Sérgio Godinho. “O Maio de 68 preparou-me para o 25 de Abril”

Sérgio Godinho. “O Maio de 68 preparou-me para o 25 de Abril”


Um testemunho de um tempo em que todas as mudanças pareciam possíveis, mas que acabou por revelar ao cantor que não há revoluções obrigatórias nem irreversíveis


Há um filme de Bernardo Bertolucci datado de 2004, chamado “Os Sonhadores”, que é uma espécie de parábola daquilo que aconteceu nas jornadas de Maio. No filme, durante o mês do Maio de 68, três jovens passam os dias num quarto, sem quase reparar no que acontecia nas ruas. As massas não tomaram o poder, mas muitas das coisas mudaram em termos da moralidade e sexualidade dos jovens dessa época. A conversa com Sérgio Godinho começa com a pergunta se lhe aconteceu o mesmo. Para se acabar, numa pescadinha de rabo na boca, voltamos a uma anterior conversa em que o cantor dizia sobre os anos 60 e 70 que nem tudo o que está na internet sobre essa época é de ouro. 

Ficou fechado num quarto durante o Maio de 68?

Está maluco [risos]! Saí de Portugal aos 20 anos. Estive a vadiar na Europa. Fiz uma data de coisas de cada vez.

Uma espécie de homem dos sete instrumentos?

Sim, trabalhei num barco holandês, atravessei o Atlântico e fiz uma data de coisas e trabalhinhos, até que no final de 1967, estava um bocado sem rumo, e fui para Paris. Lá conheci alguns portugueses. Mas não andava só com portugueses e, dado o meu tipo de vida, estava disponível. Não tinha nada a perder. Vivia de pequenos trabalhos de sobrevivência, porteiro da noite em hotéis e coisas do género. Era bastante mais pobre que agora, embora atualmente não seja muito rico. [risos] Quando a revolta passou para as ruas e barricadas, participei ativamente nisso. Ajudei a erguer barricadas, dormi várias noites na Sorbonne. Também participei na ocupação da Casa dos Estudantes Portugueses, que nessa altura também era frequentada por filhos de gente do regime, o que tornava esse ato ainda mais irónico. Posso dizer que fui a muitas manifestações e tive a minha dose de gás lançado pela polícia na cara e nos olhos. 

O Maio de 68 era político ou era sobretudo existencial? Ou era tudo misturado?

Nas ruas flutuavam tantas bandeiras vermelhas quanto negras. Foi das poucas vezes que foi assim. Até porque os anarquistas têm uma certa tendência genética para se dissolverem. Agora, não posso dizer que foi uma revolução sexual porque não era esse o foco. Foi uma profunda mudança política, social e comportamental, mas essa pluralidade de coisas a acontecer ao mesmo tempo também não foi inventada pelo Maio de 68, sempre esteve imersa, creio eu, em todas as grandes revoltas e revoluções. Movimentos como os feministas estavam a acontecer na Europa por todo o lado; o que aconteceu de especial em França é que, durante algum tempo, houve um vazio de poder que foi sendo disputado nas ruas. Os operários e trabalhadores e os estudantes começaram a exigir as suas reivindicações, dizia-se “sejamos realistas e exijamos o impossível”, e a certa altura estava um país paralisado, com mais de dez milhões de trabalhadores em greve. Participei, nesses dias de ocupações de fábricas, com José Mário Branco, Luís Cília e com a Colette Magny em várias ações junto a fábricas, que depois do 25 de Abril se chamariam Canto Livre. 

Em que momento compreendeu que o Maio de 68 estava a terminar?

Lembro-me bem, passados 50 anos, o momento em que tive a plena consciência de que tudo estava perdido. A cidade já estava paralisada, havia falta de gasolina e greves nos transportes, andávamos muito a pé. Eu vivia na rive droite, para lá da Étoile. Tinha havido o tal vazio de que eu falava, De Gaulle tinha ido para a Alemanha, para uma base militar, pedir o apoio do exército. Poucas horas antes disso, eu tinha testemunhado um episódio curioso: Daniel Cohn–Bendit era descendente de uma família de refugiados judeus e, tendo viajado para a Alemanha, as autoridades francesas não o queriam deixar voltar. Eu estava na Sorbonne numa noite e começou a correr o boato de que o Daniel Cohn-Bendit tinha passado a fronteira clandestinamente e estava a chegar. Fomos todos para o maior anfiteatro porque ele ia aparecer. E ele aparece com o cabelo pintado de preto, ele que era cenoura, e com aquele sorriso. Fez um grande discurso – tinha uma enorme capacidade de comunicação, era um líder que se impunha naturalmente. Não precisava de galões para liderar. Foi um momento exaltante a que se seguiu esse ponto de viragem que guardo na memória. Tive a perceção de que o Maio de 68 estava a terminar quando estava a vir para casa, a pé, e ao passar pelos Campos Elísios deparei-me, a vir em sentido contrário, com uma grande manifestação com bandeiras tricolores. E, de repente, percebi que havia uma outra França, a chamada maioria silenciosa, que tinha acordado e estava na rua. Não é que eu tivesse perspetivado que pudesse ser diferente mas, naquele momento, entendi que estava a acabar e lembro-me de pensar que a História é mais complicada do que pensávamos. Isso foi-me muito útil quando voltei para viver o período depois do 25 de Abril, e perceber que as coisas não são irreversíveis.

Fala-se de que, apesar da derrota na tomada do poder, houve muitas coisas do Maio de 68 que ficaram. Como a liberalização dos costumes. Já sei que a sua biografia na Wikipédia foi martelada e que nunca esteve numa comunidade hippie. Mas nunca foi pelo amor livre?

Estive numa casa em Vancouver em que éramos dez, com gente que não era hippie nem deixava de ser. Havia um gajo que trabalhava num escritório e outros noutros sítios. É facto que o musical “Hair”, em que participei, fala dos hippies, mas foi um fenómeno efémero. E eu nunca fui, porque não é um tipo de ideologia que gostasse de assumir. Eu sou urbano, sou do Porto. Sou disso tudo, sou dos elétricos amarelos, “peace and love” não condiz exatamente comigo. Falou-se disso algures e ficou numa das biografias da Wikipédia. Eu não renego nem deixo de renegar isso. Sobre o amor livre, só tenho a dizer que todo o amor é livre ou não é amor.