“Há uma infantilização da sociedade: hoje prolonga-se a infância até uma idade mais avançada”

“Há uma infantilização da sociedade: hoje prolonga-se a infância até uma idade mais avançada”


Entrevista a Jorge Gravanita, presidente da Sociedade Portuguesa de Psicologia Clínica


Como vê esta decisão nos EUA? Imagina que haja pais que se sintam tentados a recorrer à justiça para levar os filhos a sair de casa?

Pode haver um conflito em que o filho acha que está na sua própria casa e não tem de sair, mas penso que a questão será perceber o que estará a faltar em termos do desejo de autonomia que o filho pode ter, do desejo de separação que é até espacial. Por outro lado, sabemos que a dependência que existe entre pais e filhos pode ser prolongada ao longo do tempo. Há 50 ou 60 anos, os filhos saíam de casa com 10 anos, vinham da província para a cidade, emigravam, hoje é tudo mais prolongado. De qualquer forma, é um pouco estranho ver a justiça a interferir neste tipo de interações. Devia haver outros mecanismos.

Uma mediação familiar?

Sim, uma forma de se perceber o que é que está a impedir o entendimento para que não fosse preciso entrar nesta judicialização da vida comum.

Chega um momento em que toda a gente tem esse desejo de autonomia ou pode ser-se um adulto normal sem nunca se querer deixar a casa dos pais?

É um processo sempre com forças contraditórias. Por um lado, haverá sempre apego e até necessidade de nos mantermos perto das referências que temos, do que representa a infância, a memória, a segurança. Por outro lado, o ser humano tem uma certa tendência a partir, a afastar-se do ninho.

Hoje os portugueses saem de casa aos 29 anos. Existe alguma idade limite ou que gere pelo menos desconfiança de que algo pode não estar bem?

Penso que não devemos criar uma espécie de pseudonormalidade e dizer que o desenvolvimento correto é quando a pessoa vai viver sozinha aos 18, 25 ou 30. Essa necessidade de ter um espaço e uma vida própria, de haver alguma rutura, pode surgir mais cedo para uns e mais tarde para outros. Hoje em dia é relativamente comum até ver pessoas que casam e ficam a viver com os pais e não vamos dizer que há aí uma patologia.

 

O facto de haver mais jovens a viver até mais tarde com os pais está a mudar a vivência em sociedade?

Há sinais de uma certa infantilização da sociedade. Numa certa fase transformávamos as crianças em adultos, vestíamo-las como adultas, eram pequenos adultos. Hoje estamos um bocadinho ao contrário: há um prolongamento e uma idealização da infância que permanece até uma idade muito avançada. 

Quais são os sintomas?

Aquilo que é muito importante para as crianças, por exemplo aspetos lúdicos, deixam de o ser apenas para as crianças e temos adultos a jogar videojogos, os pais a brincar com os filhos, artefactos voadores para adultos e crianças. O território da infância prolonga-se pela vida adulta, o que resulta também do facto de, na primeira infância, não haver muita liberdade para o ser. Nesse sentido, essa questão da falta de autonomia tem a ver também com não se respeitar o espaço que é necessário para amadurecimento emocional, o que requer alguma liberdade: a escola começa cedo a ser muito exigente, não há espaço livre, os miúdos têm o tempo todo ocupado. Chega-se à idade adulta e há uma necessidade de prolongar o espaço infantil para recuperar o tempo perdido.

Os jovens não estarão também um pouco mais inseguros? 

Não podemos generalizar. Se há pessoas para quem o mundo exterior pode ser encarado como algo ameaçador e desenvolvem até fobias, há outras que têm uma necessidade de apresentar uma grande segurança e autonomia mas não quer dizer que não tenham carências similares.

A partir de que idade se começa a treinar a autonomia?

Desde bebés, dando um espaço proporcional à capacidade das crianças para que possam criar os seus mecanismos. Dormir na sua cama e não na dos pais, passos deste género. O que vemos muitas vezes é que os pais, por razões de segurança, tendem a querer exercer controlo, a ter sempre a criança debaixo de olho.

Tem havido alertas de que ter só um filho e mais tarde contribui para pais excessivamente protetores.

Sim, poderá ser um dos fatores.