Já vos falei minha Maria Jacinta. De feitio assertivo, com as palavras certas muitas vezes e desconcertantes tantas outras, sem paciência para folclores e com uma energia fora do normal, capaz de fazer inveja a qualquer ginasta federada. Em miúdas, ouvia-lhe mais rápido o “não” do que o bom dia e ela tinha quase sempre razão. Isso é que nos enervava – a minha mãe tinha quase sempre o dom de adivinhar o “que aí vinha”. Por ela saber as coisas antes de nós sabermos, desconfio que lhe tenham sido dados alguns livros, algumas dicas, algum curso? Alguém “trabalhou” com a minha mãe, alguém lhe explicou, alguém disse alguma coisa. E é por isso que ando a trabalhar numa teoria: existe uma fábrica que faz nascer mães.
Apesar de não existirem mães iguais, acho que em muitas coisas as mães são idênticas. Como se fossem feitas numa fábrica onde lhes ensinam conceitos-chave, frases-chave, conselhos-chave que todas as mães (as boas mães) acabam por desbobinar em algum momento das nossas vidas. Nessa fábrica onde nascem mães, fazem-lhes coisas um bocadinho maldosas: acordam-nas de duas em duas horas, para que se habituam a nunca ter um sono regular, como os tropas que se levantam ao meio da noite para um treino exigente (daí advém a capacidade nata que as mães têm em aguentar o dia, sem nunca dormirem a noite inteira). Além de serem acordadas, as mães ultrapassam barreiras, passam por debaixo de fios elétricos, correm maratonas, tudo pelos filhos, tudo como fazem os militares, os mais fortes, os mais exigentes, os mais loucos, para que saibam que é preciso suar pelos filhos, transpirar pelos filhos, lutar pelos filhos.
Nem tudo é difícil aqui. Apesar das batalhas lá fora, no campo e na rua, lá dentro também há serenidade e calma e ensinam as mães a inventarem receitas com o que se tem no frigorífico, a contarem histórias com vozes diferentes e são ainda convidadas a frequentar um curso intensivo de cafuné: as mães aprendem a fazer cafuné caseiro, daqueles que fazem adormecer nos bancos frios do hospital. Claro que nesta fábrica, as mães aprendem tudo sobre medicina caseira, decoram os nomes de todos os chás e é-lhes ensinado como dar beijos mágicos que fecham feridas e que fazem deixar de doer.
Na fábrica onde nascem mães, há segredos escondidos. Aparentemente, desenham-se mulheres comuns, normais, mas não o são. Desengane-se quem acha que estas mulheres têm dois olhos como qualquer ser-humano: têm pelo menos vinte olhos, para que nada lhes escape; assim como os ouvidos e os braços, para que cheguem a todo o lado. Só a boca, só a boca é só uma e se tiver de se selar pelos filhos, como um cofre, assim será. Mas, por outro lado, se as deixarem falar, as mães relatam até ao outro dia e fazem sermões entusiásticos sobre valores humanos e educação – e aqui acho que há algum padre metido nisto. Na fábrica onde nascem mães, existe um guião que lhes é dado com algumas frases e que é obrigatório seguir. Este guião é uma forma de ajudar as mães a lidarem com os filhos em situações de crise. Por exemplo, está escrito que quando os filhos tiverem 14 anos, a mãe terá de avisar, com o máximo tom ameaçador possível, “que um dia sai de casa de manhã e só volta à noite”; aos 16 anos, a mãe terá de prometer “que não lava nem passa nem mais uma peça de roupa, enquanto o quarto não for arrumado” e, finalmente, aos 18, terá de anunciar que “se és maior de idade para votar, és maior de idade para arcar com as consequências dos teus atos”.
Na fábrica onde nascem mães, as mães vêm com braços extra, olhos extra, ensinamentos extra, poderes extra, tudo extra mas nascem sem uma coisa. Estas mães nascem sem coração. Sim, sem o coração montado no corpo – porque quando nascem mães, o coração vem sempre fora do peito. Ser mãe é ter o coração fora do peito.