Ângelo Felgueiras. “Quando desci do Evereste pensei: isto não é o meu limite”

Ângelo Felgueiras. “Quando desci do Evereste pensei: isto não é o meu limite”


Passou 57 dias na Antártida a puxar um trenó de 60 quilos. Emocionou-se quando viu o Polo Sul, mas diz que não convém chorar nestes sítios. O frio congela as lágrimas e as pestanas ficam coladas


Polo Norte, Polo Sul, Evereste… Tudo lugares frios e inóspitos. Não gosta, por exemplo, de ir para uma praia paradisíaca?

Também ando por outros sítios e faço outras coisas de que gosto. Só que essas não são notícia. Vocês jornalistas não me vêm fazer perguntas por causa disso.

Do que vai à procura nesses sítios?

Não vou à procura de desconforto nem de nada. Simplesmente tenho vontade de ir a sítios que preenchem o meu imaginário, queria ver como são. Depois, à medida que vamos fazendo estas coisas, vamos conhecendo outras pessoas que estiveram lá e nos contam como foi.

E de misticismo ou espiritualidade?

Nada, nada. Estive 61 dias na Antártida, 57 dias a esquiar, com muita privação, num sítio onde se respira o ar mais puro e se bebe a água mais pura. Estive a fazer contas e acho que desde os 16 anos – não sou alcoólico nem nada que se pareça, mas bebo cerveja e vinho de forma social, como toda a gente – não me lembrava de ter estado 61 dias sem tocar em álcool. Há sempre um jantar, uma festa de anos. Obviamente, quando se está tanto tempo a respirar este ar tão puro e a fazer uma vida tão saudável e a ver paisagens tão…

Não são monótonas?

Não é nada monótono, está em constante mudança. Costumo dizer que vou lavar a cabeça por dentro. Aproveito, mas não vou à procura de nada. É uma consequência.

Também lhe agrada o lado do desafio e de conquistar algo que é difícil?

Agrada-me muito, porque mantém-me vivo, a treinar, a aprender coisas.

Como se prepara para uma expedição dessas?

Faço uns ironmans [prova que consiste em nadar 3,8 km, percorrer 180 km de bicicleta e correr uma maratona], uns triatlos, corridas, maratonas… Isso dá-me treino de resistência física, que é muito importante, mas também treino de cabeça. Uma pessoa tem de ter disponibilidade para sofrer, não basta estar em forma fisicamente. Esta expedição à Antártida não tinha os perigos associados a escalar uma montanha, que é cair numa crevasse ou cair num precipício. O perigo aqui é a exposição ao frio, que pode ter consequências dramáticas. Aqui precisava de criar rotinas relacionadas com o frio.

O corpo também se habitua?

Sim, mas não chega. Habituamo-nos a conviver com o frio, mas tenho de estar protegido. Esquiar não custa nada. Estar dentro da tenda não custa nada. O que custa, ou é perigoso, são as transições. Quando paro tenho de tirar a máscara e para tirar a máscara tenho de tirar as luvas, e tenho de fazer isto de costas para o vento. Tenho de fazer isto numa rotina e com um conjunto de luvas que me permita não congelar nenhum dedo ou não congelar a mão, o que pode acontecer de forma muito rápida.

O João Garcia perdeu as extremidades de alguns dedos quando tirou o segundo par de luvas no Evereste.

Na montanha existem dois problemas: o frio e a falta de oxigénio. A falta de oxigénio faz com que o sangue vá menos para as extremidades, portanto muito do frio que temos nos dedos está relacionado com isso. No caso da Antártida temos temperaturas na ordem dos menos 50 graus, o que dá um tempo de exposição muito curto para a pessoa não se magoar. Para treinar isso, exatamente há um ano eu estava a acampar na Noruega.

O que treinou exatamente?

É preciso ganhar rotinas e experimentar conjuntos de roupa e equipamentos que eu precisava de perceber se funcionavam comigo ou não. Quando tinha a certeza de que tinha todo o material de que precisava e de que as coisas estavam nas condições de que eu precisava, em finais de fevereiro ainda fui fazer a travessia de um glaciar na Islândia, também com temperaturas muito frias, onde utilizei tudo aquilo que utilizei no Polo Sul.

Fez um ensaio, por assim dizer?

Sim, pode-se dizer que fiz um ensaio. Tinha treinado muito, do ponto de vista físico estava forte, do ponto de vista de cabeça também. Estava muito bem preparado, muito mentalizado, sabia para o que ia, mas havia coisas que precisava de treinar.

Antes de sair para uma expedição destas vai fazer testes médicos?

Faço. Não quero ter uma dor de dentes na Antártida. É de todo desaconselhável. Sou piloto, sou uma pessoa razoavelmente saudável, pratico muito desporto, tenho cuidado com aquilo que faço, mas antes de me ir embora faço um check up para tentar diminuir os riscos.

E foi difícil convencer a sua família?

Eu gostava de ter ido sozinho, mas a minha mulher não me deixou. Ou melhor, mesmo quando a consegui convencer de que não era perigoso, percebi que ela ia ficar muito angustiada. Disse-lhe: ‘A diferença de estar sozinho ou acompanhado é que se eu morrer vai haver alguém que te diz como é que eu morri. E se for sozinho chegam lá e encontram o corpo’. O que me pode levar a morrer de uma maneira ou de outra é exatamente a mesma coisa.

Não tem mais probabilidade de sobreviver se tiver companhia?

Não. Sozinho tenho é de ter mais redundâncias. Não ando mais do que 30 quilómetros por dia, aquilo é tudo branco, nós vestimo-nos com cores berrantes. Tenho de dar a minha posição à noite, que é de onde vou sair de manhã. Se ao final do dia não dou a minha posição, alguém vai à minha procura, mandam a aviação.

Não pode escorregar ou cair ou magoar-se?

Cair porquê? Ali não há precipícios nem crevasses. Se eu disser que vou sozinho daqui para o Algarve a pé ninguém fica preocupado e se calhar é mais perigoso. 

Não pode ter uma tontura?

Há sítios onde isso é perigoso. Ali não. Se eu escorregar e partir um pé, agarro no telefone, ligo e peço ajuda. Dou a minha posição e vão-me buscar. De que é que posso morrer? Ter uma úlcera explosiva, um ataque cardíaco, mas se estiver com vocês aqui e tiver um ataque cardíaco vocês chamam o INEM e o INEM vem em cinco minutos. Se estiver no interior do país se calhar o INEM já não vem em cinco minutos e não é por estar acompanhado ou sozinho que deixo de morrer.

Pode explicar-me o trajeto? Para onde voa e onde começa a expedição propriamente dita?

Sou comandante da TAP, saí daqui para o Rio de Janeiro em funções. Daí, já como passageiro, apanhei um avião para Santiago do Chile e de Santiago do Chile para Punta Arenas, que é no Norte do Estreito de Magalhães. Aí apanhámos um avião russo fretado que nos levou para uma base na Antártida.

Essa base é o quê?

Está ali para receber turistas, aventureiros e expedições científicas. Tudo aquilo só funciona durante dois meses e meio. Os primeiros voos são no início de novembro, e o último voo era a 29 de janeiro [Verão no Hemisfério Sul]. É uma base também com tendas de muita qualidade, que estão sempre montadas, mas não são construções. Comparativamente com tudo o que veio a seguir é um hotel de cinco estrelas, mas continuam a ser tendas e a pessoa tem de ter alguns cuidados.

Tem duche ou sala de jantar, por exemplo?

Tem duche, tem uma enormíssima sala de jantar, come-se maravilhosamente, tem chefes, até tem sala de operações e é isso que torna aquilo um bocado caro. Toda a gente chega aí num quadrirreator, um avião grande, russo, preparado para a Sibéria e essas coisas, que aterra em Union Glacier, e depois aí existem outros três aviões que despacham as pessoas para os diversos sítios: uns vão subir montanhas, outros vão fazer expedições não só de aventura como científicas. Estive nessa base durante três dias e preparámos a fase final da logística. Apanhámos um voo de 20 minutos que nos deixou – a partir daqui começamos a falar em graus, deixamos de falar em quilómetros – nos 79 graus sul. Depois foram 57 dias a esquiar para irmos até aos 90. Fizemos aproximadamente 1200 quilómetros até chegar ao Polo Sul.

Portanto não se anda, esquia-se…

Só tirei os esquis durante meia hora, numa zona muito complicada a que se chama sastrugi. E estamos a arrastar um trenó de 60 quilos.

Com os mantimentos?

Os mantimentos, a tenda, o fogão, a roupa, a farmácia.

Cada pessoa leva um trenó desses?

Sim. E arrastar um trenó em neve vítrea, em gelo, não é difícil. Mas arrastar em neve fofa começa a ser mais complicado.

Cada pessoa tem margem de manobra para levar objetos pessoais que não são estritamente necessários?

Cada pessoa leva aquilo que quiser porque leva. [risos] 

Porque é ela a carregar?

Exato. Além das coisas essenciais não vai nada. O que é que a pessoa leva de miminhos? Levei um Kindle. Mas depois, quando a primeira pessoa desistiu, houve um avião que teve de a ir buscar e mandei o Kindle embora.

A pessoa paga para esse avião ir buscá-la?

O avião não vai de propósito. É um avião que regressava do Polo Sul e fez ali uma aterragem. É como parar para dar boleia a alguém. Aí aproveitámos para despachar tudo o que era supérfluo, o lixo que já tínhamos gerado até ao momento e no meu caso o Kindle, porque ao fim de não sei quanto tempo só tinha lido seis páginas

Porque não tinha tempo ou porque não lhe apetecia?

Não há hipótese. Mas, como dizia, de uma maneira geral ninguém leva nada que não seja essencial… Uma das pessoas que desistiu levava uma data de coisas e cansou-se mais rapidamente.

Acha que desistiu também por causa disso?

Não tenho dúvida de que uma das razões que o levou a desistir foi o peso absurdo que levava. Levava roupa a mais, comida a mais – e nós já levamos muita comida.

Que tipo de comida é que se leva?

Comida desidratada. O pequeno-almoço é um pequeno-almoço que posso tomar em casa: flocos de aveia com granola, há quem misture chocolates, há quem mistura grandes colheres de manteiga. E bebia meio litro de café Delta, o meu patrocinador. Ao jantar comia sempre daquelas sopas chinesas de massa, 600 calorias, e misturava azeite na sopa. Tudo o resto era combustível: chocolates, barras [energéticas], frutos secos. Não passei fome, de maneira nenhuma. 

E não se farta?

Ao fim de algum tempo a comida desidratada já não me sabia a nada. Agora já estou bastante bem, mas uma das coisas que necessitei de recuperar e de reeducar foi o paladar. 

O que acontecia quando comia comida normal, depois de regressar?

Não tinha o mesmo sabor. Lembro-me de beber uma Coca-Cola quando cheguei ao Polo Sul – estava lá uma tenda grande, aquecida, com cozinha, onde comi pela primeira vez comida normal e bebei uma Coca-Cola. É um sabor… não me lembrava de ser assim. Sabia a quê? Não sei dizer. Mas voltara comer comida cozinhada é uma sensação boa. E um duche que se toma ao fim de 58 dias é um duche que sabe muito bem. Só quem passa por isso é que percebe o bom que é abrir a torneira e sair água quente.

Quanto custou essa refeição no Polo Sul?

Isso não está em causa. A partir do momento em que chegamos à Antártida está tudo incluído para esta expedição. O que encarece as coisas é o transporte. Cada quilo de bagagem custa 60 euros.

Durante esses 50 e tal dias há tempo para convívio, ou tempo livre, ou todo o tempo é passado a sobreviver?

Tudo aquilo é um exercício de sobrevivência. Mas quando criamos as nossas rotinas temos tempo livre, o tempo em que estamos juntos. Numa tenda não podemos fazer tudo ao mesmo tempo. Eu levantava-me às dez para as sete, cinco minutos antes do meu parceiro de tenda, punha logo água a fazer enquanto ele se ia vestindo.

Bebem água derretida, não é?

Sim, mas se derretermos água diretamente a partir do gelo a água fica com sabor a queimado. O que fazemos é ter água dentro de um termos, pomo-la numa panela, aquecemos até ferver, depois vamos misturando gelo nessa água e passamo-la para as garrafas. Se eu agarrar em gelo e o puser dentro de uma panela ele vai derreter, mas a água sabe a queimado, o que é um bocado estranho. Esse é o tempo em que conversamos: ‘Dormiste bem? Como é que estás? Dói-te alguma coisa?’ Depois saímos da tenda por volta das oito e meia, sempre a olhar para a outra tenda para sairmos todos ao mesmo tempo.

Fora disso, nunca se sai?

Sai para ir à casa de banho ou qualquer coisa – e se estiver muito mau nem para isso. Agora ‘vou lá para fora um bocadinho’, ninguém faz uma coisa dessas porque é estar ao frio. Dentro da tenda está-se bem, fora da tenda está-se com muito frio.

Que temperatura faz dentro da tenda?

Dentro da tenda chegava a dormir de tronco nu e com o saco-cama aberto. Às vezes tínhamos 13 graus, 14 graus dentro da tenda. Não havendo nuvens aquilo faz um efeito estufa bestial, coisa que não acontece no Polo Norte. O Polo Norte é frio a qualquer hora, dentro da tenda, fora da tenda, um frio de morrer. Ali não. Às vezes tinha-se conforto. Quando chegamos é o processo inverso. Parávamos de esquiar por volta das cinco e meia, às seis conseguia estar dentro da tenda, a coisa mais importante era beber um batido de proteínas quente, e a partir desse momento fazer fogo, preparar o fogão. Aí começávamos o ritual da comida, comia sempre muito para ter energia para o dia seguinte: bolachas com manteiga de amendoim, fatias de salami, aquela espécie de chouriço de quem não sabe fazer enchidos, depois comia uma dessas sopas chinesas com azeite e com queijo, depois ainda comia uma refeição desidratada, e comíamos um chocolate por dia. Cinco mil calorias é muita comida. 

Conversa só com a pessoa que está na sua tenda?

O que vou fazer para a tenda do outro se tenho tudo na minha? Se temos de comunicar, comunicamos. Às vezes falamos de uma tenda para a outra: ‘Alguém falou para casa? Há notícias? O Trump já fez asneira outra vez? Já rebentaram com a Coreia?’. No dia de Natal combinámos: ‘Às sete e meia tragam as vossas refeições’. Lá vamos nós com uma caneca de uma tenda para a outra. E o que foi a refeição? A mesma coisa, a mesma comida desidratada. Acompanhada com quê? Com a mesma água, a água mais pura do mundo. [risos]

Tem um sabor diferente?

Não.

Durante a viagem há algum momento em que comece a pensar ‘O que é que estou aqui a fazer? Podia estar em casa sossegadinho, em vez disso estou a apanhar frio, a comer esta porcaria desta comida…’

Isso nunca me passou pela cabeça. Algumas pessoas perguntam: ‘E o frio? Não é muito duro?’. É muito duro mas é um enorme privilégio. Estar no alto do Evereste ou no alto de outra montanha qualquer, estar na Antártida durante 60 dias é um privilégio que poucas pessoas usufruíram até hoje. Conseguir ver três arco-íris ao mesmo tempo, em eixos diferentes, é uma coisa… posso dizer que é para os fotógrafos se babarem. Eles têm as máquinas, eu tenho o cenário. Nunca pensei em desistir, nem nunca tive essas dúvidas. Sabia ao que ia.

Levou máquina fotográfica consigo?

Tenho uma Canon Powershot [compacta], daquelas de disparar. Nem vejo o que estou fotografar. Felizmente hoje não há rolos, é cartões cheios de megabytes, o que faço é tirar a máquina, tac tac tac, e alguma coisa há de ficar. Há sequências que ficam uma porcaria, há outras que ficam muita giras, e além disso ainda temos os telemóveis. Mas estar num sítio destes é um privilégio, estar 60 dias sem notícias… Sei que estando a falar com jornalistas pode não ser a coisa mais politicamente correta, mas é bom. Não vou à procura disso, mas acaba por ser uma meditação. Quando estou a rebocar um trenó com tudo aquilo de que preciso para 60 dias, começo a perceber que o que temos em casa é quase tudo supérfluo. Nós é que gostamos de ter coisas das quais não precisamos. E eu também gosto. Ali tinha uma caneca e uma bowl.

Uma tigela?

É como se fossem duas canecas, uma de meio litro e outra de um litro. A de um litro é para comer, a outra é para beber. E tinha uma colher que dava para tudo. Mexia, espetava o cabo na neve, comia a sopa, depois de comer a sopa deitava água e comia uma refeição desidratada, e depois de comer a refeição desidratada punha mais água para aproveitar os sais. Quando comia coisas com um sabor muito intenso pegava num bocadinho de papel higiénico e limpava aquilo por dentro. No outro dia… comia os meus flocos de aveia na mesma tigela. [risos] Funcionou assim durante 60 dias. Em casa a gente tem prato de entrada, de sopa, de sobremesa, segundo prato, 40 pares de talheres… [com ironia] é tudo fundamental. Claro que há coisas que se eu pudesse ter ali teria.

Uma cerveja?

Não. É bom ter a ausência dessas coisas até para lhes dar valor. Utilizei o mesmo par de meias durante 25 dias. As pessoas diziam-me: ‘Que cheiro!!!’. O cheiro vem ao fim de dois. Ao fim de dois dias ou de 25 a coisa é a mesma. Eu não troco de meias porque estão sujas, eu troco de meias porque estão frias ou rotas ou porque não estão a resultar. Se o conjunto que estou a usar está confortável e não faz bolha – não se mexe. Troco de dois em dois dias? Não. Troco porque tenho de trocar. Levei várias e algumas nem usei.

Aconteceu alguma pessoa do seu grupo adoecer?

Aconteceu ao princípio. Tivemos de estar parados um bom dia esquiável por causa disso e mesmo no final, quando já só éramos quatro, houve um tipo que adoeceu, mas na minha opinião adoeceu da cabeça, não adoeceu do corpo. ‘Tenho de descansar, tenho de descansar’. Aquilo é muito tempo e há pessoas que não aguentam a pressão. Criou até um ambiente menos simpático. Dois dias parados ao fim de 50 dias é absolutamente dramático. Para a cabeça é terrível, e para o corpo também. A partir de uma determinada fase o descanso é sempre um descanso ativo. Em vez de fazermos seis etapas fazemos três, em vez de esquiarmos oito horas esquiamos quatro. Se ficamos dois dias sem fazer nada…

O corpo habitua-se?

O corpo diz assim: ‘Parámos, vou entrar em modo de descanso’. Isso foi chato. Quando retomámos, os dois que não se tinham queixado até aí queixaram-se.

Como foi a reta final?

Quando já estamos perto há uns cartazes que dizem: ‘You are almost at the South Pole but be aware’. [‘Você está quase no Polo Sul mas tenha atenção’]. Entramos numa zona denominada ASMA 5, que é Antarctic Surveillance Monitoring Area, que é uma zona em que nem chichi se pode fazer na neve, vai tudo dentro de sacos ou dentro de uns frascos que usávamos como penicos. Quem está na tenda não vem cá fora fazer chichi, dá muito trabalho. Faz para dentro de uns frascos próprios e no outro dia despeja-se lá fora. Mas durante o dia se quiser faz um chichi. Naquela zona não: se quer fazer chichi leva o frasco.

Quando se chega ao Polo Sul há uma libertação de energia, um sentimento de conquista?

Quando cheguei ao fim não tive o sentimento de conquista. Tenho o sentimento de conquista quando vejo o fim. E o problema foi que ali vi o fim no dia antes. Até escrevi para casa a dizer: ’13 de janeiro. O dia em que eu vi o Polo Sul’. A gente anda atrás daquilo há 57 dias, é tudo branquinho e de repente há um tipo que diz: ‘Guys, look at the spot. Do you see a black dot?’ [ ‘Malta, olhem para ali. Veem aquele ponto preto?’] Era a Estação Amundsen-Scott. A gente pensa ‘Está ali o Polo Sul’. Só que como aquilo é muito limpo e tem muito boa visibilidade, demora um bocadinho. Nunca mais se chega. O edifício que lá ao longe era só um pontinho começa a crescer. Quando a gente começa a sair da última etapa e ainda falta um bom par de horas, aí é que me emociono, aí é que penso nas coisas, aí é que tenho uma descompressão grande e até choro, se me apetecer. O que não dá muito jeito. Chorar nestes sítios é horrível.

Porque congela as lágrimas?

Congela mesmo. E às vezes as pestanas ficam coladas. Quando há um dia que permite, tiramos a máscara e às vezes vem um bocadinho de vento e provoca lágrimas. Um tipo fica com o olho congelado, depois é uma chatice: tem de tirar a luva, pôr a mão para descongelar a pestana e depois é que se volta a abrir. Quando vejo o Polo Sul é aí que me emociono. Depois quando chego lá há um check list, coisas a que não me posso esquecer de tirar fotografias. É uma grande emoção? Não. Quando chegamos ao alto de uma montanha é o alto de uma montanha. Quando chegamos ao Polo Sul, em vez de termos tudo branco, bonito, fantástico, termos um sítio com uma construção muito grande, à americana, com ginásio, aquelas coisas todas. Perto da base tem uma zona gigantesca com um enorme painel solar para alimentar a base. A dois três quilómetros há várias antenas, que são telescópios, enfim… 

Há alguma espécie de diploma ou certificado?

Não. Lá na estação havia uns carimbos para pôr no passaporte, mas como não levei passaporte…

E levou dinheiro ou cartão de crédito?

Só para o Chile. Para a Antártida não se leva nada que seja supérfluo.

Estas aventuras não se podem tornar uma droga?

Isto já é uma droga. A minha mulher disse-me: ‘É bom que percebas que isto é a tua overdose porque vai acabar’. [risos] Havia coisas que não queria morrer sem fazer, essas já fiz todas.

Que eram quais?

Já subi os Seven Summits, que são as montanhas mais altas de cada continente, e no meio disto apareceram montanhas com oito mil metros que também subi. Quando desci do Evereste pensei ‘isto não é o meu limite, gostava de fazer mais qualquer coisa’ e acabei por decidir ir aos polos. Fui ao Polo Norte em 2013 e agora ao Polo Sul, que foi a aventura mais longa e mais dura fisicamente e psicologicamente. O que tinha a fazer já fiz, mas se me derem um orçamento ilimitado tenho montes de coisas que gostaria de fazer. A parte mais difícil disto é arranjar os patrocínios.

Não poderia pagar do seu bolso?

Era impossível. Ali só há dois tipos de pessoas: ou malta com muito, muito dinheiro, ou patrocinados. E tem mais uma particularidade: das pessoas que andam nesta vida, tirando os guias, que são profissionais, só conheço um outro alpinista que é casado há trinta anos e tem três filhos como eu. O resto são pessoas que de uma maneira geral estão sozinhas. Mas o mais difícil é arranjar patrocínios e não me apetece voltar a passar por todo o processo.

Andar de mão estendida?

Ainda temos uma política muito pouco recetiva a este tipo de coisas. Se me caísse do céu… Agora, ter de ir à procura, ter de voltar a pedir. Uma das coisas mais antipáticas de todas é entrar em contacto com uma empresa e ninguém responder. Mas quando precisam de alguma coisa telefonam. ‘Não quer vir cá?’. Não me posso queixar, tenho tido apoios para tudo, mas tive de trabalhar muito para os conseguir. Muita gente ainda pensa: ‘Este tipo quer ir de férias à borla’.

Às vezes não tem desilusões? Por exemplo chegar ao Evereste e estar tudo nublado e não conseguir ver nada?

Nunca tive. Quando se vai para o cume de uma montanha temos de ter uma janela de oportunidade, portanto à partida está bom tempo. Com certeza que há dias duros. Nesta expedição à Antártida houve dois dias daquilo a que se chama white-out, em que não se vê nada. Mas mesmo nada. A única coisa que se vê é a ponta do ski. É quando é mais difícil ir à frente, temos que andar com uma bússola porque começamos facilmente a desviar-nos sem nos apercebermos. Às vezes tinha a sensação de estar na crista de uma montanha com um precipício para cada lado. Não há contraste, não há profundidade, é uma coisa estranhíssima. Há quem enjoe, não é o meu caso. O que é que uma pessoa faz? Aproveita para pensar. Em vez de estar a ver a paisagem está a pensar na vida.

Li que as pessoas que escalam o Evereste deixam imenso lixo. Deu-se conta disso?

Tive a noção exatamente contrária. As pessoas hoje não só não deixam lixo absolutamente nenhum como trazem algum do lixo que vão encontrando pelo caminho. Na Antártida, tudo que é embalagens fica logo em terra. Mas há coisas que não ficam. Uma vez voou um bocadinho de papel do chocolate, é um azar. Ainda tentei ir buscar, mas o vento é para esquecer. Mas ninguém deita lixo para o chão. Levei 30 pacotes de Pringles e comia um cada dois dias e o meu parceiro também. Desacertados. Depois púnhamos o lixo do dia nesse pacote. E na zona a que chamam ASMA 5 usámos uns sacos para o cocó que os astronautas também usam. Lá dentro tem um produto químico que transforma em sólidos tudo o que não é sólido, mas não é para fazer chichi. Isto é mais badalhoco de falar do que de viver, porque ali é tão frio que congela rapidamente. São uns sacos muito resistentes e não faz impressão nenhuma.

Tem noção de quanto custou esta viagem?

Isso é outra coisa de que as pessoas têm medo de falar. Esta expedição à Antártida custou 75 mil euros, incluindo as duas viagens de preparação à Noruega e à Islândia. Quando fui ao Evereste e a outras montanhas fui patrocinado por uma seguradora, a Groupama, que também tinha um barco que competia na Volvo Ocean Race. O skipper, o Franck Cammas, tinha um orçamento de 50 milhões! O meu era de vinte mil. Depois perdi esse apoio mas fui tendo outros. Tive um contrato para o Polo Norte e para o Polo Sul que a PT não cumpriu. 

Porquê?

Porque pode não cumprir.

Não havia um documento?

Havia, mas para que é que serve o documento? Não quero ir com uma companhia que não me quer apoiar. Apesar de toda a sua arrogância e sobranceria, sei que em tribunal provavelmente teria ganho. Na altura perguntei-lhes isso: ‘E se for eu a decidir não ir?’ ‘A gente punha-te em tribunal e também nos podes pôr a nós’… Tenho tristeza nessa matéria.

O Polo Norte é diferente do Polo Sul?

É. A Antártida é um continente, o Polo Norte é um oceano. Neste meio não se diz ‘Vou ao Polo Norte’. Diz-se ‘Vou fazer uma expedição ao Arctic Ocean’. É um frio muito mais cortante do que o do Polo Sul. É muito menos tempo, as expedições são muito mais pequenas. Aquilo é um icebergue gigantesco, está sempre em movimento, e como a Terra está a aquecer, está cada vez mais curto, cada vez fazem-se menos graus para lá chegar.

Em termos de paisagem também é diferente?

É diferente. O Polo Norte não tem tanto sol, até porque não se pode ir no Verão, no Verão derreteu tudo, tem de se ir numa fase intermédia. Eu fui ao Polo Norte em março/abril, quando ainda há gelo suficiente mas já não está tanto frio.

Como é o regresso do Polo Sul?

Voltamos de avião. Eu fui da linha de costa até ao Polo Sul, gostava de ir de uma linha de costa até à outra linha de costa.

Quando volta a casa dá mais valor a certos confortos que, se estivesse sempre cá, nem reparava?

Acho que sou uma pessoa razoavelmente atenta mas há coisas em que se calhar nem reparava. Quando fui subir o Evereste levei os meus filhos comigo até ao campo base. 

Que idade tinham?

Sete, nove e 14 anos.

Sete?!

Fizeram 130 km a pé, entre os dois mil e os cinco mil metros de altitude. Cinco mil metros já é muita fruta. E durante 15 dias viveram sem água canalizada, sem internet, sem eletricidade, sem nada daquilo que damos por garantido. Em casa, para lavar os dentes, abrimos a torneira e se estiver muito fria até abrimos a água quente, porque nos podemos dar a esse luxo, mas há muitas pessoas que nem água canalizada têm em casa. Choca-me as pessoas não perceberem o privilégio que é terem uma torneira de onde sai água canalizada quando há milhões e milhões no mundo que não têm. Vou mudar a minha vida por causa disso? Não. Mas posso tentar mudar um bocadinho do mundo. 

Como?

Dando o exemplo, respeitando as outras pessoas, inclusivamente as que não ligam nenhuma a isso. Não temos de de ser uns ativistas nem de viver deprimidos por causa disso, mas podemos fazer qualquer coisinha para mudar. Na sociedade onde vivemos as pessoas dão tudo por garantido. Eu também gosto de conforto, gosto de viver como vivo. Mas sei viver com muito menos.

Conseguiu passar essa lição aos seus filhos?

Os meus filhos… gozam com o pai. [risos] Mas têm orgulho. As viagens que tenho feito estão sempre associadas a uma instituição de solidariedade. E nesta associei-me à Associação Acreditar, que faz um trabalho absolutamente notável a ajudar crianças com cancro. Gosto de levar os meus filhos a essas instituições e mostrar-lhes que a minha ausência também está ligada a um contributo para a sociedade. Eles não têm de fazer aquilo que eu faço, nem de subir montanhas, nem de ser pilotos, nada disso. O que gostava que eles ficassem era com a noção da influência que podem ter no mundo e sobretudo que nós não temos limites se não nos autolimitarmos.

Como é que as suas expedições ajudam uma associação como a Acreditar?

Fiz uma coisa chamada ‘Escalar por uma Causa’, que tem um grupo no Facebook chamado Esquiar por uma Causa que incentiva as pessoas a fazerem contributos para a Associação Acreditar. Está lá o NIB, toda a gente pode contribuir. Neste momento juntámos 16 mil euros e eu tenho esperança de que aumente. A campanha termina no dia 15, que é o dia mundial da criança com cancro, em que vou estar na Acreditar em conjunto com o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa. Também já oferecemos uma carrinha a uma escola aqui da zona, a escolinha de râguebi da Galiza, com donativos que as pessoas fizeram da minha subida ao Evereste.

Qual foi o lugar mais espantoso onde já esteve?

No mundo? Vocês vão achar que estou a brincar ou que sou politicamente correto… Os Açores. Em Portugal o que não temos é a dimensão. Aqui tenho de olhar para o mar para não ter limites. Se for para a Serra da Estrela, para outra montanha qualquer, há sempre um sinal humano algures. Na Patagónia há estradas sem fim, com uma extensão a perder de vista… Mas, em termos de beleza natural, somos um país absolutamente fantástico. Gostei muito do Nepal, gostei muito da Patagónia, gosto muito do Canadá. Mas o Pico é uma montanha linda. Subir o Pico e no mesmo dia tomar banho no canal e depois comer umas lapas ao fim do dia… Não há muitos sítios assim.

O que ainda lhe falta conhecer?

Falta-me tanto. Há sempre coisas para conhecer, até em Portugal. 

Onde gostaria de regressar?

Gostei muito de subir o Denali, no Alasca. Não me importava de voltar a subir e fazer uma travessia, descer pelo outro lado. É uma montanha muito bonita. Há muitos sítios onde gostava de voltar, mas como não somos milionários do tempo – nem do dinheiro – com a mesma quantidade de tempo e de dinheiro prefiro ir a um sítio que não conheça. Não tenho uma casa de férias, porque depois precisamos de rentabilizar a casa de férias e temos de ir sempre para lá. O único sítio onde volto sempre de férias é aos açores. A minha mulher é açoriana, de S. Miguel, os meus sogros vivem lá e nós vamos lá muitas vezes, mas vou às outras ilhas também com alguma frequência. Está-se a abrir um bocadinho com estas empresas low cost, mas ainda é um segredo razoavelmente bem guardado. 

O que aprendeu nessas expedições, sobre si ou sobre os outros?

Ajudam-me a manter os pés na terra e a ser mais humilde, e a perceber que somos tão pequeninos na natureza… Conseguimos sobreviver, mas somos pequeninos, não vale a pena contrariar coisas que não querem ser contrariadas.