“Na verdade, não sou assim grande colecionadora. Não coleciono objetos.” Vem já a pedir explicação este princípio de conversa com Raquel André no camarim do Teatro Nacional D. Maria II em que, por estes dias, já se tinha instalado para a primeira apresentação em Lisboa da sua “Coleção de Colecionadores” (quinta-feira às 21h30). Mas há um sentido aqui. Raquel André pode nem colecionar objetos seus, apesar de o trabalho dos últimos anos a ter vindo a conduzir à conclusão de que todos somos colecionadores de tudo, afinal. E ela pode não ter uma coleção particular de objetos, mas há mais de um ano que vem colecionando pedaços das coleções dos outros. De colecionadores.
No palco da Sala Estúdio descobrimos alguns deles. Uns que já conhecemos, outros novos. São já 117 os que acumulou desde a última vez que nos cruzámos a pretexto deste espetáculo, lá no Alto Minho. Era uma das primeiras apresentações do então “Segredo de Simónides”, poeta grego fundador da arte da memória, renomeado agora que chega ao D. Maria II, integrado na programação do festival Temps d’ Images, de “Coleção de Colecionadores”. E é então verdade que Raquel André não coleciona objetos: estes que vai juntando, guardando e registando num trabalho contínuo como tem sido o de colecionar amantes – e já lá vamos – são afinal pretexto para a tentativa feita obsessão de colecionar o que não é, que não seria, colecionável. Pessoas. Histórias, memórias, intimidades.
A “Coleção de Colecionadores” é o segundo de quatro capítulos de uma série de coleções. A primeira, “Coleção de Amantes”, começou em 2014, no Rio de Janeiro, onde viveu mais de seis anos e de-senvolveu a sua pesquisa de mestrado em metodologias de colecionismo nas artes performativas. Coleção que há de continuar até 2024, quando se completarem dez anos, e que vai aumentando em paralelo com esta “Coleção de Colecionadores” e com uma outra, de espetadores, que vai construindo a cada apresentação dos dois espetáculos. Faltará ainda uma de artistas, para começar no próximo ano, mas voltemos aos objetos.
“Percebi que não é o objeto em si que é importante. Lógico que alguns têm valor monetário, mas mais do que o objeto em si é a história que transporta. Isso não tem valor. Acho que a importância de todos os objetos que os colecionadores me dão e que colecionam está na história que transportam.” Colecionar, diz, é uma forma de nos construirmos, de nos olharmos. “Teres uma coleção é quase uma forma de conseguires organizar a tua biografia, uma forma de te veres, de te perspetivares. Ou de condensares, guardares uma falta qualquer de alguma coisa que não conseguiste realizar, experienciar ou até verbalizar que de repente pões ali, naquele objeto. É uma forma de organização do mundo. O que eu acho interessante como artista é poder criar narrativas, histórias, um espelhamento para a sociedade a partir do espaço que há entre uma coisa e a outra. Comecei a perceber que o que me interessava era o espaço do que não estava lá e que esta é uma metodologia de criação para vários artistas.”
E isto levar-nos-á ainda mais atrás no tempo, a uma caixa cheia de cartas que descobriu há anos, antes de tudo, na casa de família que um amigo esvaziava. “Estava a dar uma olhada no que ele estava a pôr para o lixo e vi uma caixa de papelão com cartas daquelas que são enviadas por correio aéreo.” Centenas de cartas, 650, contou mais tarde, da década de 1970 até à de 90, correspondência de 30 anos de uma família, entre Portugal e a Bolívia. “Comecei a organizar aquilo, passei um verão a ler as cartas, a organizá-las por ordem cronológica e eram basicamente a história da família dele, porque era a correspondência entre a mãe e as avós, que ele não sabia que existia – estava simplesmente a livrar-se de coisas que pareciam papéis, documentos que já não prestavam”, recorda sobre esses documentos que acabaram por dar um espetáculo, “NO Digital”, que apresentou em conjunto com Tiago Cadete, em 2009.
“Foi a partir daí que comecei a relacionar-me com esta ideia de coleção, a perceber de que maneira, a partir de um conjunto de informação e de objetos, poderia escrever uma narrativa para teatro.” A esse espetáculo seguiu-se um outro, a partir de “The Last Words of Notable People”, compêndio das últimas palavras ditas por mais de 3500 personalidades antes de morrerem. “Ainda tenho esse livro”, sorri. “É uma enciclopédia só com as palavras que aquelas pessoas disseram, com informações do lugar, do ano, quem disse e quem ouviu, idade, em que situação estava, todo o arquivo… E pronto, comecei a entrar nessa loucura de criar coleções e narrativas a partir de coleções e perceber o que é que elas significam.”
A descrição de Raquel André destas últimas palavras de “pessoas notáveis” soará familiar a quem conhecer já a sua “Coleção de Amantes”, transmitida pela RTP2 no sábado passado e que terá nova apresentação em Lisboa, também na Sala Estúdio, entre 15 e 22 de novembro, depois de ter já sido lançado o primeiro volume do livro dedicado ao projeto, “Coleção de Amantes – Collection of Lovers, Vol. 1” (9 de novembro às 19h no Teatro Nacional D. Maria II). Iniciado no Rio de Janeiro ainda sem forma de coleção – “na altura chamava a isto ‘Amante Doc 1’, ‘Amante Doc 2’ -, a partir de uma série de encontros com desconhecidos nas suas casas para ficcionar situações de intimidade entre duas pessoas, o projeto que foi ganhando depois a dimensão de coleção era minucioso no registo de detalhes. Sem registos de nomes – no livro que está prestes a ser lançado veremos que não há caras, não há nomes, cada amante é um número -, Raquel sabia de cada encontro o que tinha acontecido, em listas. Por exemplo: com quantos amantes tinha tomado café, com quantos tinha tomado chá, quantos lhe tinham confessado que aquela conversa que estavam a ter com ela nunca a tinham tido com ninguém.
“A quantidade de pessoas que me dizem isso: ‘Nunca falei disto com ninguém…’”, suspira. “Muitas coisas que as pessoas me contaram tornaram-se questões para mim: ‘Como é que vou relacionar-me com isto?’ Comecei a percecionar um padrão de situações, coisas que sei que não quero ter na minha vida… E como é que me protejo disto? Estou a aprender muito como pessoa, como mulher, como artista. Muito. E não tenho como parar de fazer estes encontros porque torna- -se uma necessidade também para o trabalho.” O trabalho que lhe vai indicando o caminho para o que virá a seguir.
Assim viraram coleção, a primeira das suas quatro coleções, esses primeiros documentos de encontros que não eram mais que pretextos para poder entrar em casa de pessoas numa cidade que não era a sua. “Fui com 23 ou 24 anos para o Rio de Janeiro, sozinha. Era para ter ficado quatro anos, fiquei quase sete, e isso deu-me muito uma perspetiva de mim. Consegui observar-me pela distância que me deu estar a um oceano do lugar a que chamava de casa, da minha cultura e da minha experiência artística, e da minha sensibilidade enquanto mulher. E isto começou a questionar-me mais ao fim de três, quatro anos, quando já não era uma novidade a cidade. As pessoas e aquela cultura já me estavam entranhadas e eu continuava a ser uma estrangeira. Ou pelo sotaque, ou pela forma como observava as coisas, pelas questões que eu tinha. Muitos dos trabalhos que comecei a fazer lá de forma independente tinham a ver com estas questões e, na verdade, comecei a encontrar–me com desconhecidos na casa deles antes de saber que estava a fazer uma coleção, só mesmo pela questão de entrar em casa das pessoas. Porque eu tinha muito essa questão no Rio: como é que entro em casa das pessoas?”
Surgiu então a “Coleção de Amantes”, trazida no regresso para Portugal, direta para Paredes de Coura, para o início da “Coleção de Colecionadores”, levada já de volta ao Brasil, onde regressou desta vez a Manaus, na Amazónia, para colecionar mais oito amantes. “Esta possibilidade de num trabalho artístico poder juntar amantes de Sever do Vouga e de Ovar com amantes da Amazónia e perceber que pode haver uma diferença, que é uma relação com o corpo e com uma cultura, mas que os assuntos – o indivíduo e o afeto – são os mesmos e que nos atravessam da mesma forma, é muito potente. Porque é igual, a essência é a mesma. Mas ao mesmo tempo tão diferente de um para um, porque cada um se relaciona com a intimidade de forma completamente diferente. Tem sido incrível testemunhar isto.”
E o que foi feito destes amantes, dos seus nomes que nunca conheceremos, só em número, nesse livro? Raquel André sorri: “Vários tornaram-se meus amigos, outros tornaram-se meus amantes. Com alguns nunca mais falei, mas com outros troco emails, mensagens, cartas.”