A fazer fé na agenda política portuguesa, a semana que passou foi um regresso ao passado: à falta de futuro do PSD e da liderança de Rui Rio e ao post mortem dos incêndios de 2017 por via da exegese de mais um relatório de uma comissão independente (haverá outro tipo?).
Fora da bolha lusitana há uma outra notícia que merece atenção. O fundador do Facebook veio anunciar ao mundo um acto de contrição: teria existido um aproveitamento espúrio dos dados pessoais de 50 milhões de utilizadores. Esta declaração piedosa é o equivalente da promoção de um hambúrguer de soja na vitrina de um talho de carne mertolenga. As empresas que administram redes sociais vivem do comércio da informação que os utilizadores voluntária ou involuntariamente (quase sempre), consciente ou inconscientemente, para elas vertem. Faça o leitor amigo o seguinte exercício: tente obter, ler e compreender as regras que cada uma das redes sociais que frequenta fornece no que respeita à utilização dos seus dados pessoais. Descontada a dimensão hilariante das versões de “juridiquês” traduzidas para português pelo Google Translate, sobra pouco de útil. Não é na autorregulação das redes sociais que iremos encontrar uma tutela adequada dos direitos fundamentais dos utilizadores. Não é nada de novo: na maior parte das situações de convívio social, a humanidade há muito que descobriu a necessidade de impor, por via heterónoma e legislativa, regras gerais e abstractas ao funcionamento de determinadas actividades em que o desequilíbrio de poderes é notório. Qual o poder de um utilizador individual contra os conglomerados das redes sociais? Só pode ser o poder da lei, no caso da União Europeia, o poder do Regulamento Geral de Protecção de Dados, em vigor a partir de Maio deste ano.
Esta semana, graças ao jornalismo de investigação, tornou-se pública e notória a perigosíssima associação entre as actividades de data mining a partir das redes sociais e os riscos para o funcionamento do processo democrático. Alexander Nyx, CEO da Cambridge Analytica (CA, que teve o inenarrável Steve Bannon como vice-presidente…) explicou de forma cândida e sem saber que estava a ser filmado a forma como foram utilizadas as redes sociais para trabalhar os perfis de muitos eleitores americanos, fornecendo informação manipulada e adequada à motivação do voto em Donald Trump. A CA tem por trás os Strategic Communications Laboratories (SCL), que reúnem uma pletora de militares e pessoal da comunidade dos serviços de informações com experiência operacional no Afeganistão e no Iraque, com nomes tão relevantes quanto o general Stanley McChristal, o candidato a salvador dos EUA que Obama teve de fazer passar à reserva, o general Flyn, que foi consultor nacional e segurança de Trump e que teve de se demitir pela relações com o Russiagate, e Steve Tatham, ex-comandante da Royal Navy e especialista em operações de guerra psicológica.
A mistura entre especialistas em guerra psicológica, data miners de redes sociais e promotores de candidaturas políticas é explosiva. A diferença de votos entre Trump e Clinton está muito abaixo do número de pessoas cuja opinião terá sido manipulada desta forma. O fenómeno não é um exclusivo dos EUA, há provas de que ocorreu também nas eleições no Brasil e na Índia. Somado aos perfis falsos e aos bots, há aqui uma ameaça real ao funcionamento das eleições. As democracias contemporâneas têm dado provas bastantes de incapacidade na defesa activa da sua sobrevivência. Até ser demasiado tarde.
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990