O que aconteceria se conseguíssemos captar toda a luz do sol que atinge Portugal e fizéssemos essa luz convergir para o mais pequeno foco possível e aí interagisse com matéria? Esta questão, aparentemente académica, é diariamente explorada nos lasers mais intensos do mundo; a nova física e as aplicações que estas intensidades luminosas permitem atingir são espantosas, desde a aceleração de partículas até ao potencial para “ferver o vácuo” com luz.
Um dos primeiros exemplos da exploração da interação da luz intensa com a matéria remonta a Arquimedes, matemático e físico do séc. iii a.C., originário de Siracusa, na Sicília. Durante as Segundas Guerras Púnicas, recorrendo a múltiplos espelhos, Arquimedes concentrava e focava a luz do sol nas velas da frota naval de Roma, que Siracusa combatia, queimando-as. Durante vários séculos, muitos cientistas, como Galileu, Descartes e Newton, tentaram verificar se essa configuração seria possível, com resultados aparentemente contraditórios, incluindo uma (tentativa de) demonstração recente, em 2010, no programa de TV “MythBusters”, episódio “President’s Challenge”, motivado por Barack Obama [1].
À superfície da Terra chega uma enorme quantidade de energia solar, de tal forma elevada que uma hora de luz solar seria suficiente para suprir as necessidades energéticas mundiais durante um ano inteiro. O físico Freeman Dyson propôs até a deteção de civilizações tecnologicamente avançadas através de evidências indiretas de estruturas interplanetárias capazes de captar a quase totalidade a luz da estrela, assim ultrapassando as limitações energéticas do planeta onde a civilização avançada estivesse baseada – mais tarde, designadas como esferas de Dyson [2].
Utilizar a luz do sol não é a forma mais eficiente para atingir em laboratório as potências luminosas mais elevadas. Os lasers são muito superiores para explorar estas condições. Por exemplo, o sistema laser do Laboratório de Lasers Intensos do Instituto Superior Técnico [3] atinge potências instantâneas cerca de mil vezes superiores à potência elétrica instalada em Portugal (20 GW). Esta aparente inconsistência é fácil de compreender. A energia nestes lasers, de alguns joules, está ultraconcentrada em impulsos de luz extremamente curtos, de durações da ordem das dezenas de fentosegundos, ou 0,000000000000001 s: a duração destes flashes luminosos está para um piscar de olhos como o piscar de olhos está para a idade do universo.
Quando estes flashes luminosos de alta potência interagem com a matéria, as consequências são surpreendentes. Os eletrões são imediatamente arrancados dos átomos e oscilam na luz do laser com velocidades próximas da velocidade da luz, ilustrando todas as previsões da teoria da relatividade restrita de Einstein. As acelerações são tão fortes que estes eletrões relativistas emitem flashes de raios X e raios gama. Como estes flashes têm duração ultracurta e intensidade elevada, permitem diminuir a dose de radiação necessária para fazer imagens de fenómenos ultrarrápidos em materiais e imagens biomédicas de alta resolução e contraste, como recentemente ilustrado numa colaboração envolvendo investigadores do Imperial College e do IST [4].
As potencialidades destes lasers intensos permitem sonhar ainda mais. A infraestrutura Extreme Light Infrastructure [5], em fase final de instalação, propõe-se gerar flashes de luz tão intensos que conseguirão “ferver o vácuo”, algo que, tendo sido previsto há muito tempo, sempre foi considerado inalcançável em condições laboratoriais. A luz será convertida em matéria e antimatéria, pares de eletrões e positrões, com propriedades semelhantes às que existem nalguns dos objetos astronómicos mais extremos do universo, como as explosões de raios gama ou os pulsars. Estes lasers irão gerar eletrões e protões de elevada energia e feixes de raios X e raios gama com potencial para inúmeras aplicações, da terapia à física nuclear, da física dos aceleradores às imagens biomédicas. Novas condições, muito para além das que as teorias existentes permitem descrever, serão atingidas, demonstrando o potencial da tecnologia para ultrapassar até os sonhos dos visionários.
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[1] Para uma história completa da arma solar de Arquimedes ver S. Wilk, “How the ray gun got its zap”, Oxford University Press, 2013
[2] O artigo de Freeman Dyson comentado está disponível aqui: http://fermatslibrary.com/s/search-for-artificial-stellar-sources-of-infrared-radiation
[3] http://xgolp.tecnico.ulisboa.pt/research/infrastructures/
[4] https://www.nature.com/articles/srep13244
[5] https://eli-laser.eu
Professor catedráticodo Departamento de Física. Presidente do Conselho Científico Instituto Superior Técnico