Hoje o gesto de abrir as torneiras de casa para que saia água é algo visto como natural e garantido. Mas nem sempre foi assim. A verdade é que para isso ser possível foi percorrido um longo caminho. Na cidade de Lisboa, a EPAL (Empresa Pública das Águas Livres) foi fundamental nesse processo. A empresa abastecedora da capital nasceu para substituir outra que não conseguiu aumentar o volume de água em Lisboa e que faliu. Este ano, comemora o seu 150.º aniversário.
Para assinalar a data, o b,i. participou numa visita guiada os vários núcleos do Museu da Água. Começámos por conhecer o edifício da Estação Elevatória a Vapor dos Barbadinhos – que foi construído em 1880 -, onde está «uma joia da arqueologia industrial», como conta a técnica de serviço educativo do Museu da Água, Margarida Filipe. Trata-se de uma das quatro máquinas a vapor – acionadas por cinco caldeiras e alimentadas por carvão – que serviam para fazer a elevação da água do rio Alviela para as zonas mais altas da cidade de Lisboa. Esteve no ativo durante quase 40 anos, entre 1880 e 1928, e, apesar de já não ser usada, ainda funciona. Quando é ligada, é possível ver-se o rodar dos volantes e ouvir-se o barulho, que é uma mistura de chiar com um som de aspiração. «É uma máquina de expansão, aspiração e compressão», explica Margarida Filipe.
A água era puxada através da maquinaria, aspirada do reservatório e comprimida na canalização. O objetivo era gerar energia e força suficiente para que a água ganhasse velocidade e conseguisse virar a rua e subir a calçada dos Barbadinhos para dois reservatórios na zona mais alta da cidade, na Penha de França e na Verónica. Daí depois seguia para a zona do Arco das Amoreiras e, finalmente, para o reservatório da Patriarcal.
Descendo as escadas, chegamos ao que nos é apresentado como a galeria das bombas. Aqui, por baixo dos nosso pés, ficavam os poços para onde a água era aspirada. Já se olharmos para cima, conseguimos ver os três pisos do edifício que é definido como um «edifício-máquina». Aliás, inicialmente foi implantada neste sítio a primeira máquina e só posteriormente construído o edifício à volta. Margarida Filipe conta que este era um espaço de trabalho, que laborava continuamente durante as 24 horas do dia. Era um trabalho duro, com apenas dois turnos de 12 horas: sete homens trabalhavam durante o dia e outros sete à noite.
O edifício da Estação Elevatória do Vapor mantém-se como era originalmente – à exceção do telhado que foi substituído, porque, segundo a técnica do Museu da Água, quando as máquinas estavam a trabalhar o telhado «saltava tipo panela de pressão» e ficou danificado. Por uma questão de segurança, na altura o espaço foi construído com janelas grandes «para respirar», uma vez que havia sempre pó e carvão no ar.
Já o local onde antes estavam as caldeiras que acionavam as máquinas dá agora lugar à Sala de Exposição Permanente do Museu da Água. Quando saímos da zona das máquinas e entramos neste espaço, mudamos de um design rústico para uma decoração moderna. Nas paredes estão esquemas e mapas que explicam o processo de abastecimento de água na cidade de Lisboa e no teto há um espelho que chama a atenção dos visitantes.
A exposição foi remodelada em 2014, o que «possibilitou abordar a temática da água de uma forma mais genérica, sem deixar de contar a história e a evolução da cidade de Lisboa». A apresentação está dividida em quatro grandes temas: o planeta, a história e evolução da cidade de Lisboa, o ciclo da água (natural e urbano) e a sustentabilidade (com foco na pegada hídrica).
Do edifício da Estação Elevatória do Vapor seguimos para uma das obras mais emblemáticas de Lisboa, o Aqueduto das Águas Livres, que também faz parte do Museu da Água. Depois de caminharmos durante algum tempo, chegámos ao cimo daquele que é o maior arco em pedra construído em alvenaria do mundo. A 65 metros de altura, vê-se Lisboa inteira. O aqueduto tem dois passeios exatamente iguais, um do lado norte e outro do lado sul. Por enquanto, apenas é possível caminhar por estes passeios no exterior, mas um dos objetivos da EPAL é fazer uma requalificação do interior da construção, onde passava a água, para que possa ser aberto ao público.
As obras do aqueduto tiveram início em 1731, mas o projeto começou a ser pensado anos antes. Em 1728, começaram a ser recolhidos os impostos para a construção do aqueduto. Com o nome «real d’agua», este imposto funcionava como uma espécie de IVA que era cobrado sobre os bens de primeira necessidade da época, como a carne, o sal (para preservação dos alimentos), o azeite (para iluminação das candeias), a palha (o gasóleo da época) e o vinho. Anos mais tarde, em 1799, o imposto acabou por ser abolido, apesar de as obras do aqueduto terem continuado até 1834.
O segmento que permite fazer a travessia sobre o Vale de Alcântara já estava terminado em 1744, 11 anos do grande terramoto. E ainda está de pé. O terramoto de 1755, que destruiu uma parte significativa da cidade, provocou apenas a queda de três claraboias da arcaria. «Esse é o grande mérito da construção portuguesa e da engenharia militar», refere Margarida Filipe. Com 35 arcos e um percurso de praticamente um quilómetro, o aqueduto é todo feito em pedra calcária, retirada das pedreiras de Monsanto e do próprio vale. Se olharmos com atenção, é possível ver de lá de cima que a própria rua foi rasgada – e há inclusivamente ainda uns resquícios dessa obra e da retirada da pedra.
«Como todas as grandes obras, a obra do aqueduto também foi polémica. Houve quem gostasse e quem não gostasse», conta a nossa interlocutora. Quando foi construído o Aqueduto das Águas Livres, Lisboa estava no auge do estilo barroco. Como os arcos são uma construção romana, foram considerados ultrapassados e fora de moda. Além disso, a zona onde está agora o aqueduto era um espaço árido, onde passava o rio e, na altura, houve quem visse a obra como um «obstáculo», explica Margarida Filipe.
Agora é possível visitá-la, mas em tempos a arcaria esteve encerrada ao público. Tudo por causa do assassino Diogo Alves, que se tornou numa verdadeira lenda ao aterrorizar Lisboa, na primeira metade do século XIX, atirando as suas vítimas do alto do imponente Aqueduto das Águas Livres. Em três meses, matou 70 pessoas. Na altura, a rainha D. Maria chegou mesmo a pedir uma guarda especial apenas para o local, mas nunca conseguiram apanhar o assassino em flagrante. Diogo Alves foi apanhado mais tarde, durante um assalto, e foi um dos últimos homens condenados à forca em Portugal. D. Maria já tinha na sua secretária o decreto para abolir a pena de morte em Portugal, mas recusou-se a assiná-lo enquanto não apanhassem o criminoso.
Do alto do aqueduto, passamos para as profundezas da Galeria do Loreto. A água transportada pelo Aqueduto das Águas Livres, ao chegar a Lisboa, era conduzida através de uma rede constituída por cinco galerias maioritariamente subterrâneas, com cerca de 12 quilómetros de extensão no total. A função destes túneis era assegurar o fornecimento de água a chafarizes e alguns estabelecimentos públicos.
Dessas cinco galerias, apenas a do Loreto está disponível para visitas. O percurso de cerca de 1,5 quilómetros começa na Casa do Registo – contígua ao Reservatório da Mãe d’Água das Amoreiras -, passa debaixo do Largo do Rato e percorre a Rua da Escola Politécnica. Depois os visitantes podem optar por sair no meio do Jardim do Príncipe Real ou ao lado de uma esplanada do Miradouro de S. Pedro de Alcântara. Tudo isto debaixo da terra, o que implica normas de segurança, como usar capacete. O ambiente é húmido e pouco iluminado. Enquanto percorremos os túneis apertados, podemos observar nas paredes imagens do exterior, que mostram exatamente o sítio por onde estamos a passar.
Um percurso atribulado
A visita contou ainda com uma intervenção do presidente da EPAL, José Sardinha, que fez um balanço dos 150 anos de funcionamento da empresa. «É com grande gosto e prazer que estamos no centro do desenvolvimento da cidade de Lisboa e também à volta de Lisboa. Sem água não há desenvolvimento e nós, há 150 anos, que prestamos um serviço de qualidade à cidade», refere o responsável.
A empresa abastecedora de água de Lisboa começou como uma empresa privada e hoje em dia é uma empresa totalmente pública. José Sardinha lembra que foi um percurso longo e com muitas adversidades. «Começámos no século XIX e hoje estamos no século XXI. Começámos na monarquia e hoje estamos na democracia. Passámos quase por 50 anos de ditadura. Portanto, passámos praticamente por tudo. Passámos por uma guerra colonial, passámos por duas guerras mundiais e perante todas essas dificuldades sempre soubemos assegurar e saber exatamente qual era nossa missão: prestar um serviço público de qualidade», explica o engenheiro, afirmando ainda que hoje em dia continuam a fazê-lo, «com inovação e responsabilidade».