A Plataforma do Cinema pediu, na sequência da aprovação em Conselho de Ministros da revisão ao decreto-lei n.º 124/2013, que regulamenta a Lei do Cinema, uma audiência com o Presidente da República antes que seja promulgado o novo diploma. A informação foi avançada na manhã desta quarta-feira pelos representantes da plataforma que junta associações de realizadores, produtores, programadores, sindicatos e técnicos do setor, numa audição parlamentar pedida pelo PCP.
A aprovação das alterações à regulamentação da Lei do Cinema aconteceu ao fim de um ano e meio de um braço-de-ferro com a tutela que acabou por dividir também o setor – em particular, no que respeita ao artigo 14, que determina os procedimentos de nomeação dos júris que avaliam as candidaturas aos apoios públicos ao cinema e ao audiovisual. De acordo com o decreto-lei que continua em vigor, indicados pela SECA (Secção Especializada do Cinema e do Audiovisual), um órgão do Conselho Nacional de Cultura. Função que a Plataforma do Cinema exige que seja integralmente devolvido ao Instituto do Cinema e do Audiovisual (ICA).
“A SECA não pode ser transformada numa arena de combate a ver quem nomeia mais jurados”, afirmou Cíntia Gil, uma das representantes da plataforma aos deputados. “A SECA pode ser um lugar de reflexão, mas não pode ser de escolha de jurados.” O que determina o diploma que aguarda agora promulgação do Presidente da República e cujo texto não foi ainda tornado público mas que as declarações do ministro da Cultura à saída da reunião em que foi aprovado indicam que corresponderá a uma segunda proposta apresentada em novembro passado, é que passa a ser o ICA a elaborar as listas de jurados que avaliarão as candidaturas, mas após consulta à SECA, a quem caberá a aprovação das listas definitivas bem como de uma bolsa de suplentes. Em caso de rejeição de uma primeira lista, cabe ao ICA elaborar uma nova a ser de novo submetida à aprovação da SECA. E em situações de impasse, esclarecia a proposta enviada às redações em novembro, prevalece a posição do ICA.
O polémico artigo 14 “ambíguo” Justificou Luís Filipe Castro Mendes que o “decreto-lei teve um tempo de elaboração longo, porque foi de diálogo, de maturação entre o Estado e os agentes, tendo como objetivo conseguir decisões o mais equilibradas e o mais consensualizadas possível”. Versão que não corresponde à apresentada pela Plataforma do Cinema na audição parlamentar de ontem, segundo a qual a última vez que os seus representantes foram ouvidos pela tutela foi há um ano, quando em fevereiro o Ministério da Cultura deixou cair a primeira proposta de revisão.
E que continua a discordar da última proposta que foi tornada pública. “Em relação ao papel da SECA no novo artigo 14, o que sabemos do que nos foi dito e que saiu nos jornais é que a SECA indica os nomes dos jurados e mais tarde aprecia as listas apresentadas pelo ICA. Uma coisa é a SECA ser um órgão consultivo, outra é ser a fonte da bolsa de jurados que o ICA vai constituir”, analisou Cíntia Gil perante os representantes dos vários grupos parlamentares. “Também nós somos contra uma política de gosto, aí estamos com o ministro da Cultura. O que queremos é transparência na atribuição dos dinheiros públicos e para isso não pode haver ingerência de interesses privados. É escandaloso que nos seja dito pelo presidente do ICA que não podemos aborrecer as operadoras, caso contrário elas não pagam [as taxas que financiam o ICA].” Filipa Reis lembrou que as associações que representam têm também assento na SECA, que se recusam a ocupar. “Recusamo-nos a entrar nesse jogo. Como é que podemos dar nomes de pessoas que depois avaliarão os nossos próprios projetos?”
Um decreto-lei “ambíguo” Por ouvir pela comissão parlamentar de Cultura está o ministro Luís Filipe de Castro Mendes. Há duas semanas, ouvido pela mesma comissão, o presidente do ICA tentou pôr fim às dúvidas que levanta o texto da proposta, garantindo que os júris deixariam de ser nomeados pela SECA. Mas não só a Plataforma do Cinema não está convencida pelas declarações de Luís Chaby Vaz, que tomou posse depois da demissão da anterior direção, em mais um capítulo da polémica. Também o deputado bloquista Jorge Campos considera o que se conhece do diploma em vias de ser promulgado “ambíguo”.
“Pelo que leio nos jornais, as sucessivas idas e vindas entre SECA e ICA [previstas pelo novo decreto-lei] só podem querer dizer que o conteúdo manifesto está lá, mas que o conteúdo latente espelha um conjunto de interesses”, alertou. E acrescentou, mais adiante: “O nosso ponto de partida são as políticas públicas para o cinema, reconhecendo a sua especificidade e, nesse sentido, o que o grupo parlamentar do Bloco de Esquerda entende é que o que está no artigo 14 é bastante ambíguo e que se presta a alimentar a suspeição de que aquilo que lá esta tem a ver com a chantagem que é feita por parte dos operadores. Somos a favor da SECA, mas enquanto órgão consultivo. A SECA não tem que estar envolvido na escolha de júris.”
Também sobre a SECA e ouvido pela mesma comissão na semana passada como representante da Associação de Produtores de Cinema e Audiovisual, Paulo Branco denunciava por outro lado a inutilidade da SECA enquanto órgão consultivo do Conselho Nacional de Cultura. “A SECA está por definição mal estruturada. Quem representa os operadores não é alguém com qualquer tipo de poder, mas pessoas que estão na prateleira, portanto as discussões que temos na SECA também não adiantam de nada”, criticava. “A SIC e a TVI querem ter uma palavra. Para quê, se não há um filme [nas suas grelhas de programação]? Não temos lá ninguém com quem possamos discutir isto.”
Em maior em menor grau, as preocupações da Plataforma do Cinema foram gerando consenso entre os representantes de vários grupos parlamentares, com até a social-democrata Susana Lamas, do PSD (o decreto-lei em vigor foi aprovado pelo governo de Passos Coelho) a reconhecer que “de facto o anterior governo aprovou uma lei que teve os seus méritos mas que tem as suas imperfeições” e a mostrar-se preocupada com o facto de o setor não ter sido ouvido durante a elaboração do novo decreto. Gabriela Canavilhas fez questão de lembrar que a lei que foi aprovada não teve o seu acordo ou voto na Assembleia da República.
Ousadia ou inércia? “A Lei do Cinema que o PS apresentou e que a direita chumbou não tinha esta proposta de escolha de júris. Era uma lei que tinha uma abrangência e uma capacidade de captação de financiamento do cinema muito superior àquela que hoje temos. Tivemos que ir buscar dinheiro aos privados, comprar cumplicidades aos privados, entrar em guerra com privados, e afinal acabámos por vir buscar o mesmo montante que tínhamos antes. Foi uma batalha que não deu, infelizmente, retornos. Lamento que não tenhamos tido a ousadia de ir um pouco mais longe.”
Deixa aproveitada por Cíntia Gil, que foi criticando a “inércia” da tutela num processo que se arrasta há quase dois anos e que levou no ano passado os concursos a abrirem com seis meses de atraso. “Ousadia, se há coisa que falta a este governo é ousadia. Ousadia temos nó que estamos há dois anos a pedir ao governo uma política cultural e que estamos todos disponíveis para discutir coisas que não são os nossos interesses próprios imediatos para estarmos aqui a falar daquilo que há muito este governo já devia ter feito.”
E, respondendo a uma pergunta da ex-ministra da Cultura socialista afirmou: sobre que expectativas tem a Plataforma do Cinema em relação a esta direção do ICA, disse ainda que não há “nesta altura razões para grandes expectativas” em relação a uma direção “que tem uma aparência um pouco mais segura do que a anterior perante o setor, que de pouco adianta”. A falta de expectativas, sublinhou, “também vem de o presidente do ICA ter dito que não sabe nomear jurados – a partir daí, o grau de expectativa baixa bastante. Mas dou-lhe ainda o beneficio da duvida, coisa que não dou a esta tutela.”