O Natal dos outros


Marcelo vai passar o Natal a Pedrógão e o fim de ano a Oliveira do Hospital. É um gesto “presidencial”, mas que seja também um gesto inspirador e que o nosso Natal possa ser mais para os outros 


Estou a descer a rua e vejo um lugar para estacionar do lado esquerdo, o último lugar em cima do semáforo. Consciente de que pode ser difícil perceber se vou estacionar ou virar quando o sinal abrir, meto o pisca e vou fazendo sinais pelo retrovisor ao condutor do carro que se vai aproximando. O semáforo fica verde e segue-se uma cena do campo do surreal: o homem não viu o pisca, encosta-se a mim e, quando lhe peço já verbalmente para se chegar um pouco para trás para que eu possa estacionar (meio metro era suficiente), indigna-se e diz que não, que não recua, eu que tivesse feito pisca (o pisca que continua ligado…)

Digo-lhe que já estava com o pisca quando ele vinha a descer a rua. Os modos deterioram-se, os dele e os meus. O carro de trás cola-se ao dele. Peço ao senhor do segundo carro que recue para o senhor da frente poder dar-me espaço para a manobra. Diz-me que não: se os da frente não recuam, ele também não vai recuar. 

Nisto já há quatro carros em fila, todos a apitar, todos contra mim que lhes estou a roubar sagrados minutos de vida com a minha insana insistência em querer estacionar no lugar que apanhei livre e para o qual fiz o respetivo pisca. Num golpe de sorte, passa um polícia que mete ordem na via pública e os manda a todos chegar para trás, terminando em segundos o que poderia ter ficado resolvido também em segundos se toda a gente tivesse sido um pouco mais gentil, compreensiva, atenciosa. Não somos. Na correria em que andamos – desta vez aconteceu-me apanhar uns autênticos selvagens, mas também já me aconteceu reagir de forma intempestiva e desproporcional e ficar com remorsos, se bem que nunca numa situação em que me pedissem para recuar meio metro para facilitar a vida a alguém – o facto é que muitas vezes o outro, para mais o outro que não conhecemos, é simplesmente invisível, indiferente, tenha ou não razão, diga o que disser.
Já cheira a Natal, e porque para mim a festa sempre foi também o momento em que uma luz nova chega às nossas vidas e nos preparamos para a receber, ou devemos procurar tempo para fazer esse esforço, irritei-me com aquele bando de acelerados, mas ao mesmo tempo pus a mão na consciência pelas vezes todas em que, numa aceleração muito parecida, me irrito à toa e sou certamente injusta.

Se durante muito tempo o Natal massificado parecia ser só o do consumismo, hoje não faltam propostas para aproveitar a época também nas coisas mais espirituais e para nos ligarmos mais aos outros. Há também exemplos. Marcelo anunciou com antecedência que vai passar o Natal a Pedrógão Grande e o fim de ano a Oliveira do Hospital e Vouzela: pode ficar bem na fotografia do presidente dos afetos, mas o facto é que não precisava de ir e certamente seria mais confortável passar o dia de Natal mais perto de casa. Acho que pode ser inspirador esta ideia de que podemos sempre doar um pouco mais de nós, um pequeno extra.

Esta semana dei com uma página que pode ser um princípio. Chama-se Pai Natal Solidário e é uma iniciativa dos CTT em que é possível apadrinhar uma carta ao Pai Natal de uma de 2 mil crianças apoiadas por 50 instituições e abrangidas pelo programa. A campanha foi lançada no fim de novembro e metade das cartas ainda estão por apadrinhar. Há cartas que seguem aquele registo típico em que os miúdos pouco dizem e colam recortes do catálogo dos brinquedos – quem nunca? – e há outros que descrevem com graça alguns must-have da época, como pássaros que nascem de ovos. Basta escolher a carta e entregar o presente numa loja CTT no prazo de três dias úteis. É um pequeno gesto para começar a ligar mais aos outros, neste caso pequenos outros a quem uma pasta da Luna ou um helicóptero telecomandado pode trazer alguma alegria. Mas daqui ao Natal não devem faltar oportunidades, quem sabe num semáforo qualquer.

Jornalista 
Escreve à sexta-feira 


O Natal dos outros


Marcelo vai passar o Natal a Pedrógão e o fim de ano a Oliveira do Hospital. É um gesto “presidencial”, mas que seja também um gesto inspirador e que o nosso Natal possa ser mais para os outros 


Estou a descer a rua e vejo um lugar para estacionar do lado esquerdo, o último lugar em cima do semáforo. Consciente de que pode ser difícil perceber se vou estacionar ou virar quando o sinal abrir, meto o pisca e vou fazendo sinais pelo retrovisor ao condutor do carro que se vai aproximando. O semáforo fica verde e segue-se uma cena do campo do surreal: o homem não viu o pisca, encosta-se a mim e, quando lhe peço já verbalmente para se chegar um pouco para trás para que eu possa estacionar (meio metro era suficiente), indigna-se e diz que não, que não recua, eu que tivesse feito pisca (o pisca que continua ligado…)

Digo-lhe que já estava com o pisca quando ele vinha a descer a rua. Os modos deterioram-se, os dele e os meus. O carro de trás cola-se ao dele. Peço ao senhor do segundo carro que recue para o senhor da frente poder dar-me espaço para a manobra. Diz-me que não: se os da frente não recuam, ele também não vai recuar. 

Nisto já há quatro carros em fila, todos a apitar, todos contra mim que lhes estou a roubar sagrados minutos de vida com a minha insana insistência em querer estacionar no lugar que apanhei livre e para o qual fiz o respetivo pisca. Num golpe de sorte, passa um polícia que mete ordem na via pública e os manda a todos chegar para trás, terminando em segundos o que poderia ter ficado resolvido também em segundos se toda a gente tivesse sido um pouco mais gentil, compreensiva, atenciosa. Não somos. Na correria em que andamos – desta vez aconteceu-me apanhar uns autênticos selvagens, mas também já me aconteceu reagir de forma intempestiva e desproporcional e ficar com remorsos, se bem que nunca numa situação em que me pedissem para recuar meio metro para facilitar a vida a alguém – o facto é que muitas vezes o outro, para mais o outro que não conhecemos, é simplesmente invisível, indiferente, tenha ou não razão, diga o que disser.
Já cheira a Natal, e porque para mim a festa sempre foi também o momento em que uma luz nova chega às nossas vidas e nos preparamos para a receber, ou devemos procurar tempo para fazer esse esforço, irritei-me com aquele bando de acelerados, mas ao mesmo tempo pus a mão na consciência pelas vezes todas em que, numa aceleração muito parecida, me irrito à toa e sou certamente injusta.

Se durante muito tempo o Natal massificado parecia ser só o do consumismo, hoje não faltam propostas para aproveitar a época também nas coisas mais espirituais e para nos ligarmos mais aos outros. Há também exemplos. Marcelo anunciou com antecedência que vai passar o Natal a Pedrógão Grande e o fim de ano a Oliveira do Hospital e Vouzela: pode ficar bem na fotografia do presidente dos afetos, mas o facto é que não precisava de ir e certamente seria mais confortável passar o dia de Natal mais perto de casa. Acho que pode ser inspirador esta ideia de que podemos sempre doar um pouco mais de nós, um pequeno extra.

Esta semana dei com uma página que pode ser um princípio. Chama-se Pai Natal Solidário e é uma iniciativa dos CTT em que é possível apadrinhar uma carta ao Pai Natal de uma de 2 mil crianças apoiadas por 50 instituições e abrangidas pelo programa. A campanha foi lançada no fim de novembro e metade das cartas ainda estão por apadrinhar. Há cartas que seguem aquele registo típico em que os miúdos pouco dizem e colam recortes do catálogo dos brinquedos – quem nunca? – e há outros que descrevem com graça alguns must-have da época, como pássaros que nascem de ovos. Basta escolher a carta e entregar o presente numa loja CTT no prazo de três dias úteis. É um pequeno gesto para começar a ligar mais aos outros, neste caso pequenos outros a quem uma pasta da Luna ou um helicóptero telecomandado pode trazer alguma alegria. Mas daqui ao Natal não devem faltar oportunidades, quem sabe num semáforo qualquer.

Jornalista 
Escreve à sexta-feira