A vida, a morte e a dúvida (II)


Não quero um Estado mascarado de ciência que se sobrepõe cada dia que passa à nossa autodeterminação individual dizendo o que podemos ou não fazer, comer, vestir, pensar e quando podemos ou não morrer.


Há pouco mais de um ano escrevi aqui a primeira parte desta crónica.

Temia que o debate sobre a eutanásia se viesse a resumir a uma batalha de trincheiras partidárias. E em grande parte assim foi. Perante dúvidas e complexidade os partidos barricaram-se nos seus cantos e dispararam sempre certezas e verdades absolutas.  De um lado e do outro e de um lado para o outro.

Sou por principio a favor da eutanásia. Mas não é fácil estar na pele do legislador que tem pela frente um dos maiores desafios a que tenho assistido e que aconselha uma enorme prudência.

Por isso gostaria de ver maior maturidade e ponderação no processo legislativo e que todos os pareceres, nomeadamente os do CNECV, fossem primeiro devidamente analisados. Simultaneamente, gostaria que a apologia do medo e a manipulação emocional não fossem exercidas. E por fim, que posições como o bluff eleitoral a que recorreu Cavaco Silva, ainda que legítimas, não tivessem vindo extremar o debate.

Vivo num mundo em que o Estado que se impôs à vontade dos pais de Alfie Evans* de forma inadmissível, vergonhosa e desumana é o mesmo Estado que se impõe à vontade daqueles que querem pôr termo à sua vida, impedindo-os.

Ambos os casos em resultado da mesma e grave presunção: o Estado, o coletivo, o outro, achar-se no direito e com a capacidade para decidir pelo indivíduo, por cada um de nós, seja na antecipação seja no adiamento da morte.

Não quero um Estado mascarado de ciência que se sobrepõe cada dia que passa à nossa autodeterminação individual dizendo o que podemos ou não fazer, comer, vestir, pensar e quando podemos ou não morrer.

O suicídio é a alternativa à vida a que alguém totalmente livre pode recorrer, sem interferir na liberdade do outro. Mas existem situações/doenças em que uma pessoa fica privada dessa possibilidade. Perdeu a sua liberdade original. Nessas situações concebo que a possa recuperar recorrendo a terceiros, que de acordo com a sua consciência, sem que o Estado o iniba ou fomente e com espaço para a objecção, possam decidir adjuvar. Livremente e sem imposições.

E por isso, não compreendo o argumento dos que dizem que a eutanásia não é um ato de liberdade por depender de outros ou do Estado. Se os critérios previamente estabelecidos forem os seus, o Estado só os confirma. Se o pedido for definido em plena consciência e acção tomada por alguém livremente disposto a tal, não vejo o lugar das imposições.

Mas no limite e se quisermos pensar no futuro, definidos os critérios que acima referi, a eutanásia pode até ser praticada a pedido do próprio sem intervenção humana, pelo que a invasão da liberdade de terceiros não se coloca de todo.

Vivemos mais tempo, mas muitas vezes além do biologicamente aceitável com níveis de qualidade de vida altamente questionáveis. Se assim não fosse nem se colocaria a questão da eutanásia. Esta é uma realidade que não existia e agora se assume como tendência, sendo o sofrimento e a longevidade os triggers de todo o debate.

Felizmente existem hoje cuidados de saúde que podem mitigar em muito o sofrimento físico e mental e essa deve ser incontornavelmente a prioridade. Deve ser uma exigência de todos. Mas estaríamos a viver uma utopia se achássemos que, mesmo com uma cobertura e acesso totais, esses cuidados acabariam com o sofrimento por completo.

Até porque depois existem situações sem sofrimento em que o próprio simplesmente pode não se querer ver. Vidas penduradas em meios artificiais, vidas encarceradas em corpos sem qualquer realização para o próprio que mesmo sem sofrimento podem levar a reclamar a eutanásia. Acredito sinceramente que alguém a possa exigir nestas situações sem que seja o espelho de uma depressão severa. E por isso não concebo apenas o princípio da eutanásia em sofrimento extremo.

O ser humano está biologicamente programado para sobreviver, é o seu instinto que o impele. De igual forma, exceptuando algumas personalidades doentis, ninguém tira prazer na morte do outro, pelo que não passaremos a ter matadouros como alguns tristemente tentam passar.

Posto isto, a letra de lei é que me deixa apreensivo. A definição dos critérios e a intervenção do Estado. E esse é o enorme desafio dos projectos quando baixarem à especialidade na Assembleia da República. Idealizar o princípio é o mais fácil.

Mas diria que tudo assenta nisto: mais que um direito, a vida é um privilégio. E como privilégio gostaria de a gozar sempre em pleno, consciente de que cada um tem o seu sinónimo de plenitude. Se em total consciência, o próprio quiser antecipar a sua morte, quem sou eu, quem somos nós, quem é o Estado para o contrariar e lhe prorrogar a vida?

Por isso este é um tema dos próprios, dos que decidem sobre si, sobre as suas dúvidas e sobre a sua morte. Ao Estado compete dar espaço para essa decisão e confirmar que se verificam as premissas da vontade antes de a permitir acontecer. Até chegar a minha vez terei sempre dúvidas do que quero para mim. Mas gostava de ter essa opção.

*O bebé inglês que tinha uma doença degenerativa e que a Justiça Britânica impediu de prosseguir tratamentos acabando por falecer em Abril deste ano.

A vida, a morte e a dúvida (II)


Não quero um Estado mascarado de ciência que se sobrepõe cada dia que passa à nossa autodeterminação individual dizendo o que podemos ou não fazer, comer, vestir, pensar e quando podemos ou não morrer.


Há pouco mais de um ano escrevi aqui a primeira parte desta crónica.

Temia que o debate sobre a eutanásia se viesse a resumir a uma batalha de trincheiras partidárias. E em grande parte assim foi. Perante dúvidas e complexidade os partidos barricaram-se nos seus cantos e dispararam sempre certezas e verdades absolutas.  De um lado e do outro e de um lado para o outro.

Sou por principio a favor da eutanásia. Mas não é fácil estar na pele do legislador que tem pela frente um dos maiores desafios a que tenho assistido e que aconselha uma enorme prudência.

Por isso gostaria de ver maior maturidade e ponderação no processo legislativo e que todos os pareceres, nomeadamente os do CNECV, fossem primeiro devidamente analisados. Simultaneamente, gostaria que a apologia do medo e a manipulação emocional não fossem exercidas. E por fim, que posições como o bluff eleitoral a que recorreu Cavaco Silva, ainda que legítimas, não tivessem vindo extremar o debate.

Vivo num mundo em que o Estado que se impôs à vontade dos pais de Alfie Evans* de forma inadmissível, vergonhosa e desumana é o mesmo Estado que se impõe à vontade daqueles que querem pôr termo à sua vida, impedindo-os.

Ambos os casos em resultado da mesma e grave presunção: o Estado, o coletivo, o outro, achar-se no direito e com a capacidade para decidir pelo indivíduo, por cada um de nós, seja na antecipação seja no adiamento da morte.

Não quero um Estado mascarado de ciência que se sobrepõe cada dia que passa à nossa autodeterminação individual dizendo o que podemos ou não fazer, comer, vestir, pensar e quando podemos ou não morrer.

O suicídio é a alternativa à vida a que alguém totalmente livre pode recorrer, sem interferir na liberdade do outro. Mas existem situações/doenças em que uma pessoa fica privada dessa possibilidade. Perdeu a sua liberdade original. Nessas situações concebo que a possa recuperar recorrendo a terceiros, que de acordo com a sua consciência, sem que o Estado o iniba ou fomente e com espaço para a objecção, possam decidir adjuvar. Livremente e sem imposições.

E por isso, não compreendo o argumento dos que dizem que a eutanásia não é um ato de liberdade por depender de outros ou do Estado. Se os critérios previamente estabelecidos forem os seus, o Estado só os confirma. Se o pedido for definido em plena consciência e acção tomada por alguém livremente disposto a tal, não vejo o lugar das imposições.

Mas no limite e se quisermos pensar no futuro, definidos os critérios que acima referi, a eutanásia pode até ser praticada a pedido do próprio sem intervenção humana, pelo que a invasão da liberdade de terceiros não se coloca de todo.

Vivemos mais tempo, mas muitas vezes além do biologicamente aceitável com níveis de qualidade de vida altamente questionáveis. Se assim não fosse nem se colocaria a questão da eutanásia. Esta é uma realidade que não existia e agora se assume como tendência, sendo o sofrimento e a longevidade os triggers de todo o debate.

Felizmente existem hoje cuidados de saúde que podem mitigar em muito o sofrimento físico e mental e essa deve ser incontornavelmente a prioridade. Deve ser uma exigência de todos. Mas estaríamos a viver uma utopia se achássemos que, mesmo com uma cobertura e acesso totais, esses cuidados acabariam com o sofrimento por completo.

Até porque depois existem situações sem sofrimento em que o próprio simplesmente pode não se querer ver. Vidas penduradas em meios artificiais, vidas encarceradas em corpos sem qualquer realização para o próprio que mesmo sem sofrimento podem levar a reclamar a eutanásia. Acredito sinceramente que alguém a possa exigir nestas situações sem que seja o espelho de uma depressão severa. E por isso não concebo apenas o princípio da eutanásia em sofrimento extremo.

O ser humano está biologicamente programado para sobreviver, é o seu instinto que o impele. De igual forma, exceptuando algumas personalidades doentis, ninguém tira prazer na morte do outro, pelo que não passaremos a ter matadouros como alguns tristemente tentam passar.

Posto isto, a letra de lei é que me deixa apreensivo. A definição dos critérios e a intervenção do Estado. E esse é o enorme desafio dos projectos quando baixarem à especialidade na Assembleia da República. Idealizar o princípio é o mais fácil.

Mas diria que tudo assenta nisto: mais que um direito, a vida é um privilégio. E como privilégio gostaria de a gozar sempre em pleno, consciente de que cada um tem o seu sinónimo de plenitude. Se em total consciência, o próprio quiser antecipar a sua morte, quem sou eu, quem somos nós, quem é o Estado para o contrariar e lhe prorrogar a vida?

Por isso este é um tema dos próprios, dos que decidem sobre si, sobre as suas dúvidas e sobre a sua morte. Ao Estado compete dar espaço para essa decisão e confirmar que se verificam as premissas da vontade antes de a permitir acontecer. Até chegar a minha vez terei sempre dúvidas do que quero para mim. Mas gostava de ter essa opção.

*O bebé inglês que tinha uma doença degenerativa e que a Justiça Britânica impediu de prosseguir tratamentos acabando por falecer em Abril deste ano.