A descentralização não pode ser uma reforma de Santa Engrácia.
É preciso fazer. É urgente concretizar.
O estranho é ainda não ter sido feita.
Se o país precisa;
Se o Presidente da República é a favor;
Se o primeiro-ministro e o Partido Socialista se dizem pela descentralização;
Se o Partido Social Democrata, o maior partido na Assembleia da República, e o CDS são mesmo pela descentralização;
Se a maioria esmagadora das câmaras deste país são lideradas por autarcas que são apoiados pelos partidos da causa descentralizadora;
Se estão reunidas todas estas condições para reformar, não se percebe por que razão a descentralização nunca mais vê a luz do dia.
Talvez por birra ou taticismos, o PS no parlamento e o governo socialista rejeitaram sempre discutir as propostas do PSD sobre a descentralização. Com o ar mais cândido do mundo, o PS pedia diálogo à segunda, quarta e sexta. Mas terça, quinta e sábado, o mesmo PS queimava ardilosamente todas as propostas da oposição. Isto é o que uma história recente nos diz. (E já que falamos em História, é bom não esquecer que os socialistas boicotaram todos os esforços do governo PSD no sentido da maior autonomia das autarquias, retirando todos os seus presidentes de câmara das negociações.)
Com a aparente conversão plena dos socialistas à causa da descentralização, com uma nova liderança no PSD apostada em restaurar relações com o PS em áreas chave, parece que o país tem, finalmente, condições para avançar.
Aviso, porém, que não é sábio nem prudente avançar de qualquer maneira neste dossiê.
Como tenho dito, a descentralização é uma das mais importantes componentes da reforma do Estado. É uma boa reforma essencialmente por três razões: (1) porque nos permite repensar a reforma administrativa e o modelo de país que temos sem termos de enveredar pelo debate da regionalização; (2) porque é um modelo económico racional, no qual um euro de investimento da administração local corresponde a três euros de despesa da administração central; (3) porque resolve problemas das pessoas, impele à ação dos poderes públicos e traz a decisão para patamares mais próximos dos cidadãos, promovendo um maior escrutínio da administração e um maior envolvimento das pessoas na vida comunitária.
Por produzir tantas alterações no estado das coisas, a ideia de descentralização foi colecionando inimigos. Mesmo não sendo óbvios e assumidos, são muitos os seus detratores.
O PCP, por exemplo, defende uma descentralização universal. Todos recebem tudo na mesma proporção. Sem qualquer preocupação com a especificidade territorial, massa crítica local ou capacidade efetiva de prestação de serviços públicos. Se, digamos, Lisboa recebe competências na saúde, Rabo de Peixe recebe as mesmas competências na saúde. O glorioso “de cada qual, de acordo com a sua capacidade; a cada qual, de acordo com a sua necessidade”.
Esta ideia, que nutre simpatias em alguns setores socialistas, é o “cavalo de Troia” da descentralização.
Por aqui, não vamos bem. O caminho não pode ser este. Nem pode ser, diga-se, o de uma reforma que à boleia da reprogramação dos fundos comunitários volta a despejar dinheiro no interior do país. Parte de Portugal está deserto, mas não é por falta de investimentos. É por falta de estratégia política e de visão de conjunto sobre o país que queremos ser.
Também não podemos ter uma descentralização minimalista, pensando que dando pouco a poucos a coisa se resolve. Isto é o que não se pode fazer.
Pouco se conhece das propostas dos dois maiores partidos sobre a matéria. E o tempo para acordar o que quer que seja está a esgotar-se. Tenho, a propósito das propostas para a descentralização, muita expetativa em relação à reunião que terá lugar a 20 de março e que, por iniciativa do presidente da Câmara de Lisboa, Fernando de Medina, junta as presidências de câmara das áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, o Presidente da República e o primeiro-ministro.
Há três objetivos que uma descentralização séria tem de cumprir.
Primeiro objetivo: tem de ser ambiciosa nos objetivos e robusta nos meios. Saúde, educação, mobilidade, cultura, gestão do território e muitas outras áreas devem ser objeto do espírito descentralizador. O Estado deve passar, sem reservas, para a autonomia e gestão dos municípios as políticas setoriais. Isto implica, necessariamente, uma transferência de recursos financeiros e humanos correspondentes. O Estado não pode ficar preso a dogmas ideológicos e deve encarar a autonomia da autarquia local com naturalidade e como a forma mais avançada de governo dos cidadãos.
Segundo objetivo: tem de ser realista e gradual. Não se pode descentralizar tudo para todos, pelas razões que atrás se enunciaram, e também não se pode fazer tudo de um dia para o outro. Os projetos-piloto têm o mérito do gradualismo e de permitirem a aprendizagem com tentativa e erro. Municípios com menos margem de manobra para falhar podem, desta forma, encurtar a curva de aprendizagem graças aos que assumiram projetos-piloto.
Quando se sistematizar a descentralização, talvez seja útil fazê-lo em três níveis: municípios com 50 mil habitantes (ou menos) recebem um conjunto de competências-base; câmaras entre 50 mil e 130 mil pessoas recebem competências mais latas; e os 20 maiores municípios, por terem massa crítica e capacidade instalada, podem receber todas as competências em todas as políticas setoriais.
Terceiro objetivo: não pode ser uma regionalização encapotada e não pode estar desligada de uma reorganização territorial.
A descentralização mata a burocracia, não cria novas camadas de decisão opacas e não escrutinadas. Descentralizar não é regionalizar. Mas pode ser, e deve ser, uma oportunidade para os municípios se agregarem: se já partilham os problemas e os desafios (por exemplo, na mobilidade), nada os impede de partilharem as competências e os recursos.
Há descentralizações e descentralizações. Podem ter o mesmo nome, mas não são a mesma coisa.
Ao longo das próximas semanas detalharei neste espaço o que pode ser a descentralização positiva em cada uma das suas áreas-chave.
Escreve à quarta-feira