Agora que já acalmou a inundação noticiosa e opinativa sobre o acórdão da Relação do Porto (inundou tanto que até poderia parecer aos distraídos o 11 de setembro da jurisprudência nacional), deixo aqui umas breves notas sobre o tema, mas não é para defender (seria difícil) o acórdão ou para o criticar (seria provável), são apenas notas de natureza, digamos, sociológica. Estava o país embalado na crença de que os tribunais é que salvam isto e de que só eles podem ser guardiões do bem e eis que num negro dia de outono se descobre que, afinal, aos tribunais também não pode, afinal, aplicar-se a máxima do Padre Américo sobre não haver rapazes maus. Afinal – descobriu o país em pranto e rasgo de vestes –, também pode haver decisões de tribunais criticáveis, dificilmente compreensíveis, subjetivas, desproporcionadas, e outros qualificativos que por aí proliferaram a respeito do acórdão e que me dispenso de repetir. Pois pode, digo eu, e já vi várias, embora a maior parte da judicatura, como tenho testemunhado ao longo de mais de 20 anos de tribunais, mereça muito mais elogio do que crítica, e até bem mais do que outras “classes” da justiça. Mas que há decisões que são maçãs menos sãs num cesto em geral saudável, há, tem havido e continuará a haver.
Mas não é isso que me preocupa e entristece mais, é outra coisa que esta inundação acerca do acórdão bíblico da mulher adúltera mostrou bem: é que o politicamente correto é mesmo, hoje em dia, a medida asfixiante de todas as coisas, ao ponto de o país crente só despertar para o quase ateísmo jurisdicional quando aparece um acórdão que vai contra a norma-padrão em temas queridos do politicamente correto. Quando os acórdãos são sobre outras coisas, e mesmo quando contêm aberrações mas estas vão no sentido do que o pensamentozinho alvo e puro da modernidade acha bem, então eles não só não têm aberrações como estão até muito bem, e quem diga o contrário ou é velho do Restelo ou tem interesses obscuros. Desta vez, citar a Bíblia caiu mal, mas se fosse para a citar a respeito de outras mocas com pregos (sobretudo as figuradas) e outros supostos adultérios, estou em crer que o país ulularia de satisfação e aplauso.
As vezes que já se viram decisões onde o juiz mete a colher da sua subjetividade ou cede à tentação moralizante, mas só agora se deu por isso. As vezes em que se suspeita que o segundo juiz só leu na diagonal ou nem sequer leu, mas só agora se deu por isso. As vezes que já se disse que nos últimos anos se espremeu até à pele o sistema de recursos, e sempre sob o pretexto (muito querido do pensamento doce que faz vencimento) de que é preciso combater o excesso de garantias e as manobras dilatórias, mas só agora, pelos vistos, se deu por isso. Et cetera, por exemplo o benfazejo copy & paste. Pois é, só agora se deu por isso. Até poderia dizer que mais vale tarde do que nunca. Mas nem isso digo, porque a descrença não durará muito. É só até a próxima moca com pregos acertar no sítio tido como certo.
Escreve quinzenalmente à sexta-feira