Dos dias de desregrada locomoção nas ruas de São Paulo, sempre com algum livro como oráculo e combustível, flanando inebriado de hipóteses de saída como qualquer jovem que se preze, é o desenho que Roberto Piva fez na parede do quarto, em letras garrafais, da frase de Artaud: “Parmi les plusieures routes ou mon coeur m’entraine, il ne se peut pas que je ne trouve une verité” (Entre todos os caminhos por onde me tem arrastado o meu coração, não é possível que eu não venha a encontrar uma verdade).
São desses meses iniciais de 1962 os poemas de “Paranóia”, livro que, publicado um ano depois, esperaria muitos mais até que o seu profundo abalo fosse sentido na escala da crítica. E foi preciso meio século e ainda uns trocos para que tivesse edição em Portugal. Como Claudio Willer sublinhava num dos mais informados e cativantes estudos da obra do poeta paulista – o posfácio do primeiro dos três volumes da reunião desta (“Um estrangeiro na legião”), em 2005, pela Editora Globo -, o livro “não poderia ter sido recebido com maior frieza”. E vinca como, num momento em que “as movimentações de autores jovens eram assunto que interessava à imprensa”, mesmo tendo sido distribuído nas livrarias e enviado aos críticos pela Massao Ohno – editora central no aparecimento de uma Geração 60 de poetas paulistas -, este livro “foi objeto de um silêncio total”.
Foi preciso esperar o fim do século e a reedição do livro pelo prestigiado Instituto Moreira Salles, em 2000, para que chegasse o certificado daquela que era, para os iniciados, a pièce de résistance de um poeta que ascendera ao estatuto de lenda urbana.
Depois de “Ode a Fernando Pessoa”, um panfleto publicado em 1960 pela mesma editora, e de um conjunto de manifestos assinados pelo coletivo “Os que viram a carcaça” – e que, saídos da pena de Piva eram, afinal, apenas mais um exemplo do desejo de não se mostrar desacompanhado -, “Paranóia” foi o livro de estreia. E é o título mais marcante de toda a sua obra, uma dessas florações de tal modo impetuosas e luxuriantes que só podem ser breves. O poeta ainda não tinha completado os 25 anos quando escreveu aqueles 20 poemas e Willer lembra-se de ter testemunhado então “o espectáculo de sua voracidade bibliográfica”, o modo como o encontro com a geração beat, depois de o engenheiro de horizontes de Pessoa lhe ter já alargado as vistas, o fez largar todas as restrições que se impunha o “beletrismo”, e, virando-se à “inibição de consciência da Poesia Oficial brasileira a serviço do instinto de morte”, devotar o seu signo a esse nível de inspiração que exige a mais alta voltagem.
Antes de irmos mais longe, é importante referir que a edição entre nós posta a circular de “Paranóia” pela editora Alambique (um satélite da Averno), fere, não diria de morte, mas de um pavoroso mau gosto a edição original do livro. E porquê? Porque a edição da Massao Ohno, que o Instituto Moreira Salles recuperou num fac-símile (ou quase), é a expressão da própria génese dos poemas, uma criação “complementada e completada por andanças em companhia do artista plástico Wesley Duke Lee, que tirou centenas de fotos, das quais foram selecionadas aquelas que ilustram a edição, dialogando com os poemas”.
Ora, a nossa edição exclui essas fotografias – o que, em rigor, já havia sido feito na recolha da obra de Piva -, mas traz em sua substituição umas fotografias analógicas de Mafalda Capela. Além de feitas por cá, ao invés de completarem e complementarem os poemas, estas imagens estão ali num arranjo de flores de plástico, indo da sensaboria ao kitsch. Postas ao lado das de Wesley Duke Lee, parecem uma versão embiocada, edulcorada, no pior sentido, “aportuguesada”. Perdemos o lado mais agreste de uma obra que Piva definiu em diversas ocasiões como “visão alucinatória de São Paulo”, imagens que capturavam a sensação de afinidade e antagonismo entre o poeta e a metrópole, para ganharmos o quê? Uns postalinhos pindéricos, um olhar vulgarizante que se atravessa no caminho dos poemas e dilui a quantidade de lugares expressamente nomeados, “roteiros efetivamente percorridos”, frisa Willer, “como o da Rua São Luís à Praça da República, Largo do Arouche, Rua da Aurora, as escadas de Santa Cecília, até a Rua das Palmeiras”. Convida-se os leitores a confrontar os dois livros, o que é fácil dado que o download da edição de 2000 está ao alcance de uma pesquisa na internet. Depois digam-me: havia necessidade?
Uma nota ainda na linha do que o próprio poeta diz num destes poemas (“A piedade”) e que fica a valer para isto como para o que tiver ainda pela frente: “as senhoras católicas são piedosas/ os comunistas são piedosos/ os comerciantes são piedosos/ só eu não sou piedoso/ se eu fosse piedoso meu sexo seria dócil e só se ergueria aos sábados à noite/ eu seria um bom filho meus colegas me chamariam cu-de-ferro e me/ fariam perguntas: por que navio bóia? por que prego afunda?/ eu deixaria proliferar uma úlcera e admiraria as estátuas de fortes dentaduras/ iria a bailes onde eu não poderia levar meus amigos pederastas ou barbudos/ eu me universalizaria no senso comum e eles diriam que tenho todas as virtudes/ eu não sou piedoso/ eu nunca poderei ser piedoso/ meus olhos retinem e tingem-se de verde/ Os arranha-céus de carniça se decompõem nos pavimentos/ os adolescentes nas escolas bufam como cadelas asfixiadas/ arcanjos de enxofre bombardeiam o horizonte através dos meus sonhos”…
A vertigem que há nestes poemas, como Willer também refere, é ganha pelo modo como, variando entre “um registo mais descritivo e outro mais alucinatório, o mais lírico e o mais veemente”, se equivalem a colagens. Os ecos de Ginsberg e Gregory Corso são flagrantes nas suas enumerações caóticas, os versos estão cheios de invetivas que sabem como palmadas calorosas nas costas, como se Piva nos fosse dizendo: “Tens de ler este tipo… e aquele, já leste?, não imaginas o que estás a perder.”
À luz de um espírito que não se tenha deixado enfiar nos “apopléticos vagões da Seriedade”, na direção dessa solução finalíssima que fez da nossa uma época que só se reconhece nas gradações do cinismo, ironia, sarcasmo… a essa luz, estes poemas produzem um estado de euforia, um gozo intenso, raiando o narcótico perante o desfile das suas tão frenéticas imagens, que deixam no cérebro um travo que perdura, com os sentidos assoberbados, convidando-os ao tal desregramento de que falava Rimbaud. Tudo com uma virulência intoxicante, sucessões esbaforidas, irreverentes, aproveitando-se do balanço experimental daquelas décadas, com evidente “afinidade com o simultaneísmo de Apollinaire”, como destaca Willer, e uma sintaxe cinematográfica, tendo Piva assumido o cinema e a banda desenhada como influências decisivas na sua poesia. É tal o desejo de ser arrastado pela força de um coração que atira a alma para cima da mesa e a abre sem anestesia que nos sentimos partilhar uma seringa com o poeta. E que se danem as campanhas de prevenção contra as doenças concebidas nos laboratórios do pânico, tudo para chegarmos aos cem como croquetes humanos nessa camisa-de-forças que é o abraço de uma sociedade doentia, ela sim, paranoica, tratando de nos levar à anunciada fase seguinte da evolução da espécie, essa monstruosidade contra a qual Piva tanto alertou: o Homo normalis.
Nestes versos foi Deus que pôs fim à sua miséria e “suicidou-se com uma navalha espanhola”, a Virgem apareceu “assassinada num bordel”, “há anjos de Rilke dando o cu nos mictórios”, Cristo foi visto roubando a caixa dos milagres; e depois há toda a fauna que torna ainda o mundo respirável, “há místicos falando bobagens ao coração das viúvas”, topam-se os “amantes chupando-se como raízes”, invocam-se “as coxas do primeiro amor brilhando como uma flor de saliva”, nos espelhos as meninas aparecem desarticuladas pelos mitos e os costureiros arrancam os ovários dos manequins. É um “reino-vertigem glorificado”, diante do qual o poeta sente “a cabeça afundando-se na garganta/ chove sobre mim a minha vida inteira, sufoco ardo flutuo-me”…
É de tal ordem o excesso que os seres higiénicos que hoje juram ver a dissonância e sentem mais urgência nas vozes ensaindo passos de bailarina entre a linguagem, pisando o mínimo, para caber tudo num epigrama já com lacinho, não terão estômago para aguentar tanto murro. Mas o que esta poesia nos permite é matar saudades de um tempo em que os poetas se tinham por seres cósmicos, radiantes de petulância, carnívoros, com a lírica como faca nos dentes, para arrancar a realidade do seu sono de bela adormecida (e bela, aqui, dependendo de quem conta a história, porque para a maioria ela está muito feia). Estes poemas reivindicam uma diversidade complexa, uma arte que se demarca não apenas no “confronto com a ordem estabelecida que passa por um acerto de contas com a própria linguagem” (Willer outra vez), mas que, adotando já um ideário neopagão, aceita ficar isolada, ser tachada de histérica, “gritando entre as lojas e os templos/ entre a solidão e o sangue, entre as colisões, o parto/ e o Estrondo”. Não se trata aqui de sermos muitos, de ter longas filas junto a cada barraquinha de atrações, mas de que os poucos se vinguem, dando margem para que não fique tudo na mesma; manter o pé na porta, talvez o tronco, morrendo esmagado se preciso, para que nasçam mais, e a liberdade não seja só a conversa fiada dos capachos das catedrais já sem Deus e que agora se consolam vendo-as “impregnadas do grande espectáculo do Desastre”.