O Panteão Nacional foi lugar de um jantar da Web Summit e a polémica levantou-se por todo o país. Numa altura em que está a ser contestado o facto de a lei prever a realização de eventos como cocktails e jantares dentro das instalações do monumento nacional, a verdade é que existem outro tipo de atividades lúdicas a ser promovidas em locais ligados aos rituais fúnebres. É o caso de visitas noturnas a cemitérios, inclusive organizadas pelos próprios municípios.
O turismo e a morte têm vindo a fortalecer a sua relação dentro das fronteiras portuguesas e exemplo disso é a Câmara Municipal de Lisboa organizar várias visitas aos cemitérios da cidade. O mais recente programa de visitas guiadas teve início no mês de outubro mas estende-se pelo mês de novembro e dezembro com “visitas temáticas e genéricas aos Cemitérios dos Prazeres e do Alto de São João”, lê-se no site online do município.
Também a Câmara Municipal de Loures criou a possibilidade de se realizarem visitas ao cemitério da cidade com direito a programação oficial e percursos temáticos. Em causa estará a valorização da dimensão histórica do cemitério, bem como a promoção e proteção de património arquitetónico e cultural. Na cidade invicta, bem no norte do país, o mês de maio deu origem ao “Ciclo Cultural dos Cemitérios”, uma iniciativa do Pelouro da Inovação e Ambiente da Câmara Municipal do Porto com a colaboração da entidade gestora do Cemitério Britânico.
Concertos de música sacra e erudita, palestras e visitas são algumas das atividades cada vez mais normais em programações deste género. Mas qual é a relação dos portugueses têm com a morte e com os lugares de descanso eterno?
José Eduardo Rebelo, professor na Universidade de Aveiro, é o fundador do Espaço do Luto, bem como da Associação Apelo, destacando-se por ser pioneiro na área de investigação do luto em Portugal. Organizador do Congresso Internacional do Luto, que aconteceu no passado mês de julho, em Lisboa, não quis comentar em particular a reação nacional ao jantar da Web Summit, mas acredita que a sociedade portuguesa passou de uma sociedade culturalmente espiritual para uma sociedade mercantil e este tipo de iniciativas são reflexo dessa transição. “Isto não significa que seja bom ou mau, não há esse julgamento aqui. Hoje em dia encara-se a morte numa perspetiva completamente diferente do que era no passado”.
Mas os portugueses nunca encontraram bem um lugar para a morte, argumenta. A Apelo, associação que fundou, é uma comunidade que presta apoio comunitário a pessoas, famílias e comunidades em luto. Segundo José Eduardo Rebelo, um dos factos notórios no que toca a diferenças culturais sobre a forma de os portugueses fazerem o luto é que o apoio comunitário em grupos de entreajuda, em países anglo-saxónicos, são “muito correntes e normais”, uma vez que a “comunidade participa ativamente na partilha da dor e na resolução do luto”. Ao contrário do que se passa em Portugal. “Nós somos um povo profundamente egocêntrico. E isso vê-se pela nossa identidade artística, em que somos um povo de poetas. Os poetas de um ponto de vista antropológico são egoístas, falam de si. E, por cultura, o português é egocêntrico”, comenta. “A cultura, nesta perspetiva, diz-nos que o luto e a morte é um problema individual. Até hoje sempre ouvimos por cá dizer que ‘cada um tem a sua cruz’, uma expressão popular que está entranhada em nós”.
Rebelo considera que face a uma dificuldade, e não se trata apenas em relação à morte, o português entende que “cada um tem que resolver o seu problema por si, reprimindo-se emoções e manifestações de dor como o choro”. “Quantas pessoas veem outra chorar e lhe dizem ‘oh não chores, vai passar’?”, explica, enquanto define que nas questões do luto é ainda mais complicado de gerir este expressar de emoções. “O luto provoca uma série de reações muito desagradáveis em termos sociais. Uma pessoa em luto tem naturalmente necessidade de chorar, de se enraivecer, tem necessidade de se culpar, tem necessidade de ficar prostrada e abatida. Estas são as reações fundamentais de reconhecimento da perda significativa. A maioria das vezes, famílias e amigos confrontados com tais reações tendem a associar a pessoa a dores físicas, não a dores emocionais, associando sempre que as pessoas que ainda sofrem do luto passado algum tempo, possam estar apenas doentes”, refere. Para José Eduardo Rebelo, esta forma de encarar o luto, seu ou dos outros, é apenas o resultado de uma “sociedade hedonista, profundamente ligados aos bens materiais e ao bem-estar imediato”. E nem sempre assim foi. Em meados do século passado, explica, a morte era um assunto público e o casamento era de índole privada. “Hoje em dia o casamento é cada vez mais público e a morte cada vez mais privada. Antigamente na nossa cultura a morte era feita em casa, junto da família, uma passagem de testemunho, uma questão pública, assumida, natural. As pessoas iam ao velório e se estivessem no fim das suas vidas eram visitadas, não se perdia o caráter social que as pessoas têm. Agora as pessoas morrem nos hospitais, sozinhas, fechadas, tornando-se um assunto cada vez mais privado”, sublinha.
Para o biólogo e psicólogo, esta mudança surge em virtude das questões materiais. “Existe um desvirtuar completo dessa realidade e enquanto que nessa altura havia realmente locais de culto, em que um cemitério era quase um sítio sagrado, hoje em dia, que a morte está desvalorizada, em que ninguém quer presenciar a morte do outro, ou lidar com ela, torna-se tudo uma espécie de formalidade. Como aliás se vê no espetáculo comercial de compra de velas e flores no dia 1 de novembro de cada ano. Transformamos uma sociedade de valores espirituais numa sociedade mercantil, em que tudo se compra e tudo se venda, inclusive jantares e visitas a cemitérios”.