O caso das alegadas adoções ilegais da IURD é demasiado grave para justificar uma certa apatia dos poderes públicos em relação aos relatos que insistentemente vêm a público. Pior do que nos apercebermos dos sucessivos falhanços do Estado é observarmos que ele se torna imperturbável quando eles se tornam públicos, mesmo que as respostas que lhe são devidas sejam clamadas por uma fatia considerável da sua população.
O ano de 2017 foi um ano pródigo dessa perceção de falhanço. Dos incêndios que vitimaram mais de uma centena de pessoas à noção de fragilidade das nossas infraestruturas militares, passando pelas largas centenas de ações violentas contra agentes das forças de segurança, pela noção plena de um sistema financeiro débil e sem controlo (o primeiro dos falhanços), contribuem para uma instabilidade indesejável, mas que se vai confirmando paulatinamente.
Pois, reduzir a noção de instabilidade nacional à mera capacidade do exercício formal da governação ou à capacidade de cumprimento das obrigações económico-financeiras internacionais não só é perigoso como também é uma indesejável contradição. Ainda que no léxico público esse seja o principal significado da expressão, a verdade é que ela se dissipa quando somos confrontados com a inação do Estado perante a nossa segurança, não apenas no sentido estrito do termo, e o usufruto das nossas mais diversas liberdades.
Ninguém é verdadeiramente livre se não encontrar no Estado o último dos redutos da sua proteção e os tempos recentes mostram que o nosso Estado tem falhado nessa sua missão. Este caso das adoções ilegais é apenas mais um desses falhanços só que com a agravante de se tratarem de pessoas desprotegidas, que deveriam ter encontrado no Estado garantia absoluta da sua proteção, frágeis e supostamente fracas, no sentido de não terem nem meios, nem capacidade (e tantas vezes força) para confrontarem o poder de determinadas organizações aliado, pelo que tem vindo a ser público, à conivência ou, no limite, à inação de diversas estruturas administrativas do país.
As investigações jornalísticas são sempre louváveis quando servem o propósito de expor de flagrantes injustiças. O trabalho desenvolvido pelas jornalistas Judite França e Alexandra Borges, da TVI, é meritório e louvável. Mas preferia que não tivesse existido, no sentido de não ter sido existir matéria para o assunto. Porque quanto mais elas desenvolvem a investigação, mais nós sabemos que no que toca aos mais fracos não temos um Estado, mas uma espécie de Estado. Uma espécie de Estado que fechou olhos e entregou crianças a lares ilegais, portanto na rede da Segurança Social, uma espécie de Estado que face às sucessivas denúncias não atuou e preveniu outras famílias de lhes acontecer o mesmo. Uma espécie de Estado que não aprofundou o tema, que facilitou perante as denuncias que não afrontou. Que não nos protegeu.
Muitas vezes a morte, que tanto tem assolado este país por incumprimento do dever de auxílio do Estado, é puramente simbólica. Não tenhamos duvida que, a confirmarem-se estas acusações, a morte bateu à porta destas famílias. A morte do espírito, daquilo que seria normal, mas que foi impedido de o ser.
O movimento “Não Adoto Este Silêncio” tem uma pretensão simples: um inquérito parlamentar para o apuramento de responsabilidades políticas e administrativas, e quem sabe judiciais, dos diversos órgãos do Estado e dos agentes que em seu nome não agiram ou foram coniventes com este caso. Não deixa de ser irónico que seja preciso existir um movimento para reclamar aquilo que o bom senso e o cumprimento da função política obriga por natureza. Defender as pessoas das injustiças, dos abusos do Estado, e dos privados, e garantir o cumprimento dos direitos constitucionalmente estabelecidos a qualquer cidadão. Uma pretensão que contribuirei para que aconteça.
Vice-presidente do grupo parlamentar
do PSD. Docente universitário
Escreve à segunda-feira