António Barreto: ‘Construí para mim próprio uma obsessão de independência’

António Barreto: ‘Construí para mim próprio uma obsessão de independência’


O seu mais recente livro de ensaios, De Portugal para a Europa (ed. Relógio d’Água), serviu de ponto de partida para uma conversa sobre o país, o progresso e a atualidade, mas também sobre os prazeres e os aborrecimentos da vida.


António Barreto recebe-nos no seu escritório, no centro de Lisboa, a cinco minutos de sua casa, ao qual se desloca quase todos os dias. É aqui que estuda, lê e trabalha nos seus livros. Só no último ano publicou três, um dos quais Anatomia de uma Revolução (ed. D. Quixote), originalmente editado em 1987. «É a descrição da Reforma Agrária portuguesa, no período até eu ir para o Governo. A Direita não gostou desse livro, e a Esquerda também não. Esteve desaparecido durante 40 anos».

A sua mais recente obra chama-se De Portugal para a Europa (ed. Relógio d’Água). Foi apresentado na passada quinta-feira na Academia das Ciências de Lisboa e faz uma radiografia do país, das suas virtudes e debilidades, no contexto da integração europeia.

O escritório ocupa um piso inteiro de um edifício antigo. Nas diferentes divisões verifica-se uma constante: livros, livros e mais livros. «Há um velho ditado que diz que o saber não ocupa lugar. Ocupa imenso», graceja. Uma das divisões está a ser preparada para ficar dedicada à fotografia, atividade a que Barreto continua a dedicar-se apaixonadamente. Ao mesmo tempo, continua sempre a congeminar novos lançamentos. «Agora estou a tentar pôr a cabeça e as minhas notas em ordem, para atacar um ou dois livros novos que quero fazer nos próximos dois anos».

De Portugal para a Europa. A sua ideia, quando escolheu este título, era aludir à evolução de um país fechado sobre si próprio para um país que pertence à Europa? – e digo pertence no sentido em que ‘faz parte de’, mas também no sentido em que ‘obedece a’.

Eu não me ocupo da parte histórica, mas a mecânica do título pode sugerir isso. Nós vivemos outros ciclos temporais – de Portugal para o Atlântico, para a África, para a Ásia. Em Vila Real, há uns 70 anos, numa situação qualquer de nervoseira, havia sempre alguém que dizia esta frase esquisita: ‘Calma no Brasil, que Angola é nossa’. Deve ser qualquer coisa do século XIX, quando o Brasil declarou a independência, e para quem se atemorizava com a perda de rendimentos, dizia-se ‘temos Angola’.

Pelo menos havia essa alternativa.

Nos anos 50 e 60, sobretudo depois de começar a guerra, gradualmente forjou-se esta dicotomia ‘Europa versus África’. No fim da guerra havia três alternativas para Portugal: a solidão, que é sempre possível, o caminho da Europa, ou outros caminhos incertos. Os portugueses adotaram o caminho da Europa. Creio que foi uma decisão acertada da elite política e das populações. Lamentavelmente nunca houve um referendo, nunca houve um voto popular sobre isso.

E agora, já é demasiado tarde?

Ainda estamos a tempo. Vamos ter novas Europas, há coisas novas à nossa frente. Já houve uma Constituição Europeia que vários países votaram e Portugal não votou, mais uma vez. Os ensaios e as conferências que estão aqui foram escritos nos últimos dez, doze anos, e em geral tentam olhar para o período da integração europeia até hoje – resultados, tensões, contradições. Tomo partido pela Europa, sem qualquer dúvida, apesar de ser hoje um europeu sofrido. A minha Europa não é esta, a minha Europa desejada é mais próxima da Europa das Nações do De Gaulle, uma Europa de países independentes, que tem um mercado comum, um mercado livre, um mercado único, eventualmente, mas que não tem muitas instituições comuns. Talvez uma ou outra, mas acho que este caminho constante para a federalização da Europa vai criar crises umas atrás das outras.

Como o Brexit?

A crise inglesa creio que é um bom exemplo. Grande parte dos europeus olha para isto como um castigo: a Inglaterra está a ser castigada. Eu lamento. Acho que a Europa perdeu com a saída da Inglaterra, vai perder ainda mais, vai ser difícil viver sem a Grã-Bretanha e para a Grã-Bretanha também imagino que vai ser difícil viver sem a Europa. Foi um duplo erro.

Parece-me mais ou menos óbvio o que a Europa tem para oferecer a Portugal – segurança, mercados, dinheiro, uma garantia democrática, um sentimento de pertença ao lote dos países desenvolvidos. Inversamente, o que tem Portugal para dar à Europa, sendo um país periférico e com tão pouco peso?

O simples facto de ser mais uma nação é qualquer coisa.

Acrescenta um número?

Não é só um número. Número e nação. Portugal é uma das mais velhas nações europeias, feita por um Estado muito antigo, com nove séculos, uma língua, uma fronteira. Depois, temos a fronteira marítima, a costa atlântica, a zona exclusiva, os fundos do mar – uma zona ainda mais vasta do que a zona exclusiva. Tudo isto é um contributo nosso para a Europa. Não temos uma grande riqueza, não temos uma grande especialidade em ciência ou em tecnologia…

Não temos uma grande indústria…

Mas temos estes aspetos: costa, frente atlântica, zona exclusiva e a exploração de solo marítimo, que é uma coisa que está a aparecer agora e que pode ser tão importante para o futuro como o espaço. O fundo marítimo tem sido muito pouco estudado, muito pouco explorado, e Portugal tem uma posição excelente para contribuir e para fazer mais por isso. Depois oferecemos, como hei-de dizer? Uma nação é uma cultura e uma nação e uma cultura são argumentos de diversidade.

Que enriquecem a Europa?

A Europa tem-nos dado dinheiro através dos fundos. Mas também nos leva alguma coisa. Com a troika e com a assistência financeira os bancos europeus levaram muitos recursos portugueses. Mas o que a Europa nos dá sobretudo são oportunidades que não teríamos de outra maneira. Oportunidades comerciais, oportunidades culturais, oportunidades para a juventude, para o estudo, para a ciência, para as profissões. As oportunidades estão lá, se soubermos aproveitá-las ganhamos, se não soubermos perdemos. Mas não é uma esmola. Outro exemplo é a defesa. Eu não sou um militarista reputado, como sabe, mas a Europa precisa de uma defesa. A China sobe, a Índia sobe, a Rússia sobe, os Estados Unidos iniciaram um período de imprevisibilidade, o que é muito complicado.

Houve uma época em que estávamos encostados aos Estados Unidos. Isso acabou?

Encostados aos EUA e à NATO. E a Europa andou a poupar durante 50 anos. A Europa foi muito, muito preguiçosa, muito desleixada e muito forreta na sua defesa. Hoje, sem os EUA, a Europa não tem hoje capacidade de defesa. E sem Inglaterra ainda menos. As forças armadas britânicas são as mais poderosas, mais bem organizadas e mais bem equipadas da Europa. A NATO tem obrigatoriamente de ser revista e se não for a NATO terá de haver uma organização europeia de defesa. O caso da defesa é um exemplo paralelo: só se Portugal for desleixado, preguiçoso e oportunista é que a Europa tem de tomar conta de nós, o que é mau. O nosso contributo para a defesa europeia em homens, em pessoal, em sítios, em fronteiras, em mar, é um contributo importante.

Há pouco falou das crises que a Europa vai enfrentar. Acha possível voltarmos ao modelo do ‘cada um por si’?

Creio que isso já não é possível. Hoje a integração é tão forte que já é muito difícil recuar. Ou então teria de ser um recuar muito metódico durante muitos anos. Nos países da Europa Central que já são da União estão a surgir tendências orientalistas, iliberais ou antidemocráticas, ou de um tipo de democracia diferente, ou nacionalistas, que merecem muita atenção. É perfeitamente possível que haja necessidade de rever a organização da União Europeia por causa desses países e não me parece impossível que alguns desses países peçam pura e simplesmente para sair.

Tem dois ensaios a fechar a primeira parte do livro, ‘Mudança social em Portugal’ e ‘Quatro décadas : da mudança à incerteza’ em que faz um retrato da evolução que se operou neste período. Vou citar uma frase que sintetiza o que está escrito nessas 50 páginas: ‘Os portugueses vivem muito melhor do que há trinta anos’. Acha que esta melhoria pode continuar pelas próximas décadas?

A mudança foi enorme, sobretudo se nos compararmos com nós próprios no passado. Porque no final deste período de 30, 40, 50 anos, eu dou-me conta de que Portugal mudou muito, mas os outros também. No primeiro período de trinta anos, Portugal mudou mais do que os outros países europeus. Mas desde há 20 anos que os outros países estão a mudar também, e muito, e mais depressa, e hoje, em 2018, já estamos a divergir da Europa.

Estamos a perder o comboio?

Quando comecei a fazer os meus estudos, há 20 ou 30 anos, estava muito convicto de que a mudança foi muito profunda, seja em estruturas demográficas, seja em estruturas sociais, como em comportamentos e mentalidades. E continuo convencido disso. Mas o último livro que publiquei desse conjunto chamava-se Incerteza. Nessa altura, por volta de 2010, percebi que a mudança não tinha sido tão profunda quanto eu julgava. Sobretudo nas estruturas produtivas, nas estruturas empresariais, na organização das cidades, na organização do meio físico e dos territórios, tínhamo-nos atrasado muitíssimo. Havia uma aparência de modernidade – edifícios, casas a crescer, desapareceram os bairros da lata, apareceram autoestradas e havia autoestradas por tudo quanto era sítio. Uma autoestrada é a coisa mais fácil de fazer.

Como assim?

Você tem de ter um departamento de expropriações. E tem de ter um cheque. Depois manda vir as empresas e é só construir. Não tem de mudar nada: nem mentalidades, nem estruturas produtivas, nem organização de trabalho, nem organização de empresas, nem estudar o alfabeto, nem o liceu, fazer as escolas. Não precisa de fazer nada! Por isso foi tão fácil aos poderes públicos portugueses preferir as estradas.

Mas não podem ser um agente da mudança?

Foram em certo modo, mas exagerou-se. Acho que se fizeram autoestradas a mais, poderia haver muitíssimas estradas em boas condições que não tinham de ser autoestradas. Até porque Portugal é muito pequenino, e ficou ainda mais pequenino. O meu Portugal, em que para ir [de Vila Real] ao Porto, fazer 100 quilómetros, era preciso um dia.

De automóvel?

Só para chegar a Amarante eram 50 quilómetros. As voltinhas do Marão demoravam uma hora ou duas a fazer. Você precisava de sair de manhã, era uma manhã inteira, depois tinha de almoçar a meio do caminho, fazia a segunda parte, estava no Porto tardíssimo. Depois então fazia o que tinha a fazer, chegava a casa às onze ou meia noite. Muitas vezes ia-se num dia e vinha-se no outro, para fazer 104 quilómetros. E é metade da largura de Portugal. Portugal tem 200 km de largura – é muito pequenino. Com as autoestradas ficou ainda mais pequenino.

No sentido contrário a esse progresso que refere, há outra passagem em que exprime as suas dúvidas e preocupações relativamente ao presente e ao futuro. Vou ler algumas linhas: «A globalização, a metrópole, as massas, a rapidez, o automatismo, a competitividade e a uniformidade geraram valores contrários à comunidade humana, ao pensamento, à qualidade estética, ao brio e à compaixão. Nem sequer a dimensão do que se ganha é suficiente para se esquecer o que se perde. Pode até ganhar-se mais. Mas o que se perde é uma amputação da humanidade e da cultura». Quando leio isto, parece que estou a ouvir Salazar a dizer: ‘Eu avisei-vos que o progresso trazia todas estas coisas más’. Não está, de certo modo, a dar razão a Salazar, que tentou travar o progresso e, com ele, todas estas consequências nefastas que o António Barreto enumera aqui?

Percebo o que está a dizer. Mas acho que não. A minha convicção é que a grande preocupação de Salazar não era o progresso, a grande preocupação de Salazar era o controlo político. Salazar aprovou grandes projetos de modernização da economia portuguesa, aprovou a siderurgia, aprovou a ponte sobre o Tejo, o princípio das autoestradas, o LNEC…

O Técnico.

A Junta de Energia Nuclear… O problema dele, a obsessão dele – e nisto é que Salazar era um reacionário, e não apenas um conservador – era o progresso, porque o progresso lhe retirava o controlo político. Um dia disse numa entrevista ou numa carta a alguém que não lhe agradavam muito as grandes empresas e não lhe agradavam muito os monopólios. Porque as grandes empresas eram a antecâmara do socialismo, e os monopólios eram a antecâmara do capitalismo e do comunismo. Isto era mesmo a visão dele. Ele autorizava os Mellos, o Champalimaud ou os Espírito Santo a fazer o que quisessem, desde que eles aceitassem as regras… Os conflitos que ele teve com o Champalimaud e com os Mellos foram sempre por causa do controlo político.

Mas também tinha uma ideia de proteger Portugal dos ventos da mudança.

Quando digo aí ‘a perda de humanidade’ é algo que sinto todos os dias. Ouço pessoas a falar na televisão, na rua ou em eventos – a palavra evento aterroriza-me – e parece que todos são licenciados em economia. Já se fala em ‘gerir’ uma relação amorosa, em ‘priorizar’ os sentimentos, dizem-se coisas absolutamente tolas que não têm nada a ver com a humanidade, têm a ver com uma linguagem mecânica que se está a inventar e que faz parte desta nova sociedade que é muito dominada pela produção económica, pela tecnologia, pelo êxito comercial e pelo sucesso. Quando digo perda de humanidade é disto que estou a falar. A humanidade para mim não é igual a uma casa portuguesa ‘à la Salazar’.

Mas se pusermos lado a lado uma casa dessas e um arranha-céus em que as pessoas vivem quase como em colmeias não acha que há um lado de perda de humanidade?

O problema é que a humanidade de Salazar é muitas vezes uma humanidade pobre, com doença, com fome, com frio, com animais a viver com eles. Eu vivi nessas regiões e sei o que isso era. A pobreza, a doença, a escassez também são um atentado à humanidade. Portanto não comungo com o doutor Salazar, apesar de sentir que você toca num ponto em que pode haver uma comunhão de sentimentos pelo menos superficiais.

Há pouco falou de eventos. O que achou da Web Summit que se realizou em Lisboa há uns meses? Viu aquilo como folclore tecnológico ou acha que tem relevo?

Acho muito bem o que aconteceu, acho bem trazerem cá para Portugal. Dá nome, reputação, dá animação – houve milhares de pessoas que ficaram animadíssimas com aquilo. Acho que a maneira como depois se considera aquilo como um acontecimento excecional é uma parolice. Julgo que até foi lá o Presidente da República.

Toda a gente.

O primeiro-ministro, os ministros todos.

Se o convidassem teria ido?

Não! Vejo robôs todos os dias na televisão, nos cinemas, nos filmes. Aquilo é uma espécie de excursão de escolas, juntam-se os tais dois mil ou três mil, e lá foram. Para muita gente cá de Portugal, para muita gente nova, dá oportunidade. Há um ambiente de festa que é agradável – sou incapaz de criticar isso ou de condenar. Agora, acho que é parolo.

Tenho ideia de que estava muito pessimista em relação à ‘geringonça’, mas a verdade é que temos hoje a economia a crescer, o desemprego a cair, o défice em valores nunca vistos, a dívida começa a ser paga, o investimento estrangeiro também aumenta. Tudo isto está a surpreendê-lo?

A surpresa é muito moderada. Não estava à espera que em dois anos os resultados positivos fossem tantos. Mas não são necessariamente todos deste Governo. A Europa está a crescer como nunca, os países europeus estão todos a crescer tanto ou mais do que Portugal, no turismo aconteceu o que aconteceu, o preço do petróleo baixou, há um conjunto de circunstâncias muito favoráveis. Mas admito que este Governo tem demonstrado algum jeito para fazer a negociação entre o que é social, o que é empresarial, o que é económico, o que é português e o que é europeu, e se não houvesse isso, e alguma paz social, talvez não estivéssemos a aproveitar tanto a conjuntura. A conjuntura é muito boa, é o essencial, mas o Governo tem mostrado capacidade para aproveitar e explorar a nosso favor esses resultados. Agora, evidentemente que também faz uma campanha de propaganda que a meu ver é deslocada. O investimento cresceu, mas muito pouco – estou a comparar com a Espanha, até com a Grécia, com a Itália, a República Checa, a Hungria, a Polónia -, o investimento externo cresceu pouco, a produção cresceu pouco, a economia cresceu pouco, as exportações cresceram mas também cresceram pouco. Comparado com esses países, estamos a divergir. Se em seis meses, um ano ou dois, Portugal começasse a convergir, então nessa altura poderíamos falar de um êxito real do Governo e das suas políticas. Por enquanto ainda é cedo.

Então não dá o braço a torcer?

Eu nunca disse que isto não resultava. Não queria que se fizesse com o Partido Comunista e com o Bloco. A minha opção é essencialmente política. Não acredito que o PC esteja de acordo em fazer as coisas mais importantes que Portugal tem a fazer, no domínio das liberdades individuais, dos direitos, do mercado, da iniciativa, da Europa, do euro, da defesa europeia, da NATO, o PC não quer nada disto, portanto estamos a tentar fazer isto tudo com eles.

‘Apesar’ deles?

Por enquanto é apesar deles, mas o PC já disse que não quer o euro nem a União Europeia. Não quer a NATO, não quer uma defesa europeia. E já está a pedir nacionalizações. Olhando o mais alto possível, Portugal tem quatro ou cinco grandes escolhas para esta geração. Curiosamente a maior parte destas opções na Europa estão em grande parte feitas.

Qual será a primeira?

Não há maneira de a gente decidir se quer viver com a independência ou com a dívida. Isto é uma alternativa. Já ouvi gente responsável da Esquerda democrática dizer: ‘Só os parvos é que não vivem com dívida’. E eu pergunto: qual é o limite? 50%? 70%? 100? 200%? 250? Até onde? Grande parte da Esquerda diz que é muito bom ter dívida, que é preciso negociar, reestruturar a dívida. Não se importam de perder a independência? Para mim tem uma grande importância. Sei que a independência já não é o que era há 50 anos, mas há graus de independência que se podem obter. E por causa da dívida nós não temos o mínimo de independência que devíamos ter. Em segundo lugar: os portugueses não se decidiram definitivamente se toleram a corrupção ou querem um primado absoluto do Estado de Direito. O que se passa há cinco, dez, quinze anos, com os processos que não chegam ao fim, os processos que não se fazem, os casos de corrupção que não têm fim, as investigações, os atropelos à investigação, o desaparecimento de CDs com escutas…

O que é preciso para um Estado de direito que funcione?

Meios de investigação, meios processuais, capacidade e força de investigação, de instrução, capacidade de procedimentos judiciários. Há gente condenada há dez anos que continua a não cumprir pena, continua em recursos, procedimentos, garantias e mais não sei quê.

Ao mesmo tempo não acha que estes grandes processos acabaram com um sentimento de impunidade que pairava? Que antes havia a sensação de que algumas pessoas podiam fazer tudo e agora podem ser castigadas?

Sabe o que me apetece dizer? Que Deus o ouça. Não tenho a certeza.

Só tem a certeza quando houver condenações?

Quando houver esclarecimento, quando se souber o que aconteceu. Do BES terão desaparecido em seis dias, depois da resolução, 4 ou 5 milhares de milhões. Onde estão? Antes disso, por causa de Angola, desapareceram seis mil milhões. No Banif, no BPP, no BPN desapareceram milhares de milhões. Eu sei que se pode destruir valor, mas isto não é só destruir valor, há também desvio e ocultação, há de estar em algum sítio. Gostava de ver os processos acabados, chegados ao fim. Nos últimos quatro, cinco anos, com os casos Sócrates, Espírito Santo, PT, Angola, BPN e o que mais ainda virá, tem havido, aparentemente, um progresso. Parece que já há pessoas que não são ‘bois sagrados’, isso é bom sinal. Mas não chegou ao fim, ainda. E há casos que chegaram ao fim e não houve condenação, porque há recursos, manobras, procedimentos, estamos num limbo.

Tinha-me dito que iam colocar-se quatro questões. Referiu duas – ‘dívida ou independência’ e se queremos um Estado de Direito que funcione. Faltam outras duas. 

A terceira é talvez a mais geral: a escolha entre a Europa e a solidão. E coloca-se outra vez com a participação do Partido Comunista e do Bloco de Esquerda no Governo. Ou queremos definitivamente pertencer a um conjunto europeu de economia de mercado, de sociedade aberta, de liberdades individuais fundamentais, ou não queremos. Já não temos um império, não temos os Estados Unidos para nos pormos debaixo do braço deles, não há uma Aliança Atlântica, Africana ou Latino-americana, a CPLP não serve para nada, portanto o que nos sobra é a solidão. É sempre possível Portugal seguir o seu caminho sozinho. A Grã-Bretanha vai seguir o seu caminho sozinha, mas a solidão inglesa não é a mesma coisa que a solidão portuguesa. Quando o PS está sensível às críticas do PC e do Bloco à União Europeia, eu fico inquieto. Esta opção não parece estar feita também. A quarta questão é entre o indivíduo e o coletivo. Os direitos individuais em Portugal têm uma espécie de existência mendicante. Bom é direitos coletivos, bom é negociação coletiva, bom é igual para todos, escola para todos, saúde para todos. Esta frase ‘para todos’ fica sempre bem. Eu acrescento: ‘Para todos as mesmas oportunidades, daí para cima não’. Depois de tentar garantir a maior igualdade possível de oportunidades, quero que cada um – pelo seu mérito, pelo seu trabalho, pela sua ciência, pela sua investigação, pela sua capacidade, pela sua organização, pelo seu estudo, pelo seu sacrifício – vá à sua vida e tenha a sua recompensa. Portugal precisa de muito mais meritocracia, precisa de muito menos coletivismo. Aquele surrealista português, o Fernando Lemos, vive no Brasil e há uns anos veio a Portugal e deu uma entrevista à televisão. Dizia ele: ‘Um cara em Portugal levanta a cabeça e zzzt! Corta logo’. Estes são a meu ver os quatro pontos. Podíamos acrescentar um quinto: o direito individual versus o Estado. Estas grandes escolhas na maioria dos países europeus estão feitas. E nós adiamos, adiamos, adiamos. Pode ser que esta experiência de frente de esquerda nos obrigue a tomar opções mais fundas nestas grandes alternativas.

Neste livro faz um retrato muito completo do país, com muitos dados que resultam dos estudos que tem feito ao longo das últimas décadas. O que temos aqui, por assim dizer, é o diagnóstico. Falta depois tratar o doente. Nunca pensou que gostava de ter um papel mais interventivo na tomada de decisões?

Há vinte ou trinta anos pensei.

E agora?

Já não tenho idade, talvez até já não tenha conhecimento ou capacidade. Estou já fora, no fim do prazo de atividade política. O que não significa que não continue a estar curioso, que não queira escrever mais, vou continuar a escrever, mas a ação política já está fora do meu alcance.

Mesmo que não seja na linha da frente, com menos exposição?

Nessas coisas não há segundas linhas! [risos]

Mas refere neste livro a necessidade de uma reforma do Estado. Não gostaria de participar nisso, de contribuir?

Isso sim. Se me pedirem. O que tentei fazer na Fundação Francisco Manuel dos Santos quando lá estive era contribuir para reformas, para mudanças, para conhecimento, para formar opinião. O que escrevo com os meus livros e nos jornais é isso, também, e se me pedirem explicitamente ‘dá aqui uma ajuda com uma organização, um conselho, uma comissão’ e eu for útil – muitas vezes a gente cria comissões e conselhos só para ter nomes, porque no fundo não quer fazer nada – e tiver alguma capacidade, aí estou disponível, com certeza.

Há políticos que o convidam para almoçar ou lhe telefonam a pedir opinião?

Não!

Perdeu o contacto com esse meio?

Eu perdi contacto e eles perderam-me a mim.

Foi recíproco?

Nos últimos três anos fui convidado para almoçar ou para tomar um copo ou um café, ou ter uma pequena conversa, talvez por dois ou três dirigentes políticos de partidos diferentes, conversa que não tinha outro objetivo que não trocar impressões, ouvir uma opinião. O que vou dizer agora pode parecer vaidoso mas não quero que seja: há 20 ou 30 ou 40 anos eu criei para mim próprio uma obsessão de independência, o que não impede que tenha sido do Partido Socialista durante um tempo, que me tenha ligado a outras pessoas, mas a independência de juízo, de avaliação e de opinião é para mim uma obsessão. E depois, como gosto de me exprimir nos jornais e na televisão, na rádio e nos livros, tentando sempre dar opinião, você cava, constrói a sua solidão. Não é deliberado. Você diz mal de A e depois de B e depois de C e depois de D. E às tantas pensa ‘Oh diabo’. Já deu a volta toda ao carrossel. A independência é uma grande virtude, mas é uma grande solidão. E pode ser triste.

Tem pena?

Não sei se é pena. Eu gosto muito do silêncio. Muito mesmo. O pior que acontece na sociedade moderna é o barulho a mais. Mas quando há silêncio a mais é excessivo, uma espécie de silêncio sideral. Às vezes gostava de poder falar mais com alguém… Nem tudo é feliz nestas coisas. Nunca, em nada, é tudo feliz.

Tem uma voz muito ouvida na sociedade, muitos leitores. Gostava de fazer chegar mais a sua voz aos protagonistas?

Às vezes escrevo a pensar neles. Quando estou a escrever, penso: ‘Gostava que ele lesse isto’. E sei que às vezes leem. Comecei a escrever em jornais quando imprimiam entre 50 mil e 100 mil exemplares por dia. Hoje não sei quanto tira o Diário de Notícias [onde escreve ao domingo], mas sei que hoje todas as tiragens estão infinitamente cá em baixo. E curiosamente eu não me dou muito bem com a leitura de jornais online, gosto do online para trabalhar, mas para ler jornais todos os dias não me dou muito bem.

Costuma ler os comentários aos seus artigos na edição online do DN?

Ao domingo vou ler o meu próprio artigo, e fico horrorizado com os comentários. Aquilo é horrível. Às vezes tenho dez comentários, já houve vezes em que tive 80. Depende muito do tema, dos maus fígados do dia, se há futebol, se não há futebol… Desde palavrões, má-criações, acusações, aldrabices. ‘Lá estás tu, és sempre o mesmo’, ‘Ó pá, és um merdas’. Primeiro não acho bem que os jornais aceitem essas coisas sem um filtro qualquer – não quer dizer censura, mas filtro. Já disseram que eu tinha roubado pessoas, que tinha roubado terras, que tinha mentido. Depois também há elogios, mas o ambiente é tal, de rosnar e de tasca, que já nem os elogios leio com agrado.

Nesses fóruns é recorrente acusarem-no de se ter vendido à Direita. Isso merece-lhe algum comentário?

Nenhum. Qualquer pessoa do Partido Comunista, por exemplo, dirá que eu me vendi. N’O Diário, que era o jornal do PC, houve um editorial, entre muitos que me foram dedicados quando estava a fazer a Reforma Agrária, que me chamava ‘o ladrão de gado’. Como um ladrão de gado no faroeste, eu andava a roubar gado aos trabalhadores. Você ganha uma casca dura. Ainda hoje me considero de Esquerda, uma Esquerda liberal, democrática, clássica, muito pouco radical no sentido ideológico. Falo com a Direita, falo com a Esquerda, falo com toda a gente que queira falar comigo.

Não sente que possa ter infletido mais para a Direita, que se tenha tornado mais conservador?

A gente tem de definir Direita. Valores tradicionais da Direita. A nação – não sou nacionalista por um milímetro, apesar de considerar que um dos graves defeitos da União Europeia foi querer apagar as forças culturais e forças nacionais, mas isso não faz de mim um nacionalista, nem patriota. Gosto de Portugal porque foi aqui que nasci, gosto de Portugal porque é meu, ou eu sou de Portugal, mas não tem nenhuma qualidade superior aos outros. A Direita louva muito os valores da família, do legado, da herança, do nome. De todo. Acho que a meritocracia, as qualidades individuais, a luta, a inteligência, os valores pessoais são muito mais importantes. A Direita não é liberal, eu sou liberal. A Direita gosta talvez mais de dinheiro do que de ideias, eu gosto mais de ideias do que de dinheiro. Agora, um pouco mais conservador? É possível. Estou a fazer um trabalho fotográfico no Mosteiro da Batalha de que vai haver resultados daqui a dois ou três meses. Encontrei uma espécie de quase felicidade no estudo do património. Há 50 anos talvez encolhesse os ombros. Sempre gostei de monumentos antigos, de casas antigas, mas não dava grande importância. Isso é um fator conservador? Talvez. Detesto que as pessoas tenham piercings – nos lábios, nos dentes, nos olhos, em tudo quanto é sítio. 

Se fosse há 50 anos isso não lhe fazia confusão?

É possível que não. Hoje detesto tatuagens. Homens e mulheres com tatuagens nos braços, nas pernas, no pescoço, tatuagens a sair por aqui e por ali, jogadores de futebol cheios de tatuagens. Detesto. Será um sinal de conservadorismo?

E aqueles penteados dos jogadores de futebol?

Isso não detesto, simplesmente não gosto, acho ridículo! Se há aí sinais de conservadorismo, aceito. Não gosto de muito barulho, muita dança, carros com música aos berros no meio da rua, não gosto. Também pode ser da idade, pode ser do conservadorismo, pode ser da procura de um certo silêncio para meditar e pensar. Nada disso tem a ver com a Direita, imagino eu.

Há umas semanas, ou meses, escreveu um artigo em que falava dos benefícios de emigrar. O que aprendeu quando emigrou que não teria aprendido se tivesse ficado cá?

Liberdade, diferença, lutar por aquilo que queremos, outras línguas, outras maneiras de ser, de fazer, de pintar, de amar, de comer, de beber, de vestir, outros deuses. Em Portugal. As coisas estavam muito arrumadinhas, são os tais defeitos da nação una. Até politicamente. Em Portugal havia dois mundos, havia o mundo do poder e o mundo da Oposição, o mundo da Direita e o da Esquerda, havia o mundo do salazarismo e o da democracia. Até na literatura havia os bons e os maus, os pretos e os brancos. E, de repente, percebe-se que há muito mais e muito melhor do que isso tudo. Queria repetir o que disse nesse artigo da seguinte maneira: eu sei que a decisão de emigrar em muitos casos é uma decisão muito difícil, sofrida, quase dramática, porque quando você emigra é porque não tem emprego de todo, não tem sítio para viver, e está condenado a ter de fugir para qualquer sítio para sobreviver, esta decisão é muito sofrida e pode ser dramática. Agora vou olhar com um bocadinho mais de recuo. Em 30 ou 40 anos saíram de Portugal dois milhões e meio de portugueses. Toda esta gente evoluiu e progrediu e desenvolveu-se muito mais na vida do que se tivesse cá ficado. Deve haver, mas nunca encontrei portugueses que tivessem estado emigrados durante dez ou vinte anos e que dissessem mal da emigração. Dizem sempre ‘foi o melhor período da minha vida, felizmente emigrei’. Há sempre uns dramas e uns problemas, todos eles mencionam ‘quando parti passei fome’, ‘fui ajudante de pedreiro’, ‘fui ajudante de trolha’, ‘os primeiros seis meses foram terríveis’, ‘vivia em Champigny’. Tudo isso é verdade, nada disso nego. Mas globalmente há a velha ideia de que as viagens formam a juventude e que ver o mundo faz crescer e dá força, e não tenho qualquer dúvida sobre isso. Sou incapaz de dizer que um dos aspetos negativos da vida portuguesa dos últimos anos é a emigração.

No seu caso experimentou algumas dessas agruras, dessas dificuldades?

Tive algumas dificuldades. Eu não tinha dinheiro, tinha de trabalhar, porque os meus pais não tinham fortuna para me mandar. Nunca recebi nada dos meus pais. Portanto cheguei e 15 dias depois estava a trabalhar. Tive 80 empregos naquele período na Suíça, até conseguir fazer exames e estudar para ter uma bolsa de estudo que os suíços me deram. Dizer que sofri com isso? O primeiro ano foi muito difícil, dormia mal, tinha frio, andava sozinho, havia pouquíssimos portugueses conhecidos, não foi um ano fácil. Mas nada que se compare com o sofrimento dos africanos ou dos árabes, por exemplo.

A educação que recebeu em casa dos seus pais tinha-o preparado para a autonomia?

Alguma autonomia pessoal sim. Os meus pais eram católicos, conservadores, monárquicos, intelectualmente eram liberais – e o facto de terem sete filhos rapazes deve ter ajudado um bocadinho… Você não pode controlar sete rapazes. Éramos todos muito grandes – um metro e noventa, dois metros, um metro e oitenta e tal – não se vê aquela família ter rapazes todos muito ajuizadinhos, muito controlados. Saí de Vila Real aos 16 anos porque fui para Coimbra, para a universidade. Era o terceiro, o que quer dizer que o meu irmão mais velho e o segundo já estavam fora de casa e o meu pai não tinha dinheiro que chegasse para todos. Comecei a trabalhar e ao fim de um ano tive umas ajudas de umas tias velhas e de uma avó que me davam cem escudos – na altura era algum dinheiro. A mesada que eu tinha era de 850 escudos, o que faz mais ou menos quatro euros, dos quais 700 escudos era o que pagava na pensão em Coimbra, que me dava cama, mesa e roupa lavada. Fiquei três anos a viver sozinho em Coimbra. Feliz ou infelizmente dediquei-me mais ao teatro, à política e ao amor. Andei em Direito, em três anos devia ter feito 15 cadeiras, fiz aí uma seis ou sete ou oito, metade do que devia fazer. Soube que ia ser chamado para a tropa, porque tinha perdido um ano e meio, tinha umas maçadas com a PIDE por causa da atividade estudantil e decidi ir embora. Tinha alguma autonomia pessoal mas não sabia fazer nada, por isso os meus primeiros empregos são a lavar as ruas, a fazer mudanças de casa, a lavar uma garagem todas as noites, a fazer embrulhos de uma casa que fazia encomendas de produtos farmacêuticos, outra de produtos de cartolina e papel, coisas assim.

Como encontrava esses empregos?

Quando queria trabalhar ia à associação de estudantes em Genebra, que à entrada tinha um letreiro enorme com ofertas de empregos. ‘Quatro dias a imprimir jornais’. ‘Três dias a mudar uma casa’. ‘Dois dias a reparar um telhado’. Dizia o preço: dois francos à hora, cinco francos à hora, seis francos à hora. A gente tirava o número de telefone e ia a correr a ver se chegava a tempo. Nunca fiquei sem trabalhar. Até posei como modelo para uma pintora que quis pintar um tipo com uns cabelos guedelhudos, como eu tinha, imprimi em tipografias… havia trabalho para toda a gente. Se eu quisesse trabalhar três dias para comer mais três dias encontrava imediatamente. Era preciso estar na universidade, era preciso ser estudante, era preciso ter cartão de residência, havia algumas condições para preencher.

Essa experiência de emigração não teve o efeito de enfraquecer os laços com a sua família, ou com a sua terra?

Durante a emigração sim. Enquanto lá estive tive visitas de um ou dois irmãos, os meus pais foram lá duas vezes em doze anos, vieram a Genebra duas vezes, eu vinha à Galiza, entre Pontevedra e La Toja, ficava ali dez ou quinze dias e os meus pais, os meus irmãos e as minhas tias iam lá visitar-me. A ligação familiar é muito forte. Quando vim a Portugal em 74 [estala os dedos], não posso dizer que parecia que tinha saído ontem porque éramos todos diferentes – eu era diferente de como parti, a minha mãe já era diferente, o meu pai era diferente – mas foi muito fácil restabelecer a cumplicidade, a afetividade familiar, a fidelidade.

A Fátima Bonifácio diz que a sua curiosidade é insaciável. Todos estes livros que tem espalhados pela casa são um reflexo disso?

Acho que sofro de uma espécie de voracidade. Se me perguntar ‘Leu tudo o que comprou até hoje?’, com certeza que não. E há muitos livros que você compra para ler três páginas ou para consultar a qualquer altura. O que está a ver aqui é só Portugal, coisas de sociedade, economia e política portuguesa contemporâneas. Ali ao lado tenho o Douro e o vinho, depois a literatura e ficção, depois tenho as artes, a fotografia… está mais ou menos organizado. Gosto muito, muito de livros e sou curioso, sim.

Continua a comprar livros mesmo sabendo que provavelmente não os vai ler?

Tenho sempre a esperança de um dia passar uma tarde, uma noite ou uns dias a ler um livro, ou todo ou grande parte, ou de aceder em qualquer altura. Há muito pouco tempo acabei de comprar três ou quatro livros sobre o caso Sócrates, mais três sobre o caso Espírito Santo, depois passei e estavam os livros da Irene Pimentel sobre a PIDE, também comprei dois ou três, a luta armada… Em pouquíssimos dias cheguei a casa com uma mala cheia. E disse-me isso: ‘Não vou ler isto de ponta a ponta’, porque só o livro da luta armada tem 700 páginas, os livros da PIDE têm duas mil. Mas já passei com eles o tempo suficiente para ir buscar inspiração, ir buscar dados, isso sim.

Onde gosta mais de ler? Neste escritório, na cama, no café?

Costumo ler aqui. Lá dentro tenho mais duas cadeiras, uma delas mais recostada, onde gosto de ler também. Em casa, a mesma coisa, leio no sofá. Há 30 ou 40 anos lia na cama, mas agora não consigo por causa dos óculos, tenho lentes progressivas.

Qual foi o último grande livro que leu?

Três ou quatro. Os últimos livros do Jared Diamond, um antropólogo e historiador americano, sobretudo o Colapso. O último livro tem como subtítulo ‘Os povos também se podem destruir’. Há cerca de um ano comecei a ler e reler livros relacionados com a Revolução Russa, por causa do centenário. Fui reler o Richard Pipes e li um novo, um livro muito pequenino que se chama Os Porquês da Revolução Russa. Acho que é um historiador genial e muito claro, uma história conservadora no sentido clássico, tem poucas notas de pé de página, uma coisa muito, muito bem feita. Estou a reler os dois livros do [Orlando] Figes também sobre a revolução russa, o do Sebag Montefiore sobre o Estaline, que é um livro aterrador.

Deita-se cedo ou tarde?

Tarde.

Muito tarde?

Entre a meia noite e as três. [risos]

Conduz?

O essencial, não gosto de guiar e guio mal.

Vive aqui perto?

Sim. 

Então vem para aqui a pé…

São cinco minutos a vir, que é a descer, dez minutos a ir, que é a subir.

Tem rotinas que não goste que sejam perturbadas?

Logo de manhã, antes de me arranjar, leio os jornais, bebo o café e tomo o pequeno-almoço. Tenho a sorte de viver no rés-do-chão de uma casa antiga com tabuinhas na janela, o que quer dizer que o ardina mete-me os jornais nas tabuinhas. Às sete e meia, oito horas, chego ao meu escritório, abro a janela e tenho os jornais todos, mais as revistas, tudo muito arrumadinho. Se chover está tudo num saco de plástico.

Vê muita televisão?

Cada vez menos. Em geral vejo uma vez notícias por dia, um quarto de hora. Os nossos telejornais demoram uma hora e meia, e têm banalidades, futilidades, parvoíces e estupidezes que nunca mais acabam. Tento ver se naqueles quinze minutos há alguma coisa mais interessante. O sistema novo que eu tenho é mandar vir séries da Amazon e quase todas as noites vejo um episódio de uma série qualquer.

Como escolhe o que vai ver?

A maior parte vejo nos jornais e revistas, o Economist aconselha de vez em quando, o New York Times e o Guardian também, o Spectator, o TLS [suplemento literário do The Times]. Quando você encomenda umas coisas na Amazon eles passam a mandar sugestões. Há não sei quanto tempo encomendei uma série fabulosa sobre a Guerra Civil Americana, de um senhor chamado Ken Burns, que é talvez o maior realizador vivo de séries históricas e produz para a PBS, o canal público americano. Há quatro, cinco dias acabei de ver uma série absolutamente fabulosa sobre a Guerra do Vietname, são 20 horas de televisão, também feita pelo Ken Burns. Vi praticamente tudo dele, são coisas muito bem feitas e muito bem documentadas. Outro pacote que já me ocupou muitas longas horas é uma coisa que se chama Nordic Noir. São séries suecas ou norueguesas que andam quase sempre à volta de um crime. Vi o Borgen, como toda a gente viu o Borgen em Portugal, acho eu, e havia outra, foram três temporadas, 18 episódios, também muito bem feita, chamada A Herança. Depois soube que alguns deles passaram na RTP mas prefiro ter as minhas horas e marcar ‘hoje é às 11’.

É o seu programa de depois do jantar?

É. Agora acabei o Vietname, vamos ver o que vai ser a seguir. Evidentemente que não perdi o Breaking Bad, que é das séries mais fenomenais que vi na minha vida.

E A Guerra dos Tronos?

Esse não vi. Já percebi que tem personagens de fantasia, quimeras e harpias, não acho muita graça a essas coisas.

Tem algum hábito que considere uma perda de tempo?

Tenho o hábito de querer saber coisas inúteis, que acho que é o maior luxo que tenho na vida. Pego na enciclopédia na letra D e leio dez páginas. Fico a saber coisas absolutamente fantásticas da letra D que não servem para nada. Ou então tenho de ir a um dicionário para ver qualquer coisa e leio as palavras a seguir. Ou tenho uma revista na minha frente e passo uma hora a ler coisas sobre povos esquisitos que viveram na Papua Nova Guiné. Sei que é totalmente inútil, nunca vai servir para nada, nem para inspiração de outras coisas, mas gosto disso. Gosto de saber coisas inúteis. 

O que lhe dá mais prazer? Uma boa conversa, um bom vinho, uma boa refeição, viajar, um bom livro?

Caramba, você também põe essas coisas todas juntas!

Destas qual viria em primeiro lugar?

Uma acima de todas? [reflete] Hesito entre a conversa e o livro. Depois a viagem e o vinho, por esta ordem. Gosto muito de comer, mas a refeição será talvez a última de todas. Gosto mais de travar conhecimento com um bom vinho, a comida é mais rotineira.

O que o faz perder a paciência?

Pessoas que falam demais, que berram demais, os atrasos – o atraso português em relação a tudo, todas as grandes decisões portugueses foram feitas com dez, vinte, trinta anos de atraso, e também se vê muitas vezes na vida quotidiana. O preconceito, o preconceito quase à beira da estupidez. Com tudo isto perco paciência.

O que o comove?

Os sentimentos e a música.

O que o preocupa?

A incapacidade dos meus contemporâneos para se organizarem de uma maneira simples, fácil.

Do que se orgulha?

[Inspira fundo] Da Reforma Agrária.

E do que se arrepende?

De não ter tido mais paciência quando estava envolvido na luta política, no Partido Socialista, nos anos 90. Com mais paciência, mais capacidade de negociação, mais tolerância, talvez tivesse tido mais obra política do que tive.

Tem algum receio, seja ele pessoal ou coletivo?

Quem chega à minha idade, se tiver alguma sensatez, sabe que os anos que faltam são muito poucos. Sou muito sensato e muito realista. Nem sofro com isso. É o que é. Preocupa-me o imprevisto, algo que não consigo proteger nem controlar, sobretudo vivendo num país tão frágil como o meu. Quando há inundações, quando há incêndios, quando há calor a mais, quando há seca, quando há carros a mais na rua – esperemos que não haja terramotos tão cedo – qualquer coisa dá uma medida imediata da fragilidade. Temos um Serviço Nacional de Saúde que é muitíssimo frágil. É muito fácil uma pessoa ter de esperar, sobretudo os pobres, um, dois, três, quatro, cinco meses por uma consulta, por uma análise. O SNS tem uma aparência fantástica, está sempre pronto, salva vidas, mas depois a gente começa a cavar um bocadinho e falha, falha, falha todo o tempo. Isso preocupa-me.

Ainda tem sonhos para cumprir?

Queria escrever, fotografar e publicar.

É isso que o faz feliz?

É.