Delação premiada. Um negócio jurídico atípico ou um dilema ético-moral? (Parte I)


A delação premiada, por si só, não é a prova que se visa a obter no processo penal, mas apenas o canal pelo qual essa prova pode ser atingida, já que, sem essa contribuição de um ex-integrante do grupo criminoso seria impossível desvendar situações ocultas e alcançar a justa causa para a imputação


O direito premial, ou delação premiada se adotarmos a expressão brasileira, não é um instituto jurídico propriamente recente. Já na obra de Tito Lívio, “Ad Urbe Condita”, se conta história da recompensa com a liberdade e dinheiro a dois cúmplices delatores da primeira revolta dos escravos. Em Portugal, e também no Brasil até à publicação do Código Criminal de 1830, são as Ordenações Filipinas a primeira fonte deste instituto jurídico que, ainda exatamente sem esta designação, decretavam privilégios àqueles que entregassem à prisão culpados de crimes. Mais tarde, em Inglaterra por volta de 1775, o “caso Rudd” deve constituir-se como a primeira grande notícia pública da premiação da delação quando a cortesã Margaret Rudd denunciou o esquema de falsificação de títulos do tesouro britânico dos irmãos Perreau, de quem era cúmplice, que os levou à forca em 1776 garantindo-lhe imunidade, proteção e uma renda do Estado.

Introduzida no Brasil pela Lei dos Crimes Hediondos, mais tarde sucessivamente revista e com o escopo ampliado, é com a Lei das Organizações Criminosas, justamente para adensar a forma de interpretação do valor e da eficácia da colaboração premiada, que se trata a sua natureza jurídica, classificando-a como meio de obtenção de prova. Ocorre que esse meio, ou melhor, o instrumento utilizado para se chegar até a prova, não é uma medida judicial, como se requer ou como são as escutas telefónicas ou as buscas domiciliárias, mas sim um ato processual negocial, embora sem a natureza jurídica de um contrato privado. Aliás é nesta linha de ato processual negocial que se consome a jurisprudência do STF ao afirmar que “é um negócio jurídico-processual, uma vez que, além de ser qualificada expressamente pela lei como “meio de obtenção de prova”, seu objeto é a cooperação do imputado para a investigação e para o processo penal criminal, atividade de natureza processual, ainda que agregue a esse negócio jurídico o efeito substancial (de direito material) concernente à sanção premial a ser atribuída”.

Quer isto dizer que a delação premiada é um acordo em que o investigado negoceia com a autoridade policial, e com o Ministério Público, um conjunto de benefícios atenuantes ou eliminadores da sua responsabilidade criminal e, como contrapartida, se compromete a delatar o modus operandi daqueles de quem era cúmplice (ou coautor) permitindo, em tese, que se alcancem as provas de determinada prática criminosa. Nota-se, portanto, que a delação premiada, por si só, não é a prova que se visa a obter no processo penal, mas apenas o canal pelo qual essa prova pode ser atingida, já que, sem essa contribuição de um ex-integrante do grupo criminoso seria impossível desvendar situações ocultas e alcançar a justa causa para a imputação.

Ora tratando-se de um acordo, ele apenas poderá assumir a dimensão de negócio jurídico-processual, como reconhece a jurisprudência brasileira, se assumir um caráter sui generis. Pois, ao passo que numa relação jurídica privada são as partes que estabelecem entre si o conteúdo dos direitos e obrigações que as vinculam a determinado negócio jurídico, no caso da delação premiada essa vinculação é uma vinculação atípica pois o objeto da negociação não está à absoluta disposição da vontade das partes, não assumindo, portanto, uma relação de bilateralidade plena, pois o Ministério Público não cede ao delator nenhum direito nem nenhum bem. Apenas se inibe de promover contra si a ação penal condenatória, ou fazendo-o ela atenua-se ou substitui-se de acordo com um determinado dever jurídico.

Diferente é a colaboração premiada que, de resto já faz parte do ordenamento jurídico-penal português e que, entre outros aspetos, analisaremos na próxima semana.

 

Deputado do PSD.

Docente universitário

Escreve à segunda-feira