A estratégia de higienização do Partido Socialista em relação a José Sócrates, concretizada sob a orientação política do mastermind António Costa é, no essencial, conversa fiada. Pode aparentar uma dimensão de rutura definitiva pelo simbolismo invulgar da demissão do ex-primeiro ministro do partido, mas em tudo resto mantém uma insanável convergência, nomeadamente no pessoal político em funções e na forma de fazer política. Bem podem recrudescer vergonhas, assomos de ética nunca revelados em vários casos ocorridos desde 2015 ou até inacreditáveis arrependimentos tardios, depois de convenientes usufrutos de roteiros de luxo acima das possibilidades.
Alguém acredita que a implacável erudição progressista e acutilância cidadã possa ter relapsos no espírito de uma jornalista que, em 11 de setembro de 2012, verberava no twitter “e agora este problema: se ocorre a necessidade d eleições antecipadas, como é q s consegue tirar d lá o seguro a tempo?”. Logo esta personagem que, não sendo militante, chegou a ter uma quota de três deputados indicados nas listas de candidatos a deputados do PS, quando Sócrates era secretário geral.
Alguém acredita que o critério agora aplicado terá similar verbalização de exigência ética e de extrapolação de consequências políticas se surgirem novos casos em que o exercício de funções políticas públicas em nome do PS seja beliscado por alguma sombra? Esse sim, será o momento crucial, não para mais um exercício de sobrevivência política ou de fuga entre os pingos da chuva, mas para a aferição da genuinidade do clamor agora gerado.
Alguém acredita que um Congresso Nacional normalizado para passeio de uma liderança, a convergência com o ano eleitoral e um provir expectável não têm nada a ver com a súbita consciencialização do estado da arte?
E como a orientação quase quinquenal agora é para que se discuta o futuro e não o presente ou o passado, como teria sido o presente, então futuro, se tivesse sido possível exercitar o adequado distanciamento da governação anterior sem acusações efusivas de falta de defesa do legado de Sócrates ou concretizar um reforço da separação entre a política e os negócios? Então, de tão obcecados com o passado, demasiados esqueceram-se do que tinham assinado em nome do PS e de Portugal, sem qualquer validação dos órgãos partidários competentes, e queriam que outros fizessem todo o combate político, sem esboço de vergonha. É certo que, em algumas questões, houve então uma visão estratégica para o país como não existe agora com a atual governação à vista, mas era preciso ter memória e pudor. Algo que volta a faltar agora a alguns.
Também do domínio da conversa fiada são os jogos florais entre membros do governo sobre se o caminho futuro será com convergência à esquerda ou ao centro em modo Terceira Via, como se ainda não tivessem aprendido nada com a visão pragmático-descartável de António Costa: pelo poder, o que for necessário. Foi assim com a derrota eleitoral nas legislativas de 2015, será assim de novo em 2019. É esse o sentido da ausência de algo definitivo nas orientações políticas agora em debate, depois de um mandato em que a esquerda suportou e o PSD acabou por convergir simbolicamente para alargar o leque de soluções futuras. O espetáculo de entretenimento dialético e de pré-posicionamento para o pós-Costa é tanto mais ridícula quando boa parte dos protagonistas da atual solução governativa devem a sua experiência política a governos com a matriz que agora abocanham. Uma vez mais, uma extemporânea expressão de arrependimentos tardios que evidenciam não se tratar de defeito, mas de feitio. Um traço de personalidade político pouco viável com o crescente escrutínio das sociedades modernas.
No essencial, boa parte das agitações pré-orçamentais de quem já aprovou três Orçamentos de Estado, assumindo responsabilidades políticas pelas opções concretizadas, e quem já promulgou esses instrumentos de gestão na Presidência da República, integram-se no domínio da conversa mais ou menos fiada para português ver. Até pode ser afiada, mas será sempre inconsequente pelo preço a pagar por um qualquer desalinho tardio, em final de legislatura.
Neste quadro político gerador de um certo enjoo cívico perante a sucessão de casos, a falta de memória e delapidação da coerência política, a grande questão está mesmo em saber se há alguma vontade para mudar, para separar o trigo do joio e para recentrar a política. Se não forem os protagonistas, que sejam os cidadãos a fazê-lo.
NOTAS FINAIS
Não bate a bota com a perdigota A deriva de militarização da Proteção Civil para além da fragilização do dispositivo e da instabilidade de lideranças e de meios decorrentes de más opções políticas, é tanto mais invulgar quando concretizada por um governo apoiado pelo BE, pelo PCP e pelo PEV.
Tantas vezes vai o cântaro à fonte, que algum dia lá deixa a asa É assim na política, na justiça, no futebol e em demasiadas situações da vida em Portugal. Há uma inversão da ordem das coisas. A justiça que deveria ser o garante dos direitos, das liberdades e dos deveres configura-se a agendas próprias. O sistema bancário que deveria financiar a economia, é financiado pelos cidadãos.
Paga o justo pelo pecador O Estado dá o exemplo, a sociedade segue-o.A percentagem de empresas que cumprem os prazos de pagamento em Portugal está em queda desde setembro de 2017 e atingiu em abril deste ano o valor mais baixo desde 2015. Mais de dois terços das empresas já demoram 30 dias a pagar a fornecedores.
Escreve à quinta-feira