É óbvio que não se deve assumir que o óbvio é verdade, e cada aparente evidência ou certeza, individual ou coletiva, carece de repetida e disciplinada diálise. Dir–se-ia ser óbvio que John le Carré é um escritor de romances de espionagem, mas talvez não seja bem assim, e a dúvida ou a negativa não são por conta do facto de ele ter escrito muitas outras coisas para além de Smiley e suas gentes. Não é bem assim, porque mesmo os livros que mergulham fundo nos labirintos da Guerra Fria ou na bruma do “Circus” não são sobre espiões, apenas usam os espiões e os seus mundos como um interruptor literário para uma viagem pelas entranhas, as luzes e as sombras da condição humana (digamos assim). As obras de espionagem de Le Carré são tanto sobre espiões como o “Hamlet” é sobre um príncipe da Dinamarca ou o “Quixote” é sobre um cavaleiro de triste figura.
E o último livro seu, “A Legacy of Spies”, é disso um belo exemplo. “Primavera”, “Bambúrrio”, “Controlo”, “Encobertas”, “Conjunta” e tudo o mais que recorda outras páginas mais não são do que um modo de nos lembrar que cada pessoa, espião ou não, age movido por razões que são só suas, e que frequentemente nem ela mesma as espera ou prevê, e não raras vezes não as compreende sequer, sobretudo quando remontam ao princípio dos tempos de cada um de nós (sim, a infância, vinguemos Freud) e/ou estão bem apertadas debaixo das camadas da cebola que cada um de nós é. “Tulipa” age como age, porquê? Lemos, relemos, pensamos, aqui e ali seguimos um caminho de explicação, mas umas páginas adiante nova interrogação, nova pista, novas emoções, traições, outros negrumes, contentamentos, e medos, sobretudo medos, surgem como hipótese de explicação. Uma coisa é certa em Le Carré, embora por vezes nada óbvia: toda a sua obra recusa a heroicidade, apenas (e é tanto) reconhece a humanidade – com minúscula, uma minúscula muito solitária.
Este último livro traz-nos de novo tudo isso, e com o requinte e a sageza de quem já viveu muito, em tempo e em vida. E fala-nos principalmente, sem querer ou querendo (suspeito que sim), sobre a condição essencial para se ser capaz de julgar, que é não se colocar no lugar do outro, do outro que é julgado. Para julgar, quem julga só se pode colocar no seu próprio lugar ou no lugar de uma norma, de um padrão ou de uma exigência. Condenar ou absolver deixa de ser possível quando se passa a fronteira para o lado, o tempo e o modo do outro. Aliás, é-nos recordado já para o fim do livro (que é todo ele sobre a (im)possibilidade de julgar) que o problema de Smiley foi sempre ver ambos os lados de tudo, e isso esgotou-o. Julgar não é, nunca é, ver a verdade toda. Porque ver a verdade toda é compreender, é aceitar, e com isso torna-se impossível julgar. E levamos connosco, muito para lá da leitura do livro, a frase (e a dúvida) de abertura do capítulo 13: “Quando a verdade nos alcança, não sejamos heróis. Fujamos.” Recorrente nota de humanidade – com a minúscula, muito solitária.
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