João Pedro George. “Nada me dá mais prazer do que irritar aqueles que se acham mais cultos que a maioria”

João Pedro George. “Nada me dá mais prazer do que irritar aqueles que se acham mais cultos que a maioria”


Em guerra aberta aos lugares-comuns, ao vedetismo e às pobres técnicas de engate dos escritores portugueses, João Pedro George avisa desde logo que “Mamas & Badanas” é mais para rir do que para expor grandes conspirações. O crime aqui é o mais banal, mas, por uma vez, a culpa é encontrada no seu harém


Por vezes, nada resulta melhor do que pôr uma lupa sobre a coisa. Atalhar caminho pela via das minúcias tidas por insignificantes, onde o diabo se esconde. O cadáver está aí, arrastado pela corrente, e ninguém o puxa das águas. Com tanto exame das propriedades do espírito da literatura, o que tem faltado são perícias forenses. E mesmo sem pensar em grandes testes de laboratório, é imensa a margem para alinhar pistas relevantes sobre um crime que todos reportam, todos lamentam, mas poucos se arriscam a fazer pela literatura o que um Poirot, Miss Marple ou Holmes fizeram pela resolução de homicídios. Ainda que ficcionais, os princípios, a dedicação a recolher provas é a mesma, e aquela que busca uma explicação aplica-se do mesmo modo à realidade. João Pedro George é o nosso comissário Maigret no que toca a crimes literários. Não com um faro tão apurado como Poirot, não tão surpreendente como Miss Marple, nem tão genial como Holmes, mas ferozmente cínico, com os pés assentes na terra, paciente, empenhado, é o crítico que, entre nós, menos receio tem de arregaçar as mangas, sujar as mãos nos aspectos menos gloriosos, mais patéticos da vida literária. "Mamas & Badanas" é a sua mais recente incursão num género de análise que privilegia tanto a prova como o humor. Ninguém irá para a cadeia por isto, mas, como sempre, não faltará por aí um bando de sumidades ofendidas por serem olhadas à lupa.

O rigor ao servires-te de abundantes exemplos, através do uso de muitas citações, faz do livro uma súmula da bimbalhice repetitiva do marketing à volta dos livros. Se é evidente o lado satírico, qual é a sua relevância crítica?
O excesso de citações é propositado, para que não possam dizer que estou a manipular as coisas, a recorrer a excepções, para mostrar que aquilo é mais a regra que a excepção. Ou seja, que estou a lidar com estruturas mentais, culturais, sociais.

Como é que a edição se deixa refocilar neste catálogo de lugares-comuns?
A repetição de lugares-comuns é endógena ao nosso sistema literário. Aquela história do «Pierre Menard, Autor do Quixote», segundo a qual a repetição implica algum grau de transformação, é muito bonita enquanto criação literária do Jorge Luís Borges. Mas será que isso também se aplica às contracapas dos livros? Tenho muitas dúvidas. Mas não deixa de ser engraçado imaginar que todos os textos das contracapas dos livros editados em Portugal são escritos pela mesma pessoa. Um homem ou uma mulher fechados num gabinete com uma única tarefa: escrever textos para todas as contracapas dos livros editados em Portugal.

É um sinal de abandalhamento?
Talvez esse seja um dos sonhos húmidos das editoras portuguesas, porque isso permitir-lhes-ia poupar imensas verbas, para utilizar a linguagem economicista. Os cortes já tinham sido aplicados ao trabalho de revisão tipográfica, tantas são as gralhas que encontramos nos livros, mas também nos jornais e nas revistas. Agora, pelos vistos, a racionalização de custos está a atingir as contracapas.

Porque é que isso começou a acontecer?
Tanto quanto sei, os departamentos de marketing das editoras têm hoje mais poder do que os próprios editores, essa figura altamente estimável que, de ano para ano, tem vindo a perder competências e se tem de submeter aos altos critérios de pessoas que podem até perceber muito de vendas de champôs e de perfumes mas que, de livros, parecem perceber pouco ou muito pouco.

Então a concentração editorial foi um fiasco?
Pelo menos a avaliar pelo discurso das próprias editoras, que dizem que o negócio do livro está em crise, que há cada vez menos pessoas a comprar livros. Se é assim, não pode ser apenas por culpa do nível cultural do país, as editoras também devem estar a fazer mal o seu trabalho. É que, a avaliar pelas fastidiosas repetições que encontramos nas contracapas, as editoras andam demasiado ocupadas a congeminar fórmulas para vender livros como quem está a vender fraldas descartáveis.

Em que é que isto afecta o próprio prestígio dos livros?
Esses lugares-comuns ou clichés são aplicados de forma homogénea e em série, o que retira singularidade ou especificidade aos livros e aos próprios autores. É a McDonaldização da edição, é a aplicação do modelo das Padarias Portuguesas ao livro. Com esta diferença: os preços mantêm-se altos ou elevados mas a qualidade da edição diminuiu. Nos restaurantes McDonald’s, pelo menos, os preços mantêm-se acessíveis e a comida até tem melhorado, passou a incluir sopas, fruta, vegetais, até bifanas.

Não crês que este livro possa, ao tentar ser uma sátira, acabar como uma celebração daquele vazio?
Sim, estou a perceber. O perigo de o meu livro ser, ele próprio, um produto desta cultura que critico.

Porque se expões à saciedade esse aspecto quase histérico do marketing, e rompes com as categorias… Temos ali citações em catadupa, do José Rodrigues dos Santos mas também do Gonçalo M. Tavares, Lobo Antunes…
Essa transgressão das fronteiras entre a literatura dita séria, erudita ou literária, ou como lhe quiseres chamar, e a outra, dita ligeira, menos séria, popular ou menor, é, uma vez mais, propositada, intencional. Porque sei que isso irrita muitas vaidades. E não há nada que me dê mais prazer do que irritar a vaidade, o elitismo bacoco, a presunção enfática, o snobismo daqueles que se consideram mais cultos e mais sofisticados que a maioria. Podem até sê-lo, mas manda a boa educação e a decência social que não o atirem à cara dos outros, porque isso humilha e diminui, inferioriza.

Essa empáfia parece-te representativa do quê?
A questão é esta e já não sei onde li uma frase deste género: aquilo que um escritor faz é de maior valia para o mundo do que o operário que fez a canalização dos esgotos ou trata do lixo urbano? Esta ideia de que a literatura e as artes são coisas à parte, mais dignas, é um dos legados que as sociedades aristocráticas transmitiram às democracias e que sobrevive, sobretudo, na nostalgia de alguns imbecis ou em alguns porteiros de discoteca, aqueles que dizem quem é que pode entrar e quem é que fica à porta.

A literatura portuguesa é mais do que nunca um Country Club?
Deve ser um ressentimento meu, porque muitas vezes fiquei sentado nas Escadinhas da Praia, em Santos, barrado pelo porteiro do Plateau, ou especado na Rua da Atalaia, no Bairro Alto, à porta do Frágil, porque a Margarida Martins não me deixava entrar, com o argumento de que aquele sítio era só para «clientes habituais». Desde esse dia passei a bater à porta do Frágil sempre que ia ao Bairro Alto, ou seja, quase todos os dias. Só para chatear a Margarida Martins, que de resto parece estar a aplicar o mesmo critério na Junta de Freguesia de Arroios, quando procede à higienização daquela zona da cidade, aterrorizando as associações que ferem o seu sentido estético e que a incomodam porque não se calam, porque protestam, porque criticam, porque fazem reivindicações, o que põe em causa o seu conforto e a sua concepção higienizada ou asséptica da cidade. Por outro lado, vai abrindo e privilegiando outras associações ou lojas, como as do Largo do Intendente. Porquê? Porque esse género de lojas, cafés ou associações servem a especulação imobiliária que está em roda livre na cidade de Lisboa. Ora, qual é a principal função do porteiro de discoteca: higienizar o ambiente no seu interior.

Um dos escritores mais úteis para aquilo que tu fazes é o Pedro Chagas Freitas. Parece que, ajudado pelo marketing, aquilo que hoje se publica está a criar o terreno de uma grande imbecilidade, de uma terrível impostura.
Não é o único. Há também o Miguel Sousa Tavares, sobretudo quando digo que a grande influência dele, nas badanas, é uma escritora que quase ninguém conhece, Elvira da Costa Nunes. Mas aqui já estamos entrar na secção das badanas. O que eu pretendo demonstrar, aí, é que, aplicando a linguagem formatada, e tantas vezes incompreensível da teoria literária, a livros considerados «de usar e deitar fora», e vice-versa, ou seja, aplicando uma linguagem não especializada à literatura dita «séria», torna-se possível perceber que aquilo que confere qualidade a um livro é a autoridade atribuída a quem escreve sobre esse livro.

De onde provém essa autoridade?
De muitas coisas: da posição social do crítico, do meio onde ele escreve (a mesma crítica publicada no Expresso seria muito diferente, de todos os pontos de vista, se ela aparecesse, em vez disso, no jornal As Beiras) e da própria linguagem, das estratégias estilísticas e retóricas. Claro que hoje a crítica dos jornais e revistas perdeu muita da sua autoridade, vivemos hoje aquilo a que alguns chamam a «descentralização» da função da crítica, por causa do advento e da importância dos blogues e das redes sociais, onde o leitor reclama para si capacidade de juízo crítico sobre aquilo que lê.

Que peso teve nisso a internet?
Se é verdade que a crítica perdeu peso graças ao surgimento de um meio de comunicação poderosíssimo porque muito mais democrático, como a Internet, não é menos verdade que a crítica tem grandes responsabilidades na perda de legitimidade da sua função cultural. Porque aceitou ficar refém dos interesses editoriais e das redes de contactos que dão acesso às oportunidades de trabalho no meio cultural, que como sabemos são muito reduzidas e tornam feroz a concorrência entre os agentes que circulam no interior desse meio. Para sobreviver num meio darwiniano como é a cultura portuguesa no seu sentido mais estrito, é preciso fazer alianças e pertencer aos grupos dominantes que controlam as ofertas de emprego e de trabalho.

Então não se vê uma saída?
A cultura e a sociedade, para existirem, precisam e dependem das alianças recíprocas e da conjugação de múltiplos interesses, ainda assim, há determinados meios, sobretudo aqueles, como o campo cultural e intelectual, de que fazem parte as artes, a literatura e as universidades, que deveriam ter um especial cuidado com o amiguismo, o clientelismo, a corrupção intelectual, etc. Precisamente porque a sua especificidade e autoridade provêm de uma retórica da independência, do espírito de crítica livre, do ataque às convenções, da liberdade de opiniões, etc. Não é possível respeitar ou considerar alguém cujas opiniões são determinadas pela necessidade de agradar a este ou àquele, para não desagradar a fulano ou beltrano, para continuar a ser convidado para isto ou para aquilo.

Estava a ler o livro e, ao pousá-lo, alguém com quem estava pegou nele, leu por um bocado, e disse-me: tens a mania que lês coisas muito intelectuais mas depois apanho-te a ler a Caras da literatura…
(Risos.) De certo modo, essa reacção corresponde a um dos objectivos do livro. Que é: hoje em dia, a forma como a maioria das editoras publica e promove os livros aproxima-se bastante do modelo das revistas cor-de-rosa. O mesmo se aplica à forma como os autores se promovem nas badanas, que parece saído dessas revistas. De certo modo, o modelo cor-de-rosa foi importado para as badanas, quando os autores dizem que são pais e avós, que têm não sei quantos filhos e um gato ou um cão, quais os pratos de comida que mais gostam, etc. Estamos no domínio da revista cor-de-rosa. Se juntássemos todas as badanas e as publicássemos numa única revista dava uma excelente Caras, Lux ou Vip. Eu, desde logo, comprava uma revista dessas.

Sempre que discutimos estas questões, sempre que se põe em causa o marketing como modelo operativo no meio editorial, surgem aqueles que se sentem muito integrados neste meio e que retrucam: que mal tem as editoras promoverem os livros? Elas precisam de vender, as pessoas têm que saber que o livro existe… 
Respondo a isso dizendo que o discurso dos editores é sempre um discurso de crise. Sempre foi. Não me lembro de ouvir um editor a dizer que o negócio do livro está a correr bem. Se é assim, então há qualquer coisa de errado na estratégia adoptada para vender livros. Se há uma crise do livro, se os leitores compram menos livros, é que se está a insistir numa estratégia errada. Os editores têm de vender livros e quantos mais venderem melhor. Melhor para ti, melhor para mim, melhor para quem escreve, melhor para quem ganha a vida com os livros, seja a escrevê-los seja a vendê-los. Podem contar comigo para ajudar a vender livros, sobretudo os meus, porque me dava muito jeito comprar um computador novo (o meu está sempre a bloquear e a bateria já nem sequer funciona, por isso tem de estar sempre ligado à corrente).

Há uma espécie de válvula de segurança que tu introduzes no livro…
Que é gozar comigo próprio?

Sim, estás sempre a enquadrar-te neste esquema. É uma forma de te defenderes ou é um modo de assumires que não conseguiste escapar a estes constrangimentos?
Sim, é isso mesmo. Mas não só. Desde logo, não acredito na mitologia do indivíduo autónomo e livre capaz de lutar, sozinho, contra as forças e as instituições sociais. As competências críticas que desenvolvemos ao longo da vida permitem-nos denunciar as injustiças e afrontar um determinado sistema ou campo social, mas daí até acreditarmos que os actos singulares de pessoas isoladas conseguem provocar mudanças nas grandes estruturas vai um grande passo.

Não te revês no exemplo dos bravos gauleses, os pequenos editores independentes?
Essa ideia do herói solitário e completamente autónomo que, contra tudo e contra todos, mobilizando apenas o poder do seu intelecto, da sua vontade e da sua imaginação – forças totalmente circunstanciais, na medida em que nunca vão além do tempo de vida dessa pessoa em concreto –, consegue libertar-se dos constrangimentos sociais e mudar o curso dos grandes acontecimentos e das grandes estruturas, sejam elas mentais ou materiais, é uma ficção que pode dar bons filmes e bons romances, como o Robinson Crusoe, mas não corresponde à experiência da esmagadora maioria das pessoas. Isto dito, é óbvio que sou também um produto do sistema cultural em que estou integrado. E que, querendo eu que os meus livros vendam e cheguem a muitos leitores, tenho necessariamente de aceitar alguns compromissos.

Nunca te puseste a hipótese de explorar outra via?
Como não tenho nem o espírito de iniciativa, nem a energia para montar uma editora e fazer tudo o que me apetece, tenho de me aceitar algumas regras do jogo. Se durante alguns anos consegui viver exclusivamente da escrita foi porque aceitei algumas dessas regras, por exemplo, escrevendo alguns livros assinados por outros. Isso não tem nada de especial, nem daí vem grande mal ao mundo. O importante é a forma como nos posicionamos em relação a esses compromissos, ou seja, se assumimos uma atitude de obediência estrita, como quem vive numa espécie de lago de água estagnada onde quase não existe oxigénio, ou de obediência frouxa, onde apesar de tudo é possível respirar.

Sempre que se fala de edição, fala-se das pequenas editoras ou dos independentes como se isso desse para reflorestar a paisagem. Mas no espaço com maior impacto comercial, encontraste exemplos de editoras que escapam a isso?
Sim, a Antígona e a Orfeu Negro, que começou por estar ligada à Antígona e hoje se autonomizou, embora partilhem o mesmo edifício. Tanto uma como outra, além de graficamente impecáveis, procuram estabelecer relações significativas com os leitores, não olham para os livros apenas como um meio de ganhar dinheiro. Também gosto de alguns livros da Sistema Solar ou da E-Primatur.

Um aspecto que tocas quando te referes especificamente às badanas é o facto de o escritor hoje já não se apresentar simplesmente como um escritor, mas também como uma espécie de guru, de especialista, de grande investigador…
Isso é marketing puro e duro, serve para dizer ao leitor que aquele livro é digno de confiança, para o persuadir a gastar dinheiro. Mas além dos grandes investigadores, também há os escritores aventureiros, muito viajados, como o Afonso Cruz e o Possidónio Cachapa, ou os factótuns, como o Bruno Vieira Amaral, o Pedro Marques Lopes ou o Pedro Chagas Freitas, que fazem listas dos trabalhos que já fizeram, desde porteiros de discoteca a gasolineiros.

Qual te parece que é a ordem de ideias por trás dessas construções?
O objectivo é o mesmo: convencer o leitor de que os livros deles são o resultado de uma grande experiência de vida e que não são escritores de gabinete, não passam a vida nas bibliotecas a gastar as pestanas, que têm as mãos sujas de realidade. Isso faz parte de uma certa tradição literária que assenta no pressuposto de que quanto mais rica e diversa a vida de um escritor maior a sua qualidade literária. É o modelo do Hemingway, do escritor que conduziu ambulâncias na I Guerra Mundial, toureou touros, foi repórter na Guerra Civil de Espanha, pescou marlins, caçou em África, fez boxe. Como quem diz: «Já fiz muitas coisas, tenho uma vida que não se parece a nenhuma outra, tenho muito para contar». Como se isso fosse condição suficiente para se escrever um bom livro. Gente com muita experiência, com muita coisa para contar, há por aí aos pontapés.

Em que medida é que te parece que este realismo, que confirma a nossa visão do mundo, é uma ideologia disfarçada, supostamente pragmática, e para a qual não há alternativa?
Há aqui talvez um equívoco em relação àquilo que se entende por realismo. Porque o realismo não é uma imitação fotográfica da realidade, mas antes uma representação da experiência subjectiva da realidade. Daí que muitas vezes se diga que a realidade não existe, o que existe é uma pluralidade de realidades. Em relação ao neoliberalismo e à valorização que faz do pragmatismo e do concreto, parece-me que ela decorre da contaminação do discurso economicista, remete para a importância daquilo que é produtivo, materialmente produtivo. Em contraponto, o que não é produtivo carece de realidade, é visto como inútil, como correspondendo a coisas idealizadas, inventadas, fictícias. Coisas que, do ponto de vista económico, tendem a ser vistas como não rentáveis ou pouco lucrativas. Se não contribui para o crescimento económico, não é legítimo, ou tem menos legitimidade.
 

Qual é o ideal então?
O mais importante é que as pessoas estejam quase todas focadas num único objectivo, o de trabalhar para um mercado que não pode parar de crescer. É a ideologia do crescimento, uma utopia como qualquer outra. Crescer sempre mas porquê e para onde? Nunca se percebe muito bem para onde é que essa obsessão com o crescimento económico nos vai levar. Diz-se, vagamente, que é para melhorar a qualidade de vida das pessoas, para que haja mais dinheiro para redistribuir pelos mais pobres…

Curiosamente, a desigualdade só se intensificou ainda mais.
Sim, aquilo a que temos assistido, nos últimos anos, é a uma redistribuição cada vez mais desigual do dinheiro. Nessa ideologia do crescimento há outra questão que me parece importante: o crescimento é sempre do ponto de vista económico, sublinha-se muito pouco a necessidade de crescermos também do ponto de vista da nossa consciencialização cívica, por exemplo, em relação ao nosso passado colonial, ao racismo, muitas vezes subterrâneo, que continua a existir na nossa sociedade, em termos dos direitos das mulheres…

Voltando ao livro. Depois de o ler fiquei com a impressão que se trata de uma pesquisa realizada por uma pessoa obsessiva-compulsiva.
Completamente. Sou um tipo que tem um fundo obsessivo-compulsivo. Só não tenho mais porque me trato. (Risos.) Não vou ao ponto de verificar, várias vezes por dia, se a torneira do gás ou a porta de casa estão fechadas. Mas que tenho um fundo obsessivo-compulsivo, sem dúvida. A mania de fazer listas, de procurar relações obscuras entre as coisas… Depois, sou um tipo preocupado com os detalhes, e sinto um fascínio pela literatura dos remédios, as bulas. Talvez pelo meu jeito para relacionar sintomas com doenças mortais, um sinal na pele com um melanoma, uma hérnia inguinal com um tumor, e por aí diante. 

Passando então às Mamas. Neste texto, que apareceu primeiro na revista Ler, mais uma vez brincando, além de apontares para o lado pindérico e tonto destas descrições, mostras que a mulher é frequentemente tratada como paisagem.
Não tanto como paisagem, isso seria um exagero e até injusto, a mulher é sobretudo objecto de um olhar masculino, que é o olhar dominante. Porque o olhar masculino é o olhar universal, o que foi naturalizado e normalizado, tanto que quase nunca nos apercebemos disso. Dou-te um exemplo desta normalização do olhar masculino. [Pega num conjunto de recortes e páginas de revistas e jornais portugueses bem recentes e dispõe-as num mosaico.] Aqui o que se mostra é que é o corpo da mulher que é sobretudo objecto de representação sensual, sexual, erótica, etc. Tu não encontras praticamente representações do corpo masculino com este tipo de atributos. Não encontras um escritor a falar do corpo masculino e descrevendo uma personagem masculina com base na descrição dos seus atributos físicos, erotizando-os, por exemplo, que tem umas pernas muito bonitas ou bem desenhadas, um rabo bem esculpido, um peito atraente, que deixa as mulheres doidas de desejo. Não encontras isso, e acho que isso acontece porque, se os escritores homens o fizessem, se idealizassem o corpo do homem desse ponto de vista erotizado, provavelmente sentir-se-iam menos homens. Menos viris. O único aspecto do corpo do homem que costuma ser representado é o pénis erecto. O pénis com uma tusa gigante. Porque isso é uma marca ou um indicador de virilidade. As descrições mais pormenorizadas do corpo masculino aparecem quando se trata de velhos, normalmente para representar a ideia de decadência física, etc. Não encontrei praticamente nenhum livro onde o corpo do homem fosse representado da mesma maneira que o corpo da mulher, como um objecto sensual. Porque nós já normalizámos estas convenções. Para te dar um exemplo de como o olhar masculino é o olhar universal e o olhar feminino é só feminino. Pegas no jornal Expresso, que praticamente só tem colaboradores homens nas colunas de opinião, como de resto em quase todos os outros jornais e revistas… Aquelas duas páginas do Expresso onde escrevem o Daniel Oliveira, o Henrique Raposo, o Pedro Adão e Silva e outros, são paradigmáticas. Aquilo parece o Baile dos Bombeiros: é só homens. E tu olhas para aquilo e parece-te normal. Mas agora faz o exercício de ter só mulheres a escreverem naquelas duas páginas. Imagina que naquelas duas páginas só escreviam mulheres. O que é que a maior parte dos leitores pensaria? Que aquilo é um jornal para mulheres. As pessoas só reparam naquilo a que não estão habituadas. Tenho aqui uns exemplos para te mostrar. Repara aqui nestas páginas da revista Sábado. O que é que salta aqui à vista? Isto são citações, as frases da semana. E o que é que te salta aqui à vista?

Para tornar a página atraente expõem as mulheres em posições sensuais.
E os homens como é que estão representados?

Estão sempre de fato…
Fato e gravata. Porque há esta ideia de que a seriedade é um atributo masculino. Quando tu olhas para estas fotografias de homens e mulheres, qual é a opinião que te parece mais respeitável? Vais respeitar a opinião de uma mulher que está assim pouco vestida, em posições provocantes, eróticas, com os peitos a saltar dos decotes e as pernas à mostra quase até à cintura? Não achas que a opinião deste tipo, que aparece de fato e gravata, é muito mais respeitável do que a desta mulher que está praticamente numa posição de engate? Isto são coisas que nós interiorizamos e que se tornam naturais, de tal maneira que só muito dificilmente, com um grande esforço, é que nos damos conta delas. Trata-se de uma forma, não digo que consciente ou intencional, de deslegitimar a opinião da mulher. Nós estamos permanentemente a ser bombardeados por este tipo de imagens com mensagens subliminares, que têm um fundo profundamente machista, ou patriarcal.

Para que se perceba: estamos a ver cinco páginas da Sábado. Na zona das citações. Temos figuras como o António Costa, o João Salgueiro, o Henrique Granadeiro…
Todos sempre de fato e gravata. E as mulheres sempre com uns decotes muito proeminentes, e em posições insinuantes. Isso é uma forma de menorizar a mulher, deslegitimar a sua capacidade intelectual, a sua capacidade de emitir juízos sérios, que merecem a atenção dos nossos neurónios e não apenas do nosso pénis. Foi precisamente isso que pretendi demonstrar com este texto sobre as mamas. Que a literatura, ao contrário do que diz um certo discurso ou retórica que se ouve muito no campo das artes e da cultura, ou seja, que a cultura tem como função criticar, denunciar as convenções, pôr em causa os lugares comuns, os estereótipos, fazer-nos pensar, etc. No final, acabamos por verificar que a literatura tem sido responsável pela reprodução de muitos desses estereótipos. Demonstrar isto de uma forma divertida e gozona é um dos grandes objectivos deste livro, falar de coisas sérias a gozar. Porque este livro é também, e sobretudo, talvez, um gozo, um divertimento. Não gostaria nada de passar a ideia, que talvez seja aquela que acaba por transparecer nesta entrevista, de que se trata de um livro sisudo ou soturno, irritante e irritado. O livro é apenas o trabalho de um tipo obcecado com livros e que está permanentemente a consultá-los, a compará-los, a mexer neles, a sublinhá-los, a dobrá-los, a atirá-los para o ar, e que, no meio disso tudo, encontra alguns padrões. Isso tem com certeza que ver com a minha maneira de ser, essa mania de encontrar determinadas relações entre as coisas e procurar um ângulo divertido ou delirante. Que podem não ser muito significativas ou importantes, mas que dão sobretudo gozo. Há aqui muitas intenções que atribuo aos autores e que provavelmente não correspondem à verdade, porque eu não os conheço pessoalmente. No entanto, mesmo que as coisas que eles escrevem não tenham as intenções que eu lhes imputo, a verdade é que, encaradas de um certo ponto de vista, são ridículas ou absurdas. Muitas vezes, basta ler as coisas de forma literal para elas se tornarem divertidas. Ou elogiando exageradamente a sua escrita para chamar a atenção de algumas estruturas mentais que se reproduzem geração atrás de geração. Houve algumas reacções no Facebook de mulheres que, sem terem lido o texto, o acusaram de ser machista. E que era inadmissível que a revista Ler publicasse um texto daqueles. Repara, opiniões baseadas apenas na leitura do título que aparecia na capa da revista. Felizmente, o director da revista não foi dessa opinião e pagou-me bem e, sobretudo, a tempo e horas, uma coisa que é pouco habitual neste meio. Claro que essa representação do corpo feminino está também ligada a um efeito de moda, para vender mais livros. Mas isso ainda dá mais razão ao meu argumento. Vendem mais porque é aquilo que está naturalizado e normalizado. Esse efeito de moda vê-se, por exemplo, na passagem das mamas pequenas para as mamas muito grandes, enormes, às vezes até descomunais. Mas a única coisa que mudou, aí, foi o tamanho. Porque no resto é quase tudo igual. Por exemplo, a ideia de que a mulher veste determinada camisa ou saia apenas com o intuito de seduzir os homens. E isso normalmente é associado a uma espécie de perversão, quando se compara a mulher, por exemplo, com determinados animais, como a serpente ou a cobra. [Volta aos recortes.] Repara nesta página do Expresso que assinala o Dia Internacional da Mulher. O que é que eles vão buscar para representar a mulher?

As pernas…
Nós muitas vezes não reparamos nestas coisas, no entanto, estamos permanentemente a interiorizá-las. 

O curioso é que temos um discurso que toda a gente consegue perceber, de um machismo galopante, em que começa a haver algum cuidado com as palavras que se utiliza, mas que nas representações continua muito presente.
Faz-me muita confusão esta cruzada da direita, e não só, contra o politicamente correcto. Sou um defensor, em muitas coisas, do politicamente correcto.

Porque te parece que é uma forma de autovigilância…
Acho que, quando levada ao extremo, essa autovigilância é negativa e até contraproducente. Mas acho que essa vigilância é importante. Porque é o resultado de uma autorreflexividade, de uma autoconsciência em relação à nossa posição na sociedade, sobretudo à nossa posição como homens, brancos, heterossexuais, cristãos, de classe média. Nós somos a norma, fazemos parte do sistema central de valores, fazemos parte do centro, digamos assim. Por isso é que faz muita confusão aqueles artistas que se colocam na posição do marginal, do outsider. Para um homem branco, artista, é fácil escolher a posição, estabelecida há muito tempo, do outsider, do maldito. Do que essas pessoas não se costumam lembrar é que a sua raça e o seu género lhes conferem muitos privilégios que outros, aqueles que não escolheram ser marginais mas que são vistos e tratados realmente, quotidianamente, como marginais, não têm à sua disposição. Por isso é muito importante termos consciência da posição que cada um de nós ocupa na sociedade. Ou, o que é o mesmo, consciência em relação às diferentes formas de poder e de hierarquia que existem na sociedade. Acho que termos isso em conta é fundamental para nos tratarmos uns aos outros com dignidade e respeito. Pessoas que tiveram o privilégio de tirar um curso universitário e que, além disso, têm acesso ao espaço público e conseguem fazer chegar as suas opiniões a muitas pessoas devem obrigar-se a um esforço ainda maior de consciencialização relativamente a muitos destes problemas. Qual é a alternativa ao politicamente correcto? É dar livre curso aos nossos instintos e podermos dizer, em todas as situações, independentemente daqueles a quem nos dirigimos, tudo o que nos vem à cabeça? Até podemos fazê-lo, ninguém vai preso por isso, mas ao mesmo tempo manifestar-se escandalizado quando alguém nos responde, dizendo que não gostou daquilo que foi dito ou da forma como a caricatura foi feita, que esse discurso tende a contribuir para reforçar determinadas desigualdades, injustiças ou marginalizações, já me parece uma coisa lamentável. Sobretudo quando se utiliza o argumento de que essas críticas subentendem a defesa da censura e da criminalização das afirmações machistas, racistas, homofóbicas, etc. Isso é intelectualmente desonesto. O espaço público é um espaço conflitual, onde se esgrimem argumentos, tomadas de posição, pontos de vista. Ora, dizer que aqueles que nos criticam pretendem calar-nos, exercer uma espécie de censura pidesca é uma forma de retirar legitimidade às posições dos outros. Quando, por vezes, o que está apenas em causa é que certas pessoas não acham divertidas determinadas piadas. Querer que todos achem piada, sempre, àquilo que dizemos é pueril.

Mas no ataque ao politicamente correcto não está subjacente uma crítica desse discurso idealista, e muitas vezes hipócrita, em que se dizem as coisas só por dizer mas depois, como bem referes, nas imagens, que é o principal veículo de comunicação na nossa…
Se leres os jornais portugueses eles não têm qualquer preocupação com a representatividade de género ou de origem étnica. Esse valor, que me parece um valor importante das democracias, e tanto assim é que vês que há um cuidado na imprensa em ter uma representatividade da direita e da esquerda, não existe quando se trata das mulheres, dos negros, dos homossexuais, etc. É óbvio que o Expresso, como todos os jornais privados, tem todo o direito de fazer um jornal de homens e só com homens. Agora, não venham depois colocar-se na posição de quem não aceita a crítica. Quando critico o Expresso não estou a dizer que, por não ter uma preocupação com essa representatividade mais vasta, o jornal deve ser fechado, sujeito a censura prévia. Nada disso. Quanto a mim, eles que prossigam. Trata-se apenas de dizer que as nossas escolhas, sobretudo quando feitas no espaço público, estão sujeitas à crítica e à discussão, por vezes contundente e frontal. Na minha opinião, os jornais, as revistas, as televisões deveriam preocupar-se em representar o máximo de sectores da sociedade. O jornal The Guardian, por exemplo, tem essa preocupação, procura ter uma grande diversidade de colunistas e que eles representem o máximo de grupos de que é feita a sociedade inglesa. Nas suas colunas de opinião encontramos intelectuais ou outros assumidamente homossexuais, ou negros, indianos, procura que o desnível entre homens e mulheres não seja muito grande. Se eu tivesse um jornal ou uma revista gostaria de ter essa preocupação. Até por questões comerciais, essa representatividade me parece uma atitude inteligente. Acho que isso é também uma questão de decência social por parte daqueles que têm mais poder e que ocupam lugares importantes no espaço público.