Era uma vez, há pouco tempo, na desempoeirada Nova Iorque – a que nunca dorme, a frenética, a idolátrica e simultaneamente iconoclasta, a que olha de alto para as vistas curtas do miolo estadunidense. Um grupo de cidadãos apresentou uma petição ao Metropolitan para que este retirasse um quadro de Balthus com o título que encima este texto e que mostra uma miúda sentada numa cadeira, de olhos fechados, com expressão que pode representar várias coisas e, hélas, com as cuecas à mostra, o que, junto com a pose lânguida e a expressão misteriosa, deu num cocktail fatal nas cabeças dos peticionários. Vai daí, acharam que era de apear o quadro, por causa do clima atual de assédio sexual, e acusaram o museu de dar romantismo ao voyeurismo e de objetificar as crianças. O museu deu sopa à petição e fez muito bem, parece-me.
O Met não coisificou nada nem deu romantismo nenhum, se alguém o fez foi Balthus (e, mesmo ele, duvido que o tenha feito). Ora, para que serve um museu, não é para nos mostrar arte? Então e agora fazia uma censurazinha prévia, e expunha só aquela que está de acordo com o ar dos tempos? E quem dita os ares dos tempos? Aqueles inspirados nova-iorquinos, a minha tia-avó, eu, um grupo artístico avant-garde, o taxista, a vizinha do 3.o D? Tenham lá paciência, se não daqui a nada temos espanhóis a dizer para tirar o Goya, porque estimula os fuzilamentos, uns franceses progressistas a pedir para se apagar Tissot da História, esse talentoso glorificador das elites elegantes, uma dúzia de ingleses a perorar contra o Freud, porque enaltece a obesidade, uma fila de holandeses a mandar tirar o Vermeer porque enche de romantismo a opressão operária das mulheres leiteiras e, qual cereja no topo, um grupo de cidadãos do mundo a pedir para serem banidos todos os impressionistas porque pintaram quadros que, obviamente, fazem mal à vista.
E mesmo que o Balthus tivesse feito com o quadro as coisas horrendas de que o acusam, então e a liberdade de expressão? E então, também, a confusão entre a ética e a arte? A arte não serve para apontar caminhos normativos (a não ser “a arte” dos regimes a escorrer totalitarismo), a arte é complexa, como o homem é complexo, cheio de camadas, curvas e contradições, e escuridão e luz, e matizes, e os artistas representam isso, e é por isso que devem poder expressar-se e ser mostrados. Mesmo que alguns não gostem, e achem que o “Thérèse” não fica bem em tempos de assédio (melhor, de denúncia, porque o assédio não é de agora). Quando começam a rotular a arte e a mandar uma para o lado esquerdo e outra para o direito, penso logo que vamos andando, andando, devagarinho, e acabamos a queimar “arte degenerada”, como fizeram os vizinhos do país do Balthus nos anos 30 e 40 do século passado. Sim, sim, e erradiquemos também o célebre quadro do Munch, que assim fica garantido que nunca mais ninguém grita, e talvez consigamos mesmo banir a angústia ou a loucura. A estupidez, sobretudo a precipitada e superficial, essa é bem mais difícil.
Escreve quinzenalmente à sexta-feira