Perguntava num tweet a vereadora, oriunda de uma favela do Rio, sem imaginar que a exuberância retórica da sua pergunta seria reforçada com a sua própria vida. O assassinato de Marielle Franco vai muito além do que alguma esquerda ávida do aproveitamento da tragédia dos outros quer fazer transparecer. A morte de Marielle não pode ter como justificação exclusiva a corrupção da Polícia Militar, a política de segurança do governo Temer (ainda que esta seja muito discutível) ou qualquer outro fito étnico, ainda que representem uma realidade inegável da sociedade brasileira. Ou ainda por exemplos como Márcia Tiburi, também ela ativista, que defende a legitimidade dos assaltos como meio de reação à contaminação social do capitalismo.
Mas também é muito diferente do que alguma direita retrógrada que a associa, pelas suas origens e pelo seu passado, à conivência com o tráfico e o crime violento numa tentativa de dissimular a importância e o impacto social, e iminentemente global, que este crime contempla. De uma direita que valoriza a ação violenta das polícias como meio de controlo social, de uma direita que negligenciou o valor do bem comum ao longo de anos e que acabou delapidar qualquer estrutura social existente daquela terra que antes havida sido, como diz a música, abençoada por Deus.
A morte de Marielle é a confirmação de dois aspetos muitíssimo mais relevantes e que a comunidade internacional, tal como em tantas outras partes do mundo, faz ouvidos moucos na sua inquietante inação. A sua morte é a morte da democracia brasileira, na sua generalizada latitude. A morte de que as coisas mudam com o voto e com o simples alargamento representativo das mais diversas sensibilidades sociais nos corredores do poder. Marielle, que antes já havia sido assessora do Senador Marcelo Freixo (quem viu o filme “Tropa de Elite 2” encontrará inspiração do seu percurso na personagem do ativista Diogo Fraga), representava, independentemente da sua ideologia, a incomodidade reativa de um país profundamente corrupto e opressor. O ideal democrático que sustentou e serviu de base às mais diversas revoluções por todo o mundo, em especial na Europa. A oposição a um Brasil em profundo défice civilizacional em que as execuções apelam a uma terra de xerifes reforçada pela prevalência de uma lei paralela que serve para intimidar e calar todos aqueles que se opõem à corrupção, à miséria e ao estripar dos mais básicos Direitos Humanos.
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2017 morreram, no ano de 2016, mais de 60 mil pessoas vítimas de violência intencional. Mais de 60 mil execuções. Se quisermos, por comparação, morreram no Brasil cerca de mais 11 mil pessoas do que as cerca de 50 mil que o Observatório de Direitos Humanos na Síria estima que tenham morrido aos braços do conflito naquele território. No Brasil entre 2016 e 2017 foram executados mais de 60 políticos e desapareceram sem rasto quase 30 líderes de comunidades locais.
O que se está a passar no Brasil já não é apenas um problema doméstico, cuja resolução esbarra numa evidente incapacidade de uma solução. O problema do Brasil é um problema da Comunidade Internacional. É um problema de violação de Direitos Humanos tão ou mais grave do que o problema a que assistimos na Síria. É dentro deste preceito que o problema do Brasil deve ser encarado com a consequente pronuncia inequívoca da Comunidade Internacional quanto às sucessivas violações dos Direitos Humanos a que a sua população tem sido alvo. Claro que sabemos bem que o silêncio permanecerá. O silêncio toldado por interesses difusos que não aqueles que o deviam fazer parar. Lembro-me, finalizando, das palavras de Gabriel “o Pensador” na música “Até quando?”. “Até quando você vai levando porrada? Até quando vai ser saco de pancada? Até quando vai ficar sem fazer nada?”.