Jorge Palma. “Não adianta pensar na morte”

Jorge Palma. “Não adianta pensar na morte”


“Só” mas nunca sozinho, Jorge Palma revisitou o álbum em que se sentou ao piano para tirar a roupa as canções. “Só ao Vivo” revive esses concertos


É proibido fumar? Na espaçosa sala da casa de Jorge Palma não. Cigarro após cigarro, entre conversas e pausas, cada golfada de fumo é um desafio à imortalidade. A prova definitiva de que a memória popular já concedeu às canções de “Só”, clássico absoluto e à prova de morte revisitado no ano passado durante uma pequena digressão comemorativa do 25.º aniversário do álbum. “Só Ao Vivo” é o retrato dessa celebração coletiva provocada apenas pela voz e o piano. Foram-se os dedos, ficou um álbum ao vivo e DVD que muito boa figura fará no sapatinho. E vem-nos à memória uma frase batida: enquanto houver estrada para andar, a gente vai continuar. Em 2018, promete, haverá novo álbum. O primeiro em sete anos de uma folha sempre preenchida. Só por existir, talvez não tanto por duvidar, mas sempre acompanhado. 

Comecemos pelo fim. A morte do Zé Pedro… 

(interrompendo) Evitei falar disso. Os media bombardearam-me. Há momentos em que não vale a pena…

Ia perguntar-lhe…

(interrompendo de novo) Foi um grande amigo que perdi. Queria falar de?

Toda a gente tem, pelo menos, uma história com o Zé Pedro. O Jorge Palma tem muitas porque os dois fizeram parte do Palma’s Gang.

Muitas, foram 40 anos de histórias. O Palma’s Gang deu-me muito gozo.

É uma banda que surge a seguir ao “Só” no Johnny Guitar. 

Exato, o “Só” é de 1991 e o Palma’s Gang surge quando abre o Johnny Guitar. A partir de certa altura, passava lá as noites. Chegava a vir de concertos no Norte e nem ia a casa. 

Que memórias guarda desse tempo?
Passaram por lá muitas bandas. Nós tocávamos às vezes. Fazíamos as nossas jam sessions, bebíamos os nossos copos e conversávamos. Era viver. Recordo esses tempos com muita saudade.

Como é que a banda se forma?

Não sei se a ideia foi do Zé Pedro ou do Alex [Rádio Macau]. Os Xutos estavam parados, os Rádio Macau também. E como nos juntávamos ali, propuseram-me. Lembro-me de o Alex me dizer para fazermos uma rockalhada com as minhas músicas. Acho que fizemos dois ensaios, mas daqueles em que passámos mais tempo na pastelaria ao lado a conversar. 

Mas saiu.

Se saiu! Está com uma energia e o pessoal curtiu imenso fazer aquilo. Não sei se foi em 1994 que saiu [o disco] mas no ano seguinte fartámo-nos de dar concertos. 

O “Só” é a antítese dessa eletricidade.

Por isso é que eu punha os dois discos numa caixa. Porque são duas faces da minha música. Duas estéticas diferentes que se completam e abrangem o meu universo musical que tem tanto de música clássica como de rock. 

Sabe de qual dos dois amores gosta mais?

Epá, é muito difícil. Não dá, são como dois filhos. Diferentes, mas gosto muito dos dois. Um é mais introvertido e sóbrio, o outro é extroversão.

Estar só em palco é viver no arame?

Se tiver um concerto a solo, e no dia seguinte um concerto em trio, dois dias depois um outro com banda completa, e no quarto for convidado do Paulo Gonzo, ou convidar o Camané, essas formas de apresentação do trabalho completam-se. Sozinho, tenho liberdade total. Posso dar as voltas que quiser sem estar preocupado. Quando estou em grupo, tem que haver uma estrutura bem definida. E a sonoridade é outra. Sabe-me bem tocar acompanhado, como sabe bem ter um bom piano e uma boa guitarra e fazer uns saraus. 

“Só” de solidão ou apenas porque despiu aquelas canções ao piano?

Jogo com a carga que os vários significados podem ter. O “Só” da solidão (muitas vezes) desejada. Ou indesejada. O “Só” advérbio com que jogo na canção. “Só por existir/só por duvidar”. Não é só o estar só. Brinco com a palavra. 

É como estar aqui na sua sala de estar?

Não, há sempre ansiedade ao ir para palco. Há o antes, o durante – seja uma hora ou duas – em que me estou a realizar completamente. Entrego-me, trabalho com gosto. E há o depois, que é a parte mais chata. Tirar selfies.

As selfies aborrecem-no?

Faz parte, mas não tenho pachorra para ficar uma hora a assinar discos. No antes é que está o nervoso. 

Ainda hoje?

Muito, muito. Sinto muito nervoso antes de entrar em palco. É normal. Só quando começo é que sinto o comboio a andar. 

Porque voltou ao “Só”?

Já se tinha feito concertos a celebrar o 25.º aniversário do “Bairro do Amor”. Qualquer dos discos pode ser revisitado. São os 20, os 25 anos…

Há canções desses dois álbuns que pertencem à memória coletiva como o “Frágil”, o “Dá-me Lume”, o “Bairro do Amor” e o “Só”. Como é que o autor se relaciona com as outras canções, as menos populares?

Qualquer dos discos pode ser revisitado. São os 20, os 25 anos…

Ainda hoje, não são o tipo de canções formatadas para o sucesso imediato. 

Não, são todas bastante diferentes. O que tenho gravado ao longo dos anos reflete as influências e as vivências de cada época. Por exemplo, o “Asas e Penas” (1984) é um reflexo de ter retomado os estudos clássicos. Tenho a “Estrela do Mar” com um arranjo de piano à la Debussy. Escrevo arranjos para uma orquestra que paguei. Depois, há discos como o “Quarto Minguante”, mais experimental e construído pela banda. Foi cozinhado na minha casa e depois em estúdio. É o menos pessoal dos que gravei. Todos os discos refletem fases da minha vida. No meio, há canções que ficaram para as pessoas. 

Soube bem voltar a elas?

Sim, mas nunca deixei de as tocar. Os espetáculos do “Só” foram seis em doze dias. Duas noites de CCB e uma de Casa da Música em cinco dias, um intervalo de três dias antes do Convento de SãoFrancisco e depois quatro ou cinco dias para concluir esta minidigressão. E a vida continua. Nos espetáculos a solo, toco grande parte das canções do “Só” e de outros discos. 

E antes tinha mudado de assunto na digressão com o Sérgio Godinho. Tinha que ser?

Pá, nada tem que ser mas fez todo o sentido. Somos amigos e temos colaborado em discos um do outro, aniversários e encontros ao vivo. Foi uma aventura que começou na Primavera de 2015 e que me deu muito gozo. Também deu algum trabalho em termos de ensaios foi muito bom porque oSérgio sempre foi uma influência muito boa para mim. Aprender aquelas 15 canções dele, e vice-versa, deu-me muito prazer. Ainda há menos de um mês demos um concerto. A máquina está montada.

Os encontros e as revisitações têm adiado um álbum novo [o anterior “Com Todo o Respeito já tem seis anos]?

Tem ocupado tempo e espaço, sim. Se não tivessem acontecido estes projetos, o estudo intensivo da obra do Sérgio e a sonata de Beethoven, que não dava para pôr em disco porque não sou a Maria João Pires, mas deu-me gozo, ocupou-me o espírito. Isso e um trabalho constante ao longo dos últimos anos. Tem havido muita dispersão. Este ano foi ensaiar com gente diferente, os concertos com Orquestra Clássica do Centro dirigida pelo Rui Massena, colaborações com cantores da praça e a Uxia da Galiza.Há sempre alguém que me pede para escrever uma letra ou uma música, como foi o caso da Cuca Roseta e do Paulo Gonzo. Também aceitei compor para oFestival da Canção. [A canção] está feita e quase pronta a entregar. Não posso dizer para quem, nem sequer conheço a pessoa mas sei que aceita. Por isso, tem sido uma roda a vida sempre a aprender com outros. E até agora também não tenho sentido…já passei dez anos sem gravar um álbum de inéditos nos anos 90. Entre o “Bairro do Amor” (1989) e o “Jorge Palma (É Proibido Fumar)” de 2000. Estive sempre ocupado a trabalhar. Acho que para o ano vai ser. Já tenho cinco temas e muitas notas no dictafone. Lá para a primavera deve estar pronto. É a altura.

Também é da opinião que o mundo está a mudar a uma velocidade sem precedentes na história da humanidade?

Está a acontecer isso, está. Uma revolução absolutamente inédita. Mas não é isso que me dá mais material para escrever. A revolução tecnológica? 

Não só. Política.

Pois, política. Alguns pontos são mais visíveis, mas não se fala muito do Sudão. Muitos sítios em que o contexto político é muito mau. No fundo, o Homem não mudou assim tanto desde os símios. Desde que é homo sapiens. A ânsia de poder é constante ao longo da história e basta isso para gerar situações de injustiça que se repetem. De prepotência e desumanidade. Vamos sabendo e tendo consciência mas para escrever sobre essas questões há filósofos e politólogos. Eu escrevo as canções. 

O amor continua a ser a matéria-prima mais rica?

Sim, o amor, o poder e a morte. Dá pano para mangas. Dá uma vida. 

Nunca é tarde para se ter uma infância feliz?

Essa frase está num disco [O Lado Errado da Noite, de 1985] mas é de um gajo americano de quem devorei não sei quantos livros. O Tom Robbins. Foi ele que escreveu never too late to have a happy childhood. 

Viver ao desafio?

Estar tudo em aberto. Há tudo por fazer desde que haja saúde. 

Sabe-lhe bem saber que há uma série de músicos para quem o Jorge Palma é uma referência?

Sabe muito bem, claro. Sobretudo quando são pessoas por quem tenho grande admiração, ainda sabe melhor. Há pessoal com quem nunca tive nenhuma relação de trabalho e mal conheço – estou a pensar no Manel Cruz (ex-Ornatos) – que admiro muito e sei que é recíproco. O Abrunhosa, a Cristina Branco, que tem uma pachorra infinita, o Tiago Bettencourt com quem fiz coisas…Dar e receber. 

Escreveu bastante para teatro. Interessa-o a relação entre o popular e o erudito?

Sim, escrevi principalmente nos anos 90. Muito Brecht e depois houve “As Canções doBrecht” que o Jorge Silva Melo me convidou para dirigir. O Brecht pensava dessa forma, não tem de haver barreiras. A música clássica ou erudita sempre foi roubar elementos à música popular da rua. Tendo sido instruído e aprendido a mexer nas ferramentas que me permitem escrever para orquestra e chegar a um piano e saber o que estou a fazer, dá jeito para escrever música. Até pode ser um fado. 

O piano exige muito treino?

Exigiu em diversas fases. Até meio da minha adolescência, entre os 8 e os 12 anos. Estudei uma série de peças difíceis. Quando retomei, por vontade própria aos 30 e tal anos – acabei aos 40 –, deram-me muito trabalho o estudo do instrumento e das peças para exame, mas também um gozo incrível. E depois um gajo continua sempre a estudar e a tocar. Não sou o tipo de músico que toque todos os dias nem nada que se pareça. 

O treino é o palco?

Sim, se eu tivesse pretendido seguir a carreira de pianista clássico, aí há uma feroz competição. Teria que ser mesmo muito bom e estudar muito. Pelo menos seis horas por dia, o que para mim é demais. Na música, que considero mais fácil, a que escrevo e toco, há competição mas não penso nisso. Há que pôr as coisas de pé, tornar a música audível. Não me sinto vítima do trabalho. 

Em cima da mesa, tem um livro do cancioneiro do Bob Dylan. Não lhe deve ter feito confusão a atribuição do Nobel da Literatura.

Não, nenhuma mesmo. Achei fixe. O homem tem um trabalho incrível. Tenho aqui dentro da memória muitas canções dele que sou capaz de tocar imediatamente. Algumas longas como aquela em que a Patti Smith se enganou [”A Hard Rain’s Gonna Fall”]…o homem escreve mesmo bem e provocou uma transformação poética. O significado abriu a cabeça de muita gente. É legítimo que ele tenha recebido o Nobel.

Quando a folha está em branco, os clássicos salvam vidas?

Pode ser. Não tenho pejo nenhum em roubar uma canção ao Paul Simon, ao Bob Dylan, ao Leonard Cohen, ao Lou Reed ou ao David Bowie. Até porque, quando tento roubar, as pessoas nem identificam a fonte. Se pegar num tema de alguém que goste e desligar, for para o piano ou para a guitarra, sou capaz de tentar emular e se calhar sai alguma coisa gira.

Desses cinco, três morreram nos últimos anos. Os heróis estão a ir-se embora? 

Deve ter a ver um bocadinho com a idade, não? Há pessoas que aguentam mais, há quem viva mais intensamente. Tem a ver com a constituição física, mental e as circunstâncias. Desconheço os detalhes. Alguns morrem aos 40 e tal anos. Então os compositores…e os escritores no período romântico. Há o James Dean, o clube dos 27…esse já passei. Um gajo nunca sabe quando é que aparece a maleita ou tem o tal acidente. Não adianta pensar na morte.