Com esta historieta dos recasados católicos não poderem ou não deverem fornicar caso não possam ou não consigam anular os casamentos anteriores, veio-me à baila outra vez a impiedade de alguns dogmas fundamentalistas com que a Igreja ainda consegue dominar, com pavores, os crentes mais beatos e tementes a Deus. Neste caso da imposição ou sugestão aos recasados para que se deitem sempre de costas voltadas um para o outro, a Igreja confirma que abomina o orgasmo mas também despreza, curiosamente, a função reprodutiva da fornicação, que lhe é tão cara, assim como ao Estado, preocupado como está com a baixa da natalidade.
Sou agnóstico e, por isso, tenho o mau hábito de duvidar quando constato que a prática não corresponde à teoria e as ideias são mandadas às urtigas quando se tornam inconvenientes. E isto sucede nos mais variados domínios da vida pública como, por exemplo, na política, no jornalismo ou na religião. E não se pode dizer que eu não o tenha escrito várias vezes, ab imo pectore, isto é, com a maior das franquezas, para mal dos meus pecados.
Lembro-me de ter assistido, em 1984, a uma manifestação apoiada pela hierarquia da Igreja Católica contra a aprovação da primeira e bem modesta lei de despenalização do aborto, cujo itinerário incluía a passagem pela frente da sede do PS, no Largo do Rato. À cabeça dessa manifestação, repleta de pupilas do velho Movimento Nacional Feminino e de fariseus que nunca faltam à missa de domingo, lá estava o professor de Direito Marcelo Rebelo de Sousa, jornalista e ex-ministro do governo da AD chefiado por Pinto Balsemão, já célebre pela “criação de factos políticos” e, 32 anos depois, eleito Presidente da República.
Sempre me espantou que tantos bispos e padres, professores de Direito com tanta fé em Deus, fariseus das quintas e bairros finos, beatos e beatas não conhecessem minimamente o pensamento sobre a “alma dos embriões” de um dos maiores, se não o maior, doutor da Igreja, São Tomás de Aquino. E foi nisso mesmo que pensei ao visitar, há vários anos, o Museu de Belas Artes de Sevilha, e deparar com a magnífica “Apoteose de São Tomás de Aquino”, pintada em 1631 por Francisco de Zurbarán (1598-1664), sem dúvida um dos quadros mais notáveis, complexos e ambiciosos do grande pintor espanhol.
São Tomás de Aquino (1225-1274), conhecido como o Doutor Angélico, ocupa o centro do quadro, rodeado por quatro padres (pais) da Igreja. Acima dele surge o Espírito Santo, com Cristo e a Virgem do lado esquerdo, São Paulo e São Domingos do lado direito. Abaixo dele está um grupo de frades dominicanos em oração, à esquerda, e outro grupo de figuras também em oração, à direita, entre as quais se destaca o imperador Carlos v.
Ao admirar esta extraordinária obra foi irresistível pensar no breve texto de Umberto Eco (1932-2016) sobre a alma dos embriões, no qual o escritor, filósofo, historiador, ensaísta e professor (cuja tese de doutoramento, em 1956, foi sobre “O Problema Estético em São Tomás”), evoca o pensamento do grande teólogo italiano acerca da criação da alma independentemente da matéria corporal. Para São Tomás, os vegetais têm uma “alma vegetativa” que nos animais é absorvida pela “alma sensitiva”, enquanto nos seres humanos essas duas funções são absorvidas pela “alma racional”. E é a esta que o homem deve o facto de ser dotado de inteligência, o que “faz dele uma pessoa”.
Citando a “Summa Theologica” e a “Summa Contra Gentiles”, Eco sublinha que São Tomás “tem uma visão muito biológica da formação do feto”. Deus só introduz, só insufla a alma, gradualmente, quando o feto adquire, primeiro, a “alma vegetativa” e, depois, a “alma sensitiva”. Apenas num corpo já formado é criada a “alma racional”. Ainda hoje subsiste a dúvida sobre qual é esse exacto momento. Mas, para São Tomás, é claro que existe uma gradação na geração, “por causa das formas intermédias de que é dotado o feto, desde a origem e até à sua forma final”. Mais: os embriões não participarão na ressurreição da carne, não ressuscitarão, pois que a “alma racional” não foi insuflada neles e, por essa razão, eles não são seres humanos. É o que afirma o Doutor Angélico.
Ora, São Tomás de Aquino não é uma autoridade qualquer. É, como salienta Eco, a “Autoridade por excelência”, a “coluna que serve de suporte à teologia católica”. Coluna essa que, curiosamente (acho eu), é bem explícita no quadro de Francisco de Zurbarán. E daí que, para Umberto Eco, sejam no mínimo surpreendentes “as actuais posições neofundamentalistas católicas”. Será caso para perguntar, como o fez Giovanni Sartori, se não se estará a estabelecer uma certa confusão entre a “defesa da vida” e a “defesa da vida humana”. O que levaria a considerar como homicídios, por exemplo, derramar esperma para fins não fecundantes, comer frangos, matar mosquitos ou consumir vegetais. Para já nem falar, como lembra Umberto Eco, dos gurus que andam pelas ruas com gaze na boca para evitarem matar microrganismos quando respiram.
Claro que é bem difícil, se não mesmo impossível, discutir com a hierarquia rígida e dogmática da Igreja Católica, tal como com os “católicos neofundamentalistas”, capazes de negar as próprias evidências contidas nas Sagradas Escrituras, no novo Catecismo da Igreja Católica ou nos textos dos seus maiores teólogos, como Santo Agostinho ou São Tomás de Aquino.
Tive essa experiência há um par de anos, ao ser alvo de violentas críticas e insultos por parte de alguns defensores da fé e do império, por causa de breves textos que me atrevi a escrever em defesa de um polémico cartaz do Bloco de Esquerda no qual se afirmava que “Jesus também teve dois pais”. Ora, eu acho que teve, sim senhor, e ainda por cima pais adoptivos!
Mas beatitude não é virtude, nem boa educação, nem inteligência. E lá me disseram que o cartaz, e a minha defesa dele, eram “uma estupidez”, em escandaloso contraste com a atitude muitíssimo responsável dos dirigentes do BE que consideraram o cartaz “um erro”. É assim uma evidência que fui sempre considerado um sujeito “politicamente (muito) incorrecto”. Mas que fique claro que não vou apelar para a veneranda figura do actual chefe do Estado e supremo magistrado da nação portuguesa, porque bem sei que ele, além de ser um “católico neofundamentalista”, não é um Doutor Angélico…
Escreve sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990