotações na minha caderneta em que a professora e o meu pai trocavam mensagens a dizer que podia ser melhor. Não entrei para a escola com título de sobredotado mas sabia-me bem quando passei a estar no quadro de honra.
Era uma escola só para brancos?
Não. O meu colega de carteira era negro e um dos meus grandes amigos do liceu era um contínuo, africano também. Eu ia muito cedo para a escola, falava muito com ele, encorajei-o a estudar à noite e acabou por ser médico. Quando fui para Lourenço Marques ainda havia lugares diferentes nos autocarros, atrás para os negros e à frente para os brancos. Fui em 1954 e isto acaba em 1955.
Como surge a ideia de ser médico?
Muitos dos nossos professores na escola eram médicos. Fui daqui da aldeia – Memória, no distrito de Leiria. Não havia água canalizada, não havia nada. Quando cheguei a Lourenço Marques e bastava carregar num botão para acender-se a vela fiquei impressionado. Rodávamos uma torneira e saía água! Outra novidade era que os serviços camarários tinham um posto médico, gratuito, onde eu fui algumas vezes. Penso que foi do contacto com médicos, na escola e nesse posto, que nasceu essa vontade.
Imaginava-se a ser médico de quê?
Na altura não sabia, era só médico. Só na faculdade é que comecei a pensar na direção cirúrgica, ainda assim cirurgia geral. Fiz o liceu todo em Lourenço Marques e depois a faculdade. No fim do curso concorri como interno para a especialidade de cirurgia geral. Fui colocado em Santa Maria, em Lisboa.
Mas não veio.
A vida seguiu outro caminho. Acabei o curso e a universidade convidou-me para assistente. Era uma universidade nova, o meu curso foi o terceiro. Vivia de professores que viajavam de cá e queriam ter o seu próprio corpo docente. Dois anos depois tive acesso a uma bolsa que me permitia ir fazer um doutoramento, o passo seguinte na carreira académica. Escolhi ir para Joanesburgo, que era ali ao lado, a 550 km por estrada de Lourenço Marques.
Foi a decisão que alterou o curso da sua vida.
A ideia era preparar o doutoramento para vir prestar provas a Lourenço Marques mas isso coincidiu com o 25 de abril. Depois, com a independência de Moçambique em 1975, encerram as fronteiras com África do Sul e eu não pude voltar. Escrevi à universidade, pedi escusa e devolvi o dinheiro da bolsa.
Mas não podia mesmo regressar?
Teria de voar para Portugal e depois para Moçambique, mas iam perguntar-me o que tinha estado a fazer na África do Sul. Fui para lá em janeiro de 1975, no dia 1 de maio ainda vim de comboio visitar a família a Lourenço Marques. A independência aconteceu em junho e em setembro pedi para ir ao batizado de um sobrinho de quem ia ser padrinho e não me deixaram ir, percebi logo que ia haver problemas. Entretanto houve a fuga maciça de retornados, saiu muita gente, os meus pais, a família da minha mulher e deixou de fazer sentido.
Já estava casado então.
Sim, tinha dois filhos. Um nasceu em Lourenço Marques e o outro em Joanesburgo. Não tínhamos muito eco do que se passava em Portugal. O trabalho também já era absorvente, o ritmo intensivo de que falámos há pouco tem a ver muito com a forma como fui moldado naquele sistema de África do Sul, um misto de britânico e americano. Não tendo possibilidade de regressar, deixei o doutoramento de lado e decidi saltar da especialidade de cirurgia geral para cirurgia cardiotorácica e comecei a trabalhar como cirurgião nesta área. Em 14 anos era diretor de serviço. Tive sorte: o meu primeiro professor emigrou para os EUA e o segundo quis ir para a privada.
Ser português não foi um obstáculo?
Precisei de mostrar uma prestação de 200% contra 100% para ganhar o lugar. Concorremos quatro, um desistiu e fomos à entrevista três, dois sul-africanos e eu. O júri da entrevista não eram médicos, naquela altura já não era importante saber o que é que eu sabia sobre cirurgia cardiotorácica. Para diretor de serviço querem saber que tipo de homem é, que capacidade tem para gerir uma equipa. Eram 21 jurados, por exemplo o capelão do hospital, que perguntou se eu, sendo católico, pensava que teria uma tarefa difícil num país eminentemente protestante. Respondi-lhe que isso não interferia no meu trabalho. Mas a primeira pergunta foi: o senhor é português e está na África do Sul há 12 anos. Só eram precisos cinco anos para pedir a nacionalidade, porque é que eu não o tinha feito? Dei a única resposta de que me lembrei: o meu passaporte diz válido para todos os países. “Gostava de saber se algum dos senhores tem um passaporte assim”. Era uma vantagem para o serviço: podia ir a todos os congressos, a todas as reuniões.
Essa seleção pela personalidade era um processo justo ?
Penso que sim. Podia ser o melhor cirurgião do mundo e não ter capacidade de gestão e liderança. Quando concorri a este lugar tinha 37 anos, já tinha experiência clínica, mas de qualquer maneira acabei por ser um dos mais novos diretores de serviço. Tal como quando cheguei cá, fui catedrático antes dos 40 anos. Ainda foram dois anos a negociar porque os Hospitais da Universidade de Coimbra estavam em construção e só queria vir com um novo hospital.
Antes da mudança, como era a vida no Hospital de Joanesburgo?
Trabalhava das 7h às 17h. De cinco em cinco dias fazíamos 24 horas na urgência. Era o maior hospital do hemisfério Sul, fazia um milhão de urgências por ano. Naquele período de 24 horas às vezes operava oito ou nove doentes urgentes. Havia de tudo.
Muita violência?
Violência entre moradores dos bairros pobres. Recebiam à semana e quando chegava à sexta iam para os bares, embebedavam-se, chegavam ao vizinho a pedir um cigarro, o vizinho não dava porque só tinha dois e o gajo metia-lhe uma faca para lhe tirar o cigarro. Não era uma violência diretamente relacionada com a a questão racial, embora naturalmente a forma como viviam estava relacionada com isso. Uma vez passámos dez horas a tentar restabelecer uma anca destroçada por um disparo de uma arma de guerra de um doente. Dois dias depois ele estava a convalescer e de repente aparece lá o bando de salteadores, possivelmente porque ele teria ficado com o saque. O doente escondeu-se debaixo da cama mas mataram-no à frente de toda a gente na enfermaria.
Tem saudades de África?
Vou lá regularmente, faço questão de ir aos sítios onde passei, onde vivi. Vou todos os anos a Moçambique numa missão humanitária cirúrgica, já há 17 anos consecutivos que levo a equipa e mostro sempre os lugares. Não tenho saudades do género de pensar “como gostaria de voltar”. Foram passos que dei sempre voluntariamente. Viemos para cá, adaptámo-nos bem. Claro que como cada uma das estadias nestes lugares correspondeu a diferentes fases da minha vida, naturalmente que penso “como gostaria de ter 20 anos”. Quem não gostaria? Mas não fico agarrado a esses sentimentos.
Foi na África do Sul que descobriu o coração enquanto objeto de trabalho.
O primeiro contacto com o Christiaan Barnard foi ainda antes de ir trabalhar com ele na África do Sul. Tinha de fazer uma dissertação para o curso e escrevi-lhe aí em janeiro de 1967 para ter um testemunho sobre os aspetos morais e éticos da transplantação de órgãos. Quando ele faz o primeiro transplante em dezembro de 1967 mudo o título para transplante de coração. Não havia nada escrito. Eu andava com um gravador daqueles que pareciam a bateria de um carro a entrevistar o secretário da Justiça, um bispo anglicano, um bispo católico… era um tema delicado. O Barnard foi basicamente salvo por um editorial do “Osservatore Romano”, que disse que a Santa Sé não se opunha a nada genuinamente em favor da vida humana. Nessa altura comecei a olhar para o coração, até ali pensava que se a gente tocasse com um dedo no coração de um doente aquilo parava e o doente morria.
Mesmo sendo aluno de Medicina?
Sim. A cirurgia cardíaca moderna começou em 1954. Ainda era algo muito desconhecido. Quando fui para Joanesburgo é que fui tendo contacto com a equipa de cirurgia cardíaca. Disse que era por ali que queria ir e fui admitido.
O que é que o atraiu para o coração?
Conseguir qualquer coisa difícil dá mais prazer do que conseguir alguma coisa à mão de semear. Além disso é um órgão com um caráter filosófico, emocional.
Lembra-se da primeira vez que pegou num coração?
Já não me lembro bem. A primeira vez que entrei numa sala de cirurgia cardíaca foi em agosto de 1976, um ano e meio depois de chegar à África do Sul.
Como é pegar num coração?
Não corta os bifes lá em casa? (risos) Nunca teve coração de porco ou de vaca na mão? É a mesma coisa.
Mas a carne está fria.
Quando transplantamos o coração vem frio. Transportamo-lo num saco com gelo e água gelada. Mas mesmo a operar, trabalhamos com o coração parado e para o parar damos-lhes um soro especial rico em potássio e muito frio: profundimos as artérias coronárias para parar as células e fica frio para preservar a carne. Nessa altura o sangue dos doentes está numa máquina de circulação extracorpórea. Este soro, cardioplegia, anestesia o coração e é dado a 4.ºC, de forma a que o coração atinja 10ºC, mais coisa menos coisa. É a temperatura a que provavelmente está a carne que tem no frigorifico para fazer os bifes para o jantar. Mas voltando à pergunta sobre a primeira vez, não consigo recordar se foi uma emoção muito grande. Como aprendiz de cirurgião geral fiz muita cirurgia sozinho, incluindo facadas no coração.
Na urgência?
Sim. Tinha 15 no meu currículo antes de enveredar pela cirurgia cardiotorácica. Na urgência tínhamos de ser nós a operar e não dava muito tempo: era agarrar, pôr um dedo na ferida…
Tirar a faca…
Sim, só naquela altura. Nunca se tira a faca! Se alguma vez vir alguém com uma faca no peito leve-a para o hospital a correr… a faca pode estar a selar a ferida. Mas diria que a maior emoção que tive nesse aspeto foi já aqui em Portugal no primeiro transplante cardíaco: foi ver o doente a quem acabámos de tirar o coração de peito aberto, com o sítio onde é suposto estar o coração mas sem lá ter nada porque ainda não pusemos o novo. E o doente está vivo.
Ligado à tal máquina.
Sim.
Qual foi o coração mais fora do comum que encontrou?
Só opero corações anormais, ou por doença adquirida ou porque nascem assim. Quando ainda estava em Joanesburgo lembro-me de ver uma ectopia cordis, um bebé com o coração fora do peito. Na nossa evolução temos uma fase a que chamo de panqueca: somos um disco. Esse risco a certa altura enrola-se e sela na linha média. Há pessoas que têm as chamadas hérnias da linha média, que é onde essa união se faz.
Com que idade é que nos enrolamos?
Dias. A mãe ainda nem sabe que está grávida. O coração já tem a forma quase definitiva entre os 28 e os 30 dias.
Nesse caso, houve solução?
Na altura não. Tinha veias e artérias muito mais compridas: se colocássemos dentro do corpo ficava um novelo como um prato de esparguete. Não havia nada a fazer, deixei a natureza seguir e o bebé morreu ao fim de dois ou três dias.
Há uns anos disse uma coisa gira: já abriu mais de 30 mil corações mas nunca encontrou lá o amor.
Foi uma vez que me pediram para glosar sobre o coração e o amor. E lá no meio disse isso e os jornalistas, já se sabe como é, pegaram. Mas não renego porque disse. O amor estará em algum sítio, mas é um conceito metafísico.
A cirurgia cardiotorácica não lhe ensinou então nada sobre o amor?
Não, mas continuo a desenhar o coração como símbolo do amor.
Surpreende-o ver Salvador Sobral, transplantado há menos de um ano, de regresso aos palcos?
Foi extremamente rápido, espero que isso não seja deletério. Nos nossos doentes somos mais comedidos, mas temos montes de doentes com profissões pesadas, mecânicos, agricultores, que conseguem regressar à sua vida. Ele teve uma melhoria dramática, disfarçava bem aquela barriga que tinha pela maneira de vestir e ainda bem que tudo correu bem. Nós aconselhamos os doentes a resguardarem-se das multidões mas ele, pela profissão que tem, precisa disso. Opta pela vida que gosta de fazer.
É um exemplo que dá confiança a quem está à espera de transplante?
Não tenho dúvidas disso. Toda a gente sabe que ele foi transplantado.
Há muito medo quando se está à espera?
Só vão para transplante de coração as pessoas que a gente pensa – ou imagina, porque não há propriamente um aparelho de medição – que não vão sobreviver mais de um ano sem serem transplantadas. As pessoas vêm fisicamente muito incapacitadas e mais do que medo dizem que aquela vida já não dá para viver. Além disso há alguma preparação: as pessoas são seguidas por causa da insuficiência cardíaca e começam cedo a ouvir dizer que qualquer dia será preciso trocar aquele coração por outro. E qualquer dia não vão ser transplantes, vão ser motores elétricos. O coração é uma bomba, duas bombas na realidade, o coração do lado direito e o do lado esquerdo. Há um ano houve a notícia do primeiro coração artificial num recém-nascido. Ainda não é bem isso, é uma bomba paralela ao coração do próprio.
Por agora é usado sobretudo enquanto se aguarda o transplante.
Sim. Um coração artificial será tirar o coração do doente, deitá-lo fora e o doente ficar com duas bombas elétricas. Já foi feito e não tenho dúvidas de que é este o caminho, mas hoje ainda há dois problemas. Por um lado, os motores elétricos gastam muita energia… os doentes têm de andar com uma mochila ou com um cinto com baterias e depois carregar à noite. Mas é como os carros elétricos: começaram por só dar para 50 km e agora já dá para 200 km. O outro problema é que o sangue, ao contactar com superfícies estranhas, transforma-se em coágulos, que podem embolizar para o cérebro e dar AVC. Com uma bomba elétrica todo o sangue está em contacto com uma superfície estranha. Mas isto há de mudar.
Como?
Modificando essas superfícies para serem compatíveis com o sangue. Hoje é possível pensar em fazer culturas de células do próprio indivíduo para cobrir toda a superfície. Imagino que isto passe a ser prática comum dentro de duas décadas.
E um homem com uma coração elétrico continuará a ser humano, a mesma pessoa?
Hoje a morte cerebral é que define o fim da vida, o cérebro é que nos comanda não é o coração. Quando comecei pensava-se de outra maneira. A nossa característica está no nosso material genético e no nosso cérebro, diferente em cada pessoa. Não estou a ver a transplantação do cérebro ou o cérebro a ser substituído por uma máquina. Agora o coração é uma bomba, uma dupla bomba. Pode perfeitamente ser substituído e não transforma o indivíduo.
O tempo que a tecnologia demora a equiparar a natureza reforça as suas convicções religiosas?
A tecnologia leva tempo. Hoje as pilhas do pacemaker têm três centímetros, lembro-me de ver doentes com baterias externas do tamanho das de um carro. O coração consegue fazer isso sozinho mas temos de nos sentar à mesa, também não somos autónomos. As plantas são: têm ar e luz e fazem a fotossíntese.
O Centro de Cirurgia Cardiotorácica que veio fundar nos HUC, hoje no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, é o seu maior legado?
Creio que sim. Um dos fatores que me convenceu a vir de África do Sul foi vir criar um novo serviço. Havia um setor no hospital destinado à cirurgia cardiotorácica capaz de tratar 250 doentes por ano. Mal cheguei disse que tínhamos de fazer 400 ou 500 para as necessidades da população da zona centro e ficaram um pouco embasbacados. Hoje vemos 2000 doentes, de todo o país. Ao final do ano estávamos assoberbados e tivemos de construir um novo edifício.
Acompanhou as obras.
Sim, todas as quintas reunia com os construtores. Normalmente um serviço vai-se fazer e quando se chega lá é que se vê como ficou. Nós escolhemos tudo.
Teria sido possível hoje?
Hoje também se fazem coisas novas. E para a coisa sair do conceito para o papel não foi imediato. Basicamente foi dizer que um hospital que tinha sido inaugurado há 15 anos já não dava e era preciso um novo edifício… O desenho foi feito por nós, as portas estão no sítio onde eu e os meus colegas achámos que deviam estar e sem custar mais. Isto foi adjudicado por 10 mil contos e foi inaugurado precisamente no dia em que terminavam os 500 dias do prazo da obra e não foi inaugurado com uma fita para depois continuarem os trabalhos. Foi inaugurado connosco a operar de manhã nestas instalações e à tarde com o primeiro-ministro a vir cá. Depois eu formei uns e os uns formaram os outros. Portanto não é só um legado físico.
Foram o primeiro centro de responsabilidade integrada do SNS, um conceito de gestão com mais autonomia que ainda não está generalizado.
Sim, desde dezembro de 1998. Houve outras experiências, mas muitas das prerrogativas dependem de quem está ali ao lado no edifício principal porque passam por uma delegação de competências.
Têm um orçamento autónomo?
A lei diz que sim, na prática não sei. É autónomo mas tão autónomo como é o orçamento do hospital no SNS. Isto é feito de cima para baixo. O ministro da Saúde sabe que tem tanto para o ano, distribui pelas regiões, que distribuem pelos hospitais. Teríamos direito a um orçamento autónomo e que depois poderíamos gerir à vontade, dentro das leis, não podemos contratar de qualquer maneira porque é preciso fazer concursos. Hoje em dia nem nós estamos tão independentes do hospital como devíamos estar nem o hospital está tão independente do ministério como devia estar.
É um dos problemas do SNS?
Acho que é. Acho que o senhor ministro não faz a mínima ideia daquilo que o hospital necessita a cada momento tal como o conselho de administração não faz a mínima ideia se a Maria ou o Manel estiveram aqui a trabalhar o dia inteiro como deviam estar. Se estiveram sabem porque agora há o sensor biométrico, mas não sabem se produziram ou não produziram. Só quem está no local é que sabe e por isso essa descentralização de poder era essencial.
Tem havido alguma turbulência no SNS, com críticas à falta de meios e à interferência das Finanças.
Alguns discursos que ouvimos são politicamente motivados mas independentemente da inclinação política percebe-se que o país passou por um período de bancarrota. Quem quiser dizer que é preciso mais 50% de orçamento para a saúde que me diga onde vai buscá-lo. Vamos fechar 50 escolas primárias, 20 escolas secundárias, tiramos à educação? São quatro rubricas os principais gastadores: educação, saúde, segurança social e a lei e ordem, as forças de segurança.
Não concorda com a ideia de que o SNS está subfinanciado?
Em qualquer um destes ramos vamos estar sempre subfinanciados porque a nossa economia não é a da Alemanha. Estaremos tanto mais subfinanciados quanto mais pobre for o nosso PIB e a produtividade dos portugueses. Podemos cortar um bocadinho nas Forças Armadas, se calhar podemos, mas isso não vai resolver o problema. Ajuda num ano ou dois. Mas podemos fazer melhor com o dinheiro que temos na saúde. Continua a haver muito desperdício.
No tempo da troika falava-se de gorduras.
O livro que escrevi (editado no ano 2000) tinha o título “A Doença da Saúde: SNS, Ineficiência e Desperdício”. Esses dois pecados continuam a existir e muito.
Um exemplo?
Reutilizamos no nosso serviço muitas coisas que noutros sítios vão para o lixo. Dispositivos de uso único que esterilizamos numa central própria. É muito mais fácil deitar para o lixo do que ter de lavar, esfregar, ver ao microscópio se não tem impurezas, embalar. O meu pessoal tem de fazer esse trabalho todo e aceitou fazê-lo. Outro exemplo é a distribuição de trabalho. Se me perguntar quantas horas o médico A passa na sala de operações, o enfermeiro A na enfermaria, eu não sei: o primeiro disponível vai para lá. Ao trabalharmos o dobro de horas poupamos logo numa coisa: o tempo de passagem de turno.
Compensa o dinheiro em horas extra?
Hoje são pagas praticamente ao valor das horas normais, não é por aí. Precisavam de ter o dobro das pessoas para fazer o que fazemos.
Mas como convenceu os profissionais a aceitar isso? E os sindicatos?
Durante muito tempo os sindicatos andavam aqui à volta e hoje já ninguém aqui no serviço lhes liga. E qualquer pessoa que não esteja bem pede transferência de serviço. Penso que as pessoas sabem que trabalham num serviço de excelência e que é reconhecido por isso. Qualquer jogador de futebol português gostaria de jogar no Real Madrid. Quem tem oportunidade de jogar lá não vai sair, só se for o Ronaldo. E diga-se outra coisa: ganhamos o dobro porque trabalhamos o dobro mas eu não estou nos 20 mais bem pagos do hospital.
Nem com os incentivos para a realização de transplantes?
Nós somos 117 funcionários e dão-nos 125 mil euros, dá mil euros em média por pessoa por ano, não chega a 100 euros por pessoa, embora a divisão não seja assim: dividimos por todos mas proporcionalmente ao salário. Um médico e um auxiliar não recebem o mesmo, mas é um aumento de 5% para ambos.
Já chamaram ao seu estilo a “manuelantunização”.
Foi este ministro, antes de ser ministro.
O que é?
É isto. Aos 70 anos continuo a trabalhar 75 horas por semana, 25 noites por ano, a operar 12 doentes por semana, continuo a andar aqui no serviço a subir e descer escadas como se tivesse 50 anos. Foi um método de vida e de trabalho que instituímos aqui e que é diferente na intensidade com que fazemos as coisas. Nesse aspeto, outra das reformas que o SNS vai exigir, se quiser alguma vez ser competitivo, é desfazer – e não quero ser ofensivo – esta concubinagem entre público e privado. Sobretudo nos médicos: o estarem umas horas e irem a correr para o consultório.
A exclusividade devia ser imposta?
O termo adquiriu uma conotação muito suja mas sim, a dedicação plena a um serviço, adequadamente compensada.
Há médicos a desviarem doentes do público para o privado e o contrário?
Se lhe dissesse que não, acreditava? Não tenho nada contra os colegas que trabalham aqui e trabalham fora porque a lei o permite, agora se não fazem aqui as horas que deviam fazer é mau. E se andam a transferir doentes de um lado para o outro, os bons para um lado e os maus para outro, também.
Mas andam?
Eu não posso dizer, mas suspeito que em todos os rebanhos há ovelhas negras. A ocasião é que faz o ladrão.
Como se trava a “concubinagem”?
Em vários países há uma incompatibilidade total. Cheguei a diretor de serviço na África do Sul porque o meu professor quis ir para a clínica privada onde foi ganhar três ou quatro vezes mais, o que eu também ganharia cá se tivesse ido, e não pode continuar.
Ofereceram-lhe?
Para aqui e para outros países.
Nunca hesitou?
Apesar de tudo, aqui estou perto da família. Não sou movido pelo dinheiro. Mas os meus médicos todos estão em exclusividade, os enfermeiros também.
É obrigatório?
Fizemos com que fosse, mais ou menos, mas se algum deles pedir um regime livre não há maneira de impedir. Hoje uma pessoa em dedicação exclusiva recebe mais 40% ou 50% de ordenado.
Porque é que acha que a exclusividade não tem avançado?
Acham que se torna muito caro. No hospital há 20% dos médicos em exclusividade. Se os 100% quisessem, aumentava a massa salarial em 50%. Mas obviamente que não se pretendia isso. Se todos passassem a exclusividade, se calhar 50% ficava na privada, se não a clínica privada desaparecia. E com o apetite que eles andam não vai desaparecer.
Apetite?
Apetite e capacidade financeira para investir. Não tenho absolutamente nada contra a clínica privada. Perguntam-me se agora que saio do SNS pela idade se poderei ir para a clínica privada e se isso não pode parecer estranho. Não percebo porque há de parecer. Como disse no início da nossa conversa, mantive-me fiel a esta mulher durante os 30 anos. No dia em que ela me põe na rua sou livre de olhar para outras.
Como vê propostas mais à esquerda por exemplo para revisão da lei das bases para o fim das PPP?
Não há maneira de transformar a saúde em Portugal em algo totalmente estatizado nos hospitais públicos. Precisávamos do dobro do orçamento. Não se pode pugnar pelo encerramento de todas as empresas para tudo ser público. Bem sei que a saúde deve ser tratada de maneira diferente, mas acho que hoje temos um equilíbrio razoável e basicamente temos de pôr o SNS a funcionar da forma mais competente possível. Já temos um dos melhores serviços de saúde do mundo, foi classificado em 12.º lugar. Tomáramos nós ser a 12.º potência económica. Claro que pode melhorar.
A ideologia tem sido um problema?
Tanto a de esquerda como a de direita. Eu pugno por um SNS forte, competente e que seja capaz de competir com o privado. Hoje não consegue. Os chineses estão aí, as CUFs, têm capacidade económica para criar clínicas privadas de grande qualidade. Coimbra foi recentemente exemplo disso: com a entrada da Idealmed no grupo Luz Saúde e com a compra do hospital privado pela CUF, chegaram cá os grandes fundos internacionais e subitamente chegam cá ao hospital e dizem aos médicos: “precisamos de ti, quanto é que queres ganhar?” Mas se defendemos concorrência, temos é de criar fortalezas do nosso lado para que não se aproveitem das nossas fraquezas.
Os médicos têm de ganhar mais?
Acho que sim. Hoje em litígios em tribunal já se pede um milhão de euros em indemnizações. Eu levo 20 anos a ganhar um milhão de euros, como é que me podiam obrigar a pagar isso? Dito isto, há outras vantagens no público, por exemplo o trabalho em equipa. Não tenho doentes meus, são da equipa. A manuelantunização também é isto. Nenhum médico aqui, e isso pode ser mau ou bom, é verdadeiramente independente. Ao passo que noutros serviços um indivíduo acaba de se tornar especialista e vai perguntar qual é o seu dia de sala de operações, qual é a sua tira – os serviços são tiras do cirurgião. Se as camas estiverem cheias não se pode pôr nas camas de outro cirurgião.
Isso ainda é assim?
Claramente ainda existe. Aqui não. Se a consulta estava mais ou menos pensada para um médico mas ele ainda está a operar vai outro. Toda a gente tem sempre alguma coisa para fazer e se não tem procura, porque há sempre. Foi o que permitiu não termos lista de espera. Quando começámos tínhamos umas centenas de doentes em lista. Neste momento tenho aqui 12 doentes no livro para serem chamados, não chega para toda a semana ainda.
Mas vai ter?
Vão chegando, Deus nunca nos abandonou. Aconteça o que acontecer temos quatro doentes de cirurgia cardíaca todos os dias e três a quatro de cirurgia pulmonar. São sete ou oito doentes por dia. Todos os dias discutimos os doentes do dia seguinte. Nestes 30 anos eu diria que não se perderam 30 vagas para operar.
Como é nos outros hospitais?
Todos os dias se perdem vagas. Este serviço não para a lista nas férias grandes e este este mesmo hospital fecha metade das salas de operações. Porque será? Quando cheguei de África do Sul às vezes ouvia “não temos sangue amanhã para o doente”. Eu respondia “não têm, fabriquem-no”. Arranjem-no. Em muitos sítios há essa vontade: “oxalá que haja falta de sangue que é menos um que a gente opera hoje”. Aqui, se não houver, dá-nos mais trabalho. Chamar um doente de urgência porque o que já estava preparado não pode ser dá mais trabalho, mas chamamos. É este método global de gestão que é diferente. Tem a ver com o facto de sermos um centro integrado mas não só. Aliás, fomos escolhido para centro integrado por termos esta dinâmica. Não é a lei que faz o centro.
Exige que os doentes obesos percam peso.
Temos uma mortalidade reduzida e às vezes dizem que selecionamos doentes, que excluímos obesos. Não é verdade, mas a doença cardíaca coronária está relacionada com a obesidade. Digo muitas vezes ao doente que o que vamos fazer é paliativo, não vamos curar. Se quer ter uma vida longa tem de perder peso. Aquele momento do doente que ontem estava muito bem, hoje sente uma dor no peito e amanhã faz um exame e vê que precisa de uma operação é extremamente traumático e é esse momento que temos de aproveitar. Pode parecer uma obra má, mas é aproveitar a fragilidade para benefício doente.
Os médicos não aproveitam esse momento?
A maior parte dos meus colegas não diz que o doente tem de perder peso, não insiste. “Veja lá se perde peso, veja lá se fuma menos”. Não existe fumar mais ou menos, ou se fuma ou não se fuma.
Mas é porquê?
Inatividade. Eu sei que tenho a faca e queijo na mão. Podia arranjar 2000 doentes que não operámos logo, mandámos para casa para perderem peso com uma dieta rigorosa e vêm ao fim de um mês com menos com 15 quilos, porque é uma dieta rápida. Às vezes digo “mais ginástica nos pés e menos doentes”.
As pessoas não ficam meio enxofradas?
Alguns sim, outros passado quatro semanas sentem-se tão bem que vêm perguntar se ainda precisam de ser operados.
São mais de 30 mil doentes operados no centro desde que começaram. Ficam-lhe muitas histórias?
Digo aos meus colegas para andarem com um caderno porque um dia escrevem muitos romances. Nunca o fiz e depois a memória falha. Esta relação médico/doente, que é algo que aqui conseguimos aprofundar, faz toda a diferença. Os doentes são acordados por nós às 7h30 e estão a ir para o jantar e estão os médicos a fazer mais uma volta à enfermaria. Não se vê isto em muitos lugares.
Teve muitas lições de vida?
Aprendemos muito com os doentes. Temos uma liga de amigos com mais de 5000 associados. Muitos doentes pensam que lhes salvámos a vida mas é justo dizer que alguns não saíram vivos. Apesar de termos uma mortalidade inferior a 1%, quando se operam 2000 doentes por ano, 1% são 20 doentes. Nem tudo o que fazemos salva vidas, mas também há casos em que pensamos que o doente tem poucas chances de viver e isso acontece. Temos muitas mensagens de familiares, muitos quadros que espelham todos estes sentimentos.
Há alguma dessas lembranças que o marque particularmente?
Cito muitas vezes a carta de uma mãe de um moço de 28 anos que morreu e cujo coração transplantámos noutro doente. Escreveu-nos a dizer que aquele filho era parte da vida dela, aquele coração era parte da vida dela e agora batia no peito de outra pessoa. Não queria saber quem é, mas exigia que informássemos essa pessoa que tem de tomar bem conta de um coração que é parte dela. Uma mãe que acaba de perder o filho e escreve isto tem uma força enorme. Ou familiares de pessoas que ficaram aqui e que vêm agradecer-nos na mesma.
Aceita a morte de forma diferente?
Depois destes 40 anos de Medicina vi morrer centenas, milhares de pessoas que passaram pelas minhas mãos ou de colegas. Num dia em que nos morre alguém – as vezes parece que é por séries, morrem doentes em dias seguidos e depois chegam a passar meses – é muito duro. Sinto muito a morte de um doente, fico irritado.
Sente que falhou?
Obviamente que o sinto com uma falha. Uma pessoa olha para trás e discutimos os casos: será que devia ter levado o doente para a operação? Devia ter escolhido outra operação? Quando tomamos uma decisão não podemos julgar-nos pelo resultado final, mas pela maneira como se chegou lá. Há casos em que identificamos onde errámos. Noutros tomámos a decisão certa mas o resultado não foi equivalente.
Algum doente alguma vez lhe pediu para morrer?
Não. Sou contra a eutanásia porque não envolve apenas a pessoa. Temos aqui doentes em fase terminal. Tiramos-lhe o máximo possível a dor. Se isso abreviar um pouco a morte é diferente de dar uma injeção que sabemos que o vai matar. Tenho muitas dúvidas do conceito de alguém que esteja suficientemente bem para dizer de forma reiterada e a diferentes médicos que quer morrer, que era o que dizia a proposta de lei. As histórias que tenho até são diferentes. Uma vez um doente chamou-me e disse-me que tinha uma carta para mim mas para eu só abrir se lhe acontecesse alguma coisa. Disse-lhe “tenha juízo”. A operação correu bem, o doente esteve bem dois dias mas ao terceiro dia fez uma paragem circulatória e não sobreviveu. A carta agradecia-nos a todos, já que não o podia fazer pessoalmente.
Estava preparado para ir.
Sim. Às vezes tenho doentes que dizem estou com tanto medo, “e se eu morrer”… não sou supersticioso em nada mas confesso que tenho superstição dos doentes que são supersticiosos acerca da morte no dia seguinte. Tive outros casos de doentes que estavam tão fixados na morte que morreram mesmo.
E da sua morte, tem medo, para mais com a idade?
Sei que tem de chegar mas estou convencido de que não vai acontecer nos próximos 20 anos. Acredito que há vida depois da morte e espero estar preparado.
Dia 21 de julho, o dia em que não virá, o que vai custar mais?
Vai ser o primeiro dia da minha nova vida. Não sei. Hoje faço menos missões humanitárias do que gostaria de fazer porque a prioridade é o serviço e vou poder passar a fazer mais. No ano passado estivemos na Jordânia e temos uma nova missão a ser planeada para setembro.
Nunca se sentiu em risco?
Nenhum. Claro que pode haver problemas, até pode haver aqui. A Jordânia tem muitos refugiados. Não vemos crianças desnutridas mas é uma miséria diferente, crianças com doenças congénitas que não têm onde se tratar. Cheguei a visitar a Síria há muitos anos e tinham cirurgia de qualidade mas agora as pessoas estão ali. Ver um refugiado que não tem nada na vida, perdeu tudo e enquanto lhe operamos um filho vai comprar-nos uma caixa de chocolates… Estas viagens fazem-me bem espiritualmente, tão bem quanto eu poderei fazer fisicamente.
Saudades do hospital, vai ter?
Espero que me deixem vir cá visitar. A mudança é sempre traumática mas espero que isto continue. Não haverá outro Manuel Antunes mas pode haver outro qualquer melhor ou que com o tempo se torne muito melhor. A vida é progresso. No futebol houve o tempo dos Violinos do Sporting, do Eusébio no Benfica, do Fernando Gomes no Porto. Saíram esses e vieram outros, a equipa não foi campeã no ano seguinte foi dois anos depois.
O dia em que deixar de conseguir operar assusta-o?
Não. Tenho alguém aqui no serviço, só ele sabe quem é, a quem pedi que no dia em que sentisse que não fiz algo bem para me avisar. A gente vai envelhecendo e não tem a noção disso. Quem é atreito a beber nunca sabe quando está a ficar bêbado, pelo contrario. Um tolo não diz que é tolo. Se tiver um acidente e perder um braço subitamente, sentirei. Se for apenas porque a vida vai fugindo, podemos não ter a noção. Não queria que fosse no dia 21 de julho.