Continuamos, de um lado, na ilusão de que o Estado tem a obrigação de ter um polícia atrás de cada pessoa, e, de outro, a ter o preconceito de que, por trás de cada situação levada aos tribunais, encontraremos sempre crianças complexadas, pais violentos e desinteresse do Estado. Não é assim. Os fenómenos de violência são fenómenos complexos que emanam de todos os padrões sociais, económicos e sociais, cabendo a cada um deles uma análise particular e inextrapolável. Há, porém, uma observação inegável. O sistema judicial não só tem de ser mais eficiente no modo como lida com a violência doméstica como deve adotar uma estratégia que demonstre à opinião pública a sua preocupação com as vítimas, com a justiça, com a adequação dos procedimentos e com a punição e regeneração dos criminosos.
Nos últimos quase 40 anos, as agendas políticas, nacionais e internacionais têm, ao seu ritmo, colocado a tónica na não discriminação de género e apelado à inclusão social das mulheres. A igualdade de direitos e de oportunidades está ressalvada no texto constitucional desde 1976, e a tarefa fundamental do Estado de promover a igualdade entre homens e mulheres desde 1997. Desde os anos 90 do séc. xx, com o início da problematização da violência doméstica, nomeadamente da violência contra a mulher, que o reflexo das prioridades emergentes em instituições internacionais e regionais apontava para a necessária introdução da perspetiva de género na orientação das medidas políticas.
Portugal tem assumido um conjunto de compromissos internacionais que enformam o combate à violência e se espelham em medidas internas ao nível da violência – contra a mulher, doméstica e de género –, da proteção dos direitos das vítimas e da responsabilização do agente agressor. A convenção para combater a violência sobre as mulheres e a violência doméstica – Convenção de Istambul – tornou Portugal o terceiro Estado-membro do Conselho da Europa e o primeiro da União Europeia a ratificar aquele que constitui o primeiro instrumento internacional juridicamente vinculativo a cobrir praticamente todas as formas de violência contra as mulheres. A Convenção de Istambul entrou em vigor no dia 1 de agosto de 2014.
Mais: as alterações recentes ao Código Penal, em concreto ao seu artigo 152.o, que institui o crime de violência doméstica, não apenas revelam a decisão do legislador de revestir maior gravidade e censurabilidade a este tipo de crime, quando comparado com o crime de maus-tratos, como a previsão de relações especiais de conjugabilidade ou análoga, de coparentalidade ou de coabitação, ainda que passadas, assumem essa dimensão de especial censurabilidade e, por conseguinte, de culpabilidade, dada a recondução de tais relações ao domínio da afetividade. É por isso também que as situações de violência doméstica devem assumir particular relevo no domínio do direito da família, quer diretamente, no âmbito do processo de divórcio, quer no âmbito das demais questões com ele conexas e, ainda, de algumas providências tutelares cíveis de limitação e inibição desse exercício. Isto porque “a violência doméstica é a violência que ocorre na esfera privada, geralmente entre pessoas que têm relações familiares ou de intimidade”, conforme atesta a resolução n.o 58/174, da Assembleia-Geral da ONU, e também o Conselho da Europa, na Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência Contra as Mulheres e à Violência Doméstica, 2011, ao afirmar que a violência doméstica compreende “todos os atos de violência que ocorrem na família ou no agregado doméstico como aqueles que ocorrem entre ex-parceiros ou entre atuais parceiros independentemente de a vítima e do agressor partilharem a mesma casa”.
Na semana passada foi divulgado o relatório da Equipa de Análise Retrospetiva de Homicídio em contexto de Violência Doméstica (EARHVD) que acusa o Ministério Público de falhas graves num caso mortal para uma mulher de Valongo, 37 dias após ter apresentado queixa do seu companheiro. Em 2016, segundo os dados do Relatório de Segurança Interna, registaram–se 27 mil ocorrências do crime de violência doméstica. Apesar da gravidade do relato, a verdade é que, para além de se tratar de um crime de investigação prioritária, quer o Ministério Público, através das orientações da Procuradoria-Geral ou das diversas secções especializadas de comarca, quer os órgãos de polícia criminal têm contribuído para que este crime seja uma preocupação constante dos órgãos judiciais e auxiliares de justiça. É verdade que o Estado deve ser potenciado a responder e a proteger as vítimas dando-lhes, no mínimo, a segurança de uma justiça célere e eficaz, mas também é verdade que o MP tem sido extraordinário no domínio processual que lhe cabe neste âmbito.
Vice-presidente do grupo parlamentar do PSD. Docente universitário
Escreve à segunda-feira