tribulações ocorridas há já algum tempo na chefia do Exército português – e que agora não vêm ao caso – desencadearam, por parte de alguns militares e civis, declarações de exaltação patriótica em defesa não só do generalato mas também da opacidade e do sigilo militar corporativos, tentando convencer-nos de que é imperioso respeitar as mais altas patentes militares porque só um militar capaz de “dar a vida pela pátria” é que chega a general. O que, não sendo exacto, me leva a concluir que “dar a vida pela Pátria” não significa necessariamente “morrer pela Pátria”, dado que são raríssimas as notícias sobre generais mortos em combate e não há memória de militares mortos pela Pátria serem promovidos a generais.
Para não ir demasiado longe numa visita ao passado, recuarei apenas até ao século XX e às suas terríveis guerras, começando por evocar um penoso exemplo ocorrido na II Guerra Mundial. De facto, o baronete Sir Arthur “Bomber” Harris – nomeado em 1942 comandante-chefe do Bomber Command da Royal Air Force e promovido a Marechal do Ar – terá sido responsável pela morte de quase um milhão de civis alemães graças aos bombardeamentos aterradores que ordenou sobre mais de mil cidades, vilas e aldeias alemãs, sobre as quais foram despejadas um milhão de toneladas de bombas incendiárias e explosivas. Para começar, em Maio de 1942, as bombas que devastaram a cidade de Colónia. Para terminar, em Fevereiro de 1945, as bombas que arrasaram a cidade de Dresde.
Refiro apenas estes dois exemplos, entre muitos outros que serviriam para demonstrar que – aparte o hediondo holocausto de seis milhões de judeus cometido pelos nazis – os generais “Aliados” terão sido, afinal, tão cruéis como os generais do “Eixo” (Alemanha, Itália e Japão) durante a II Guerra Mundial. Claro que os generais norte-americanos não lhes ficaram atrás: devastaram Tóquio com bombas incendiárias e explosivas, por ordem do general Curtis LeMay, e arrasaram Hiroshima e Nagasaki com duas bombas atómicas, por ordem do presidente dos EUA Harry Truman.
Será, então, correcto afirmar que os milhões de civis alemães e japoneses chacinados pelas bombas deram a vida pela Pátria? Não me parece. Acho que foram simplesmente massacrados – quando nem sequer estavam armados nem eram combatentes – por ordem de generais capazes de «dar a vida de outros pela Pátria» e não propriamente de se arriscarem a «dar a vida deles mesmos pela Pátria», caso raríssimo entre a espécie…
Basta lembrar, por exemplo, os incompetentíssimos generais da I Guerra Mundial, para os quais a vida dos seus soldados não era uma prioridade, nunca chafurdaram na lama das trincheiras, “tresleram” e “desfiguraram” Clausewitz, eram adeptos do “ataque à outrance”, acreditavam mais no “poder da vontade” do que no “poder de fogo”, e puseram em prática planos de guerra obsoletos e ridículos: o Plano XVII, do Estado-Maior francês, e o Plano Schliefen, do Estado-Maior Alemão. Um general francês mais sensato, Émile Fayolle, que participou nas discussões com Foch, Joffre, Nivelle, e outros tantos, deixou escapar este comentário: “Nunca ouvi tantas asneiras… Ataquem, ataquem, é fácil de dizer. É a mesma coisa que tentar derrubar a soco um muro de pedra…”.
Relembremos, a propósito, o caso acima referido de Sir Arthur ‘Bomber’ Harris na II Guerra Mundial. Este Marechal do Ar, bombista, incendiário e adepto da «destruição pela destruição» – o que está em perfeita sintonia com o princípio intrínseco das guerras, que é alcançar a completa aniquilação do inimigo, com as suas habitações, a sua história e o seu ambiente natural – só morreria em 1984, na paz do Senhor, com 92 anos de idade.
A confirmação histórica destes factos obtive-a através da leitura de dois livros impressionantes: a História Natural da Destruição – Guerra Aérea e Literatura (1999), do grande escritor alemão W. G. Sebald (1944-2001); e O Incêndio – a Alemanha sob as bombas, 1940-1945 (2002), do historiador alemão Jörg Friedrich (1944), especialista em criminologia da guerra, tanto terrestre como aérea, investigador dos crimes cometidos pelo Estado nazi e colaborador da Enciclopédia do Holocausto.
2. Mas foram também alguns grandes filmes que me ajudaram, desde jovem, a formar uma opinião mais abalizada sobre a brutalidade, a desumanidade e a estupidez da guerra, assim como sobre o significado assaz equívoco das expressões “dar a vida pela Pátria” e “morrer pela Pátria”. É que houve quem morresse pela Pátria sob a ameaça de um tiro na nuca caso recuasse um milímetro da frente de combate (em Estalinegrado, por exemplo) e quem morresse pela Pátria fuzilado por ordem dos seus próprios generais, depois de ser tirado à sorte, apenas para servir de exemplo aos camaradas de pelotão que se recusassem a sair da trincheira pela enésima vez, dando o corpo às balas em campo aberto, sem hipótese de conquistar um palmo de terra ao inimigo da trincheira em frente.
Há exactamente um século, em França, a meio da Grande Guerra de 1914-1918 – entre os dias 21 de Fevereiro e 19 de Dezembro de 1916 – travou-se uma das mais cruéis e sangrentas batalhas da história de todas as guerras, na região fortificada de Verdun. Envolveu 2.400.000 homens, durante 300 dias e 300 noites, à razão de mil mortos por dia, saldando-se, no fim, por mais de 300 mil mortos e desaparecidos (as mortes em massa e a total pulverização dos corpos fizeram desaparecer no anonimato cerca de 100.00 soldados) e mais de 400 mil feridos.
Durante a batalha de Verdun, os alemães dispararam em média 100.000 obuses por dia. Nove vilas e aldeias, “mortas pela França”, foram pura a simplesmente riscadas do mapa. Tanto pela longa duração, como pelos terríveis meios de destruição empregues, pelo encarniçamento dos adversários, pelo horror dos combates corpo-a-corpo e pela gigantesca amplitude das perdas, a batalha de Verdun marcou uma viragem histórica na forma brutal de fazer a guerra, a mando dos generais, alterando por completo a noção tradicional de batalha como confronto breve e violento mas decisivo, que desde então se tornou obsoleta.
De realçar a incompetência profissional, a crueldade e desumanidade de muitos generais, que não hesitavam, como já referi, em mandar escolher à sorte, para serem sumariamente julgados, condenados à morte e fuzilados – apenas a título de exemplo – dois ou três soldados de um pelotão que se recusasse a avançar, mais uma vez, a descoberto e sob fogo cerrado do inimigo, como é revelado com toda a crueza no extraordinário filme “Paths of Glory” (“Horizontes de Glória”), de Stanley Kubrick, estreado em 1957, e cuja exibição foi proibida em França, tal como em Portugal e Espanha, durante quase duas décadas.
O horror que atingiu milhões de jovens soldados, utilizados como carne para canhão, também é notavelmente descrito nessa obra-prima da literatura contra a guerra, escrita e publicada por Dalton Trumbo em 1939 e por ele passada a filme em 1971, intitulada “Johnny got his gun” (“E deram-lhe uma espingarda”). É a história dum jovem soldado americano da Grande Guerra horrivelmente mutilado pela explosão de uma mina, que lhe arrancou braços e pernas e lhe desfigurou o rosto, reduzindo-o a um tronco humano cego, surdo, mudo e sem olfacto, mas com sensações muito humanas, que sobrevive heroicamente dentro de um pulmão de aço, recusando-se a “morrer pela pátria” ou, se preferirem, a “dar a vida pela Pátria”. O romance de Dalton Trumbo foi lido em público pelo actor Donald Sutherland numa série de manifestações pacifistas contra a guerra do Vietname, durante o célebre «FTA Tour», que ele e a actriz Jane Fonda realizaram em 1971 – significando a sigla FTA, quer “Free The Army” quer “Fuck The Army”, consoante o grau de furor dos manifestantes.
3. O discurso militarista, ameaçador e arrogante, produzido tanto por militares como por civis, irrita-me solenemente. Por vezes faz-me lembrar aquele personagem demente que julga ser o presidente Teddy Roosevelt, no mais hilariante filme de Frank Capra, “Arsenic and Old Lace” (“O Mundo é um Manicómio”), cujas filmagens coincidiram, por mero acaso, com o ataque japonês a Pearl Harbour, em 7 de Dezembro de 1941. Teddy Brewster – assim se chama o maluquinho interpretado pelo actor John Alexander – passa o tempo a tocar corneta para reunir as tropas americanas e, sempre que vai subir as escadas interiores da sua casa, desembainha uma espada imaginária e grita a plenos pulmões: “Charge!” (“À carga!”), como quem vai atacar um fortim e arrasar o inimigo. No final do filme, claro que vai parar a um manicómio, coisa que nunca acontece a generais!
O facto de Frank Capra ter esboçado neste magnífico filme um retrato cruel e hilariante do militarismo imperialista norte-americano através do lunático personagem de Teddy Brewster, não só não provocou a proibição do filme durante a guerra, como não impediu o próprio realizador de vir a ser um brilhante oficial das Forças Armadas dos EUA.
Há, aliás, um capítulo sublime da sua autobiografia – “The Name Above the Title” (“O Nome Acima do Título”) – em que Capra descreve o pungente desabafo que o almirante Chester Nimitz lhe fez, em privado, depois de ter ido visitar um hospital militar. Com as lágrimas a correrem-lhe pelo rosto, entre soluços, num choro convulsivo que exprimia uma profundíssima dor, o almirante Nimitz desabafou: “Eles aplaudiram-me… deram-me vivas… eram três mil… garotos de 18 anos… chegaram de Kwajalein… fui ao hospital… não tinham pernas… as caras esfaceladas… aplaudiram-me… a mim, que os mandei para lá… deram-me vivas… Filha da puta de guerra, maldita sejas! O que é que vou dizer aos pais deles, que palavras lhes vou escrever? Que palavras de consolo pode uma pessoa, seja ela quem for, dizer aos pais destes garotos?”. No riso de Frank Capra, assim como na dor de Chester Nimitz, é a humanidade que resiste.
4. Esclareço que, apesar de ser contra a guerra colonial, fui para a tropa dois anos antes do 25 de Abril, e só não fui parar a um teatro de guerra graças ao Movimento das Forças Armadas, que derrubou o antigo regime e pôs termo às três guerras coloniais. Esclareço igualmente que admiro vários oficiais e, como se percebe pela minha alusão ao episódio protagonizado pelo almirante Nimitz, também admiro alguns generais.
Recorro aqui a mais um excelente filme – “Patton” de Franklin Schafner – injustamente considerado por muitos como um filme “militarista”. Nele, revisitamos a história de dois famosos generais americanos durante a II Guerra Mundial; George Patton (interpretado por George C. Scott) e Omar Bradley (interpretado por Karl Malden). O contraste entre eles é evidente.
George Patton é um guerreiro temível, de pingalim na mão e revólver (com coronha de marfim) à cinta. É especialista na guerra de blindados, notável a comandar tanques e tão implacável com os seus soldados como com os seus inimigos. É perito em história militar, escreve poemas anacrónicos, acredita na reincarnação e deseja “comandar muitos homens numa batalha desesperada”. Como diz um oficial alemão, George Patton é um “magnífico anacronismo”, “um guerreiro romântico do passado perdido no presente”. Omar Bradley, pelo contrário, “parece ser um soldado vulgar”. Na realidade, “é um general muitíssimo competente, mas é um homem simples”, o que, segundo o mesmo oficial alemão, “é digno de admiração num general”. E é tão competente em combate como popular entre os seus soldados, porque se preocupa genuinamente com eles.
Há uma cena crucial no filme, que desmente o propósito de “exaltação nacionalista” que lhe foi atribuído. Os soldados americanos estão a morrer como tordos na Sicília, e um dos generais sob o comando de Patton pede-lhe uma pausa de 24 horas para os seus homens recobrarem forças antes de prosseguirem na ofensiva. Patton recusa, fica a sós com Bradley, que ainda é seu adjunto (“deputy commander”), e pergunta-lhe se acha que o outro general tem razão. Bradley responde-lhe: “Não. Mas acho que você está a jogar com a vida destes homens, só para tentar bater Montgomery na corrida para ver quem chega primeiro a Messina. Se você conseguir ganhar, será o grande herói. Mas se não conseguir, o que pode acontecer a todos estes homens, a todos estes anónimos soldados em combate? Eles não partilham dos seus sonhos de glória pessoal. Estão atolados nisto e obrigados a conviver dia-a-dia com a morte que espreita em cada esquina. Há uma grande diferença entre nós dois, George! Eu faço isto (“I do this job”) porque fui treinado para fazê-lo. Você faz isto porque adora fazê-lo!”. Omar Bradley fazia a guerra porque ela era necessária para defender os EUA, a Europa democrática, a liberdade. George Patton fazia a guerra porque a adorava, vivia dela e para ela, desejando intensamente cobrir-se de glória.
Há, de facto, uma diferença substancial entre, por um lado, o puritanismo intolerante e o proselitismo destemperado de George Patton, e, por outro lado, o humanismo democrático de Omar Bradley. Na minha opinião, um exército não pode ter por objectivo disciplinar o mundo à cacetada, e não deve ser reconhecido aos seus generais qualquer ascendente sobre a sociedade civil. Acho insuportáveis o discurso militar corporativo, o fervor marcial e a defesa da opacidade como privilégio da tropa. Nunca fui “falcão” nem “pomba” nem “idiota útil”, e considero que para respeitar as Forças Armadas – quaisquer Forças Armadas – não é preciso andar a lamber as botas aos seus generais…
O autor escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990