Ao contrário do que sugere Augusto Santos Silva num dos seus artigos doutrinários no jornal “Público”, claro que não foi a recusa do liberalismo político característico das democracias pluralistas que determinou a contestação, à esquerda, da derrapagem pela “terceira via” do PS português e de tantos outros partidos socialistas, social-democratas e trabalhistas, membros da Internacional Socialista, por essa Europa fora! Foi, isso sim, a atracção pelo neoliberalismo e consequente adesão às políticas neoliberais e neoconservadoras, no contexto dum capitalismo selvagem propício ao oportunismo clientelar e ao arrivismo de políticos destituídos de convicções, que lançaram às urtigas valores basilares da social-democracia, causando significativa quebra da tensão ideológica e a substituição da ética do serviço público pela mera defesa de interesses pessoais através do carreirismo político.
É duro ler e ouvir “isto”, mas é verdade que foi precisamente “isto” que afastou a maioria dos partidos da Internacional Socialista das suas bases sociais de apoio, que deviam assentar essencialmente nas classes populares, no mundo do trabalho e em parcelas significativas da classe média, profundamente afectadas pelas recorrentes crises do modelo de capitalismo neoliberal e neoconservador que tomou conta das sociedades democráticas contemporâneas, corroendo-as e corrompendo-as até ao tutano. E também me parece claro que os partidos socialistas, social-democratas e trabalhistas não podem ter como referências principais e praticamente exclusivas o “europeísmo” e o “atlantismo” incondicionais, ditados por uma União Europeia em acentuado declínio e por uma NATO que deixou de se considerar a si própria como uma “aliança defensiva”, com fronteiras bem delimitadas, e se transformou numa organização militarista e belicista, sempre pronta a intervir nos quatro cantos do mundo, onde quer que estejam em causa os interesses exclusivos dos EUA, que não são necessariamente – convém frisá-lo – os interesses do Ocidente.
Há que lembrar aos actuais ideólogos encartados da ala direita do PS – acolhidos de braços abertos nas páginas de jornais dominados pela plutocracia neoliberal, tão interessada na viragem à direita do partido – que “a contra-revolução neoliberal (em que embarcaram os partidos da IS) é essencialmente anti-democrática”, como bem salientou há tempos o economista Paul Krugman, prémio Nobel da Economia e insuspeito de esquerdismo. De facto, como nenhuma maioria de eleitores aceitaria reduzir de livre vontade a cobertura social que protege a generalidade dos cidadãos nas sociedades democráticas, a única maneira de lhes forçar a mão (que deposita o voto nas urnas) tem sido levá-los a acreditar que “não há alternativa”. “There Is No Alternative”, como proclamava a já falecida baronesa Thatcher, que tanto fascinou o trabalhista Tony Blair, que por sua vez fascinou o católico Guterres, que por sua vez fascinou os seus pupilos (Sócrates, Vara e Seguro) e os actuais ideólogos do PS (Assis, Sousa Pinto e Santos Silva). Nenhum deles quer acreditar no que explicou Duverger há meio século, ao constatar numa obra de referência (“A Democracia sem o Povo”) que “a conjunção dos centros desemboca, regra geral, no imobilismo, isto é, no triunfo da direita”. Mas o maior cego é aquele que não quer ver…
O socialismo democrático europeu está em crise porque abdicou, há muito tempo, de tentar elaborar um pensamento político próprio, autónomo, genuinamente social-democrata (“europeísmo” e “atlantismo” são bastante pouco, diria mesmo: quase nada, além de não serem minimamente originais). E, sobretudo, porque julgou que se renovava e actualizava incorporando nos seus programas eleitorais ideias e propostas dos seus rivais de direita, adeptos do capitalismo financeiro especulativo, das políticas de austeridade neoliberais e da globalização sem regras.
Através duma metamorfose ideológica que designarei por «transformismo» – citando o grande filósofo marxista italiano António Gramsci – quase todos os partidos da Internacional Socialista se transformaram, sobretudo a partir das últimas décadas do século XX, em variantes mais suaves do neoliberalismo – tal como o thatcherismo na Grã-Bretanha e o reaganismo nos EUA se tornaram variantes, essas sim, neoliberais e neoconservadoras, das políticas conservadoras tradicionais.
Princípios e valores tão essenciais como a igualdade, a justiça social, a solidariedade, a universalidade e a redistribuição da riqueza – que constituíram originalmente a base do compromisso histórico da social-democracia – foram sendo substituídos por palavras de ordem tão apelativas mas equívocas como: criação de riqueza, reforma do Estado e modernização da economia. No vocabulário de dirigentes do socialismo democrático ou social-democracia europeia passaram a predominar termos com um cunho ideológico essencialmente conservador, tais como: equidade e livre escolha; indivíduo e família. Como que fazendo-se eco da famosa sentença proferida em 1987 pela papisa do neoliberalismo, Margaret Thatcher, que dizia: “There is no such thing as society…” (“Sociedade é coisa que não existe, só o indivíduo e a família existem”). E como se os mais desfavorecidos acaso pudessem usufruir da livre escolha, numa sociedade completamente mercantilizada, dominada pelo dinheiro, a ganância e o lucro. Será a “isto” que os ideólogos do PS pretendem regressar?
Por estes dias chamou-me à atenção uma curiosa coincidência de elogios, por parte de Carlos Moeda, do PSD, e de Francisco Assis, do PS, ao actual presidente da França, Emmanuel Macron – ministro de François Hollande que deixou de rastos a economia francesa e um dos ex-infiltrados no Partido Socialista Francês que o fizeram implodir. É que, precisamente por esta altura, coincidência ainda maior, o semanário francês “Marianne” (totalmente insuspeito de esquerdismo) publicou uma série de textos dedicados a Macron, com uma síntese letal na capa, na qual se pode ler, sobre uma foto do PR francês, que a sua política é “toda à direita” (“A droite toute…”), e que ele é “O LIQUIDATÁRIO” (“LE LIQUIDATEUR”) porque “ele despreza os sindicatos, ignora os ferroviários, maltrata os funcionários públicos, abafa o Parlamento, provoca os laicos e enche de mimos os católicos”. Há coincidências tramadas!
Não é de esquerdismo nem de radicalismo que se trata aqui. Do que se trata é de reabilitar o socialismo democrático ou social-democracia, que me pareceu que o PS estava a recuperar, nestes dois últimos anos de governo, e que agora me parece que está em risco com aproximações espectaculares – para Marcelo ver? – ao PPD-PSD de Rui Rio, e com “avisos” bem fortes, despropositados e mal-agradecidos dirigidos aos partidos à esquerda do PS que sustentam este governo na Assembleia da República. Não me digam que querem seguir o caminho do “fascinante” Macron, reabilitando, do mesmo passo, a lógica do “bloco central”, de tão má memória para o Partido Socialista?! Se assim é, mais vale refundarem o PS, começando por lhe atribuir um nome mais consentâneo com as teses defendidas pelos actuais ideólogos da agremiação: talvez passarem a chamar-lhe Partido do Centro-Esquerda Europeísta e Atlantista (PCEEA). Não foi o Partido Comunista Italiano que se deixou dissolver numa nebulosa que se chama Partido Democrático, que tem sido um fiasco eleitoral e que deu completamente cabo, em Itália, da ideia de socialismo democrático ou social-democracia?! Se o PS português pretende dar cabo da excelente experiência que tem sido governar mais à esquerda, prepare-se para o grande trambolhão que vai dar, ajudando a reabilitar uma direita que ainda está a lamber feridas.
Aconteça o que acontecer, uma coisa é certa: a marca genética do PS é o socialismo democrático, e não o “europeísmo” e o “atlantismo” que fazem os seus dirigentes correr atrás dos bombardeamentos ordenados por Donald Trump, Theresa May e Emmanuel Macron como ratinhos amestrados ou cordeirinhos assustados!