A crise na Catalunha


Em 2016, o Tribunal Constitucional espanhol chegou mesmo a julgar inconstitucional uma lei catalã que proibia as touradas na Catalunha, apesar de a Constituição espanhola não conter qualquer norma sobre corridas de touros…


Começa a ser evidente que a situação na Catalunha ameaça tornar-se uma crise sem fim à vista. O principal responsável por esta crise é Mariano Rajoy que, ainda na oposição, lançou em 2006 uma campanha para levar ao Tribunal Constitucional o Estatuto da Catalunha, tendo o tribunal em 2010 julgado inconstitucional esse mesmo estatuto. Ainda assim, a Catalunha tentou obter uma solução de compromisso, tendo o parlamento catalão proposto em 2012 um pacto fiscal com Espanha, igualmente rejeitado por Rajoy, já no governo. O governo espanhol, a partir daí, passou a mandar sistematicamente para o Tribunal Constitucional as leis do parlamento autonómico da Catalunha, com o Tribunal Constitucional a julgá-las sistematicamente inconstitucionais. Em 2016, o Tribunal Constitucional espanhol chegou mesmo a julgar inconstitucional uma lei catalã que proibia as touradas na Catalunha, apesar de a Constituição espanhola não conter qualquer norma sobre corridas de touros…

Com este sistemático bloqueio às competências do parlamento catalão, não admira que o apoio à independência tenha subido estrondosamente na Catalunha, o que levou o governo liderado por Carles Puigdemont a organizar um referendo e a proclamar mesmo a independência da região. O governo de Rajoy respondeu com a aplicação do art.o 155 da Constituição espanhola, que permite suspender a autonomia de uma comunidade, o que constitui o decretamento de um estado de excepção, naturalmente transitório. E Rajoy, efectivamente, marcou eleições para resolver a crise a curto prazo em que os independentistas aceitaram participar sem qualquer problema. Puigdemont avisou então que os independentistas acatariam o resultado das eleições, mas que se iria ver se o Estado espanhol o faria. E, na verdade, o Estado espanhol não o fez. Puigdemont voltou a ter maioria no parlamento, mas a justiça espanhola pretendeu prendê-lo e não autorizou que o parlamento catalão o investisse à distância. Os partidos independentistas optaram por indicar Quim Torra em sua substituição, que acabou por ser investido como presidente da Generalitat. Mas agora Rajoy entende que tem o direito de rejeitar os ministros que ele nomeou, por estarem presos sem culpa formada à ordem da justiça espanhola, recusando por isso cessar a aplicação do art.o 155.

Só que é manifesto que Espanha não pode viver eternamente com uma comunidade autónoma suspensa dos seus direitos constitucionais. E muito menos se pode aceitar que, numa democracia, o voto popular de uma comunidade autónoma seja subvertido por decisões do governo central, que se permite sucessivamente rejeitar que um parlamento eleito escolha livremente um governo, que o governo eleito decida sobre a sua própria composição e, finalmente, que os órgãos da comunidade autónoma possam aprovar as leis que regem a sua região. Quem afirma defender a Constituição espanhola deve, antes de tudo, assegurar o respeito pelo voto democrático, que é um dos princípios basilares de qualquer Constituição democrática.

Nas democracias, os conflitos políticos resolvem-se com equilíbrio e negociação e as crises políticas necessitam de ter uma resposta política, não uma resposta judicial e muito menos de repressão. Manter a autonomia catalã bloqueada para sempre por um art.o 155 eterno é um acto absolutamente insustentável numa Espanha democrática.

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990