Dido e Inês de Castro. Amor, uma cabana e duas tragédias

Dido e Inês de Castro. Amor, uma cabana e duas tragédias


Há muito que o Amor perdeu a maiúscula. Neste dia de São Valentim, é especialmente celebrado como uma força delicodoce de agitar comércios. Para Dido e Inês – ambas protagonistas de duas das mais belas tragédias de amor de sempre – o amor foi força devastadora, poção amarga e nociva, veneno sorvido até à última gota.


Uma vivia feliz, absorvida nos cuidados do seu povo e nas fragilidades do reino que há pouco fundara. Governante ideal, quis Virgílio que se apaixonasse perdidamente pelo herdeiro da dinastia de Príamo. Trazido pelo mar e pelo vento, aportou às suas praias, sem pátria e sem ventura. Acabaria por roubar-lhe a felicidade, a coroa, o reino, a dignidade e a própria vida. A outra, num paço de uma terra estranha, para onde veio – saberia depois – para se perder por amor, vivia, na versão camoniana, alegre e despreocupada, enamorada de um príncipe que logo a amou. Nunca teve marido, nem trono, mas foi coroada como se fora rainha.

Personagem histórica, Inês de Castro chegou até nós em atitudes passivas que Camões soube aproveitar e que jogam, por contraste, com a iniciativa e a força da figura feminina cuja história o livro I da “Eneida” resume: “foi trazida no séquito de uma princesa, exilada por um rei, mandada regressar por um príncipe e por ele aposentada sucessivamente em diversas povoações, até ser morta por uma vaga desconfiança política” que Camões, empenhado na expansão lírica do Amor, recusou. Dido não foi levada por ninguém. Confrontada com o assassinato do marido que amava, tomou as rédeas do seu destino, os tesouros do irmão criminoso, fez-se ao mar e fundou a sua própria cidade – Cartago. Não foi exilada, exilou-se. E também não morrerá às mãos de ninguém: há-de erguer a sua própria mão, de mulher abandonada e perdida, para desferir sobre si o golpe final.

Apesar da proximidade entre o episódio de Cartago e o episódio de Coimbra, contado n’ “Os Lusíadas”, Dido e Inês são figuras bem diversas, como diverso, ou melhor, inverso é o seu percurso. A primeira, de rainha a mulher; a segunda, de mulher a rainha, a reflectir uma distinta celebração poética do amor em Camões. Dir-se-ia que se a ascensão de Inês é expressamente anunciada na abertura do episódio, quando se refere “o caso triste, e dino da memória”, na Eneida, a queda de Dido é, desde o começo, veladamente comunicada. O reinado de D. Inês ainda dura, o de Dido termina no momento em que o náufrago Eneias lhe vem ao encontro.

Atingida pela seta de Cupido, a figura feminina que abre o livro IV da Eneida e que o leitor deixou atrás, a sorver a poção nociva do amor, parece-se menos com a governante ideal que com a mulher apaixonada que, em plano destacado, surge emoldurada no quadro bucólico camoniano que para sempre lhe ficará associado. Já sem atributos de Diana, Dido é, agora como Inês, a presa fácil. Depois de um momento de hesitação, depressa substitui o nome que tinha escrito no peito, e a quem jurara fidelidade eterna – Siqueu – pelo de Eneias, que passa a morar-lhe na alma. De noite, em ansiosos sonhos que não mentiam; de dia, em pensamentos que voavam pelos anos de vida heróica do troiano e lhe perturbam os sentidos: “Que semblante o seu! Quão fortes o seu peito e os seus ombros! […] Oh!, por que Fados ele foi perseguido! As guerras cumpridas que ele contava! […] Se não me estivesse firme e inamovível no espírito a determinação de a ninguém me unir pelo laço conjugal [… ] talvez a esta só tentação poderia eu sucumbir.”

É o primeiro salto descendente de Dido. Sobre si, não incide já a aura real mas um foco narrativo que (pre)anuncia tragicamente a sua morte. Da rainha audaciosa e sublime, heroína magnífica, não resta agora senão a morada, trocada pelas ruas da cidade por onde vagueará em fúria.

 A sua natureza feminina adiantara-se a passos largos à realeza. Assim se explica a Dido hesitante, em vez da Dido decidida, senhora de si e do seu querer, a Dido consumida pelo fogo devastador do amor em lugar da Dido devastadora, a Dido com direito aos prazeres do amor e à maternidade, adiada com Siqueu, em lugar da Dido virilizada, monarca devota. Em suma, a Dido-mulher em vez da Dido-rainha.

Ao som dos trovões e de uma bátega de granizo, o seu casamento-relâmpago com Eneias numa gruta, uma celebração sem hinos nem rubores, ao abrigo do olhar do leitor (que deixaria insatisfeita a desenvolta pena de Camões), fá-la descer mais um degrau no percurso rainha-mulher.

A “força crua” que transformou a deusa-caçadora na corça ferida, a rainha na mulher, é a mesma que, em parte decalcada por Camões da Eneida – mas liricamente celebrada – causou a “molesta morte” de Inês e a elevou à condição real, o Amor. No “livro de Dido”, essa força fere e destrona. Nas estrofes de Camões, o amor fere mas sublima.

Neste processo de queda e ascensão, interessante é ver que é justamente nos momentos em que as suas histórias de amores infelizes mais parecem aproximar-se que Dido e Inês mais se afastam, que mais claramente vemos a rainha a pender para a mulher e a mulher para a rainha. A publicação da união de Dido e Eneias pela Fama, que obtém paralelo no “murmurar do povo”, acentua a condição de esposa ilegítima de Dido e a sua origem fenícia. Mas põe também em relevo a imagem da rainha adiada em que entretanto se transformara. Eneias – o único herói épico que se esquece do seu projecto de heroísmo no regaço de uma mulher –, esquece-se de que ainda não tem cidade e está destinado a fundá-la. Dido, esquece-se de que a tem. Na boca dos homens, corria agora que “passavam confortavelmente todo o Inverno na companhia um do outro, esquecidos dos seus reinos e tomados por uma luxúria ignóbil”.

Na epopeia lusíada, as vozes do povo e o que precipitariam, não transformam D. Pedro no príncipe bailador, nem Inês na castelhana mulher clandestina do infante, antes fazem aparecer um rei censurado pelo uso da espada, melhor aproveitada contra o furor Mauro, um príncipe enamorado (e correspondido) e uma mulher frágil, inesperadamente caída em desgraça, subjugada por forças incontroláveis.

A mácula de ilicitude amorosa que paira sobre Dido é resgatada pelos sentimentos que a sublimam. Afinal, não prendera Inês o seu príncipe com artifícios nem estratégias, prendera-o com um “gesto suave”. Na intervenção de Camões, sempre em favor de Inês, ao contrário do que sucede com Virgílio em relação a Dido, “a mísera e mesquinha”, para sempre subtraída à realidade medieval em que viveu, vai ascendendo, sem nunca precisar perder nenhuma das mulheres que é: a terna namorada, a amante ingénua, a mãe dedicada e afectuosa.

Mas também a célebre ordem divina da Eneida –“Nauiguet!” –, a que corresponderá a sentença real do episódio camoniano (“O velho pai sesudo […]/ Tirar Inês ao mundo determina”), faz aparecer os contornos da rainha fracassada e as várias mulheres que Dido,  num afastamento do paradigma feminino, experimentará: a recém-“casada”, logo traída e abandonada, a mãe outra vez adiada, a altiva apaixonada que descobriu, tarde demais, que o homem de quem se enamorara, não é, como D. Pedro, o amante fervoroso, a mulher desesperada que prolonga o seu ódio no tempo e no espaço.

Eneias, na sua fala breve, ajustada ao que sabe que tem de cumprir e não sabe como dizê-lo, apesar de se dirigir à rainha, é, no fundo, a Elisa, o primeiro nome da mulher a quem temporariamente se unira, que, afectuosamente, prefere apresentar os motivos da partida apressada, declinando o estatuto do noivo que não pode ser.

São vãs as tentativas de Dido para demover Eneias da partida. Será vão o soluçado apelo de Inês ao Rei. Tudo é vão quando deuses ou destino estão contra. No final do “livro de Dido” fica a imagem da mulher em chamas – “infelix Elisa”. A rainha há muito morrera, enredada nas teias perigosas do amor.

O príncipe troiano, para não se perder, aceita a provação do amor e a morte de Dido e continua caminho. D. Pedro, perdido de amores, sem vislumbrar caminho, num movimento de negação da morte de Inês, reagirá ao duro golpe. O face a face que D. Pedro parece ter desejado na hora do juízo final – assim indicia a célebre legenda “até ao fim do mundo”, que mandou inscrever no túmulo, teve-o Eneias, quando desceu aos infernos, na breve aparição do livro VI. Lá estava Dido, lívida, sem coroa nem reino, entre as mulheres que morreram de amor, pronta a voltar-lhe a face. Sem mais nada para dizer.