O pacto da justiça é uma ideia antiga, recorrente, e que conduziu sempre a maus resultados, pelo menos no que diz respeito aos advogados e aos cidadãos. Efectivamente, a ideia original do pacto da justiça deve-se a José Miguel Júdice que, em 2003, quando era bastonário da Ordem dos Advogados, entendeu organizar um Congresso da Justiça que reunisse todos os operadores judiciários e do qual pudesse sair um projecto de pacto de regime para a justiça. Como o próprio teve ocasião de explicar, a sua ideia era organizar um plano de reformas a médio a longo prazo que o poder político se vincularia necessariamente a executar, independentemente de quem ganhasse as eleições.
O Congresso da Justiça realizou-se então com pompa e circunstância, mas a verdade é que, ao contrário do que se esperava, na sua sessão final não ocorreu a assinatura de qualquer pacto para a justiça entre os participantes. Mas a ideia deixou frutos, especialmente pelo facto de ter sido assumida pelo governo de Santana Lopes, que considerou o pacto para a justiça um dos objectivos estratégicos do seu governo. Esse governo, como se sabe, duraria pouco, pelo que o pacto para a justiça acabou por ser assinado apenas em 2006, desta vez entre os grupos parlamentares do PS e do PSD. Neste âmbito, o pacto da justiça acabou por implicar alterações no Código Penal e no Código de Processo Penal, em grande parte motivadas pelo processo Casa Pia, e uma reforma do sistema judiciário que iria conduzir a um novo mapa judiciário. As alterações ao Código Penal e ao Código de Processo Penal concretizaram-se, nalguns casos com soluções muito infelizes, mas, em 2008, o PSD retiraria apoio ao novo mapa judiciário, quebrando assim o pacto para a justiça. O novo mapa judiciário, não obstante, andou a funcionar em regime experimental durante alguns anos até ser executado de forma brutal pela ministra Paula Teixeira da Cruz que, de um momento para o outro, arrasou toda a estrutura judiciária nacional, expulsando os tribunais do interior e colocando tribunais a centenas de quilómetros dos seus destinatários. Como se isso não bastasse, nesse processo ocorreu o colapso total do Citius, que causou inúmeros prejuízos aos advogados, cidadãos e empresas.
Face a esta péssima experiência anterior, foi pelo menos estranho que o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa se tivesse lembrado em 2016 de voltar a apelar a um pacto para a justiça. A verdade, no entanto, é que a ideia fez o seu caminho e o pacto lá foi recentemente assinado pelas associações sindicais dos magistrados e funcionários judiciais e pelas ordens dos advogados e dos solicitadores e agentes de execução. Neste aspecto, não deixa de ser estranha a celebração de um pacto entre ordens profissionais e sindicatos, atenta a diferente natureza das suas atribuições, estando totalmente ausentes os conselhos superiores dos magistrados, cuja participação seria sempre essencial a qualquer pacto para a justiça.
Algumas das 88 propostas do pacto da justiça têm o seu interesse, outras não fazem qualquer sentido. Mas a ideia que subjaz ao pacto é uma ideia perversa. Ao exigir-se que os operadores judiciários se ponham de acordo para, depois, os políticos executarem esse acordo, está-se a enfraquecer a capacidade reivindicativa dos profissionais e a contribuir para irresponsabilizar os agentes políticos na área da justiça. Na verdade, os consensos obtidos entre entidades com sensibilidades muito diversas são, normalmente, apenas sobre questões vagas, impedindo assim a resolução das questões verdadeiramente importantes. O pacto da justiça corresponde, por isso, a uma solução neocorporativa, totalmente inadequada a uma democracia avançada. Os advogados e os cidadãos podem fazer uma simples pergunta: a sua situação melhorou ou piorou em consequência das medidas do pacto da justiça anterior? A meu ver, a resposta é que piorou consideravelmente. E o mesmo se vai passar em resultado do pacto agora assinado.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990