As inverdades que nos contam sobre as Forças Armadas


Foram preciso mais de 100 mortos para que as guerras de poder e de tutela entre o Ministério da Administração Interna e o Ministério da Defesa começassem a ser dirimidas


É com a Revisão Constitucional de 1982, em concreto com a revisão do seu art.º 275, que se inicia o caminho de participação das Forças Armadas em ações de Proteção Civil e naquilo a que, hoje, designamos por missões de interesse público e que, à época, começam por surgir com a colaboração “em tarefas relacionadas com a satisfação das necessidades básicas e a melhoria da qualidade de vida das populações”. Este preceito constitucional, pelas dúvidas que suscitou na sua implementação prática, voltaria a ser adensado em 1989 com o acrescento da expressão “inclusivamente em situações de calamidade pública que não justifiquem a suspensão do exercício de direitos” dotando, já naquela altura, as FA de capacidade constitucional, caso seja essa a opção do poder político tutelar, de intervenção em situações que extravasem a segurança externa do país, mas que igualmente ponham em causa a segurança da população.

Porém, é apenas em 1997, com a mais securitária das revisões, que o preceito ganha dimensão implícita de competência de colaboração em missões de Proteção Civil, nos termos a designar por via de lei ordinária, mas que, ainda assim, alterou o paradigma até então relativamente difuso. Na verdade, trata-se de uma norma de autorização ao legislador para que, em determinada circunstância, possa atribuir às FA tarefas de interesse público sem que para isso elas se destituam da sua missão primacial, a defesa da nação constitucional. É, se quisermos, a expressão de democratização das FA atribuindo-lhe um sentido de ligação e pertença às necessidades das populações e à sua vivificação. As FA assumem deste modo, a partir de 1997, a dimensão de pilar de segurança, liberdade e soberania.

Não é por mero acaso que hoje é a própria Lei Orgânica de Bases da Organização das FA e a Lei de Defesa Nacional que confirmam e aprofundam este preceito constitucional assim como, e após um longo percurso legislativo e organizacional, elas sejam consideradas Agentes de Proteção Civil pela Lei de Bases da Proteção Civil, tanto quanto assumem, igualmente, relevante contribuição em matéria de segurança interna atribuindo ao chefe de Estado-Maior-General das FA assento no Conselho Superior de Segurança Interna, por decorrência da Lei de Segurança Interna.

Na realidade percebe-se porquê. Não apenas pela evidência do quadro constitucional e legislativo, como também pela dicotómica contemporaneidade das ameaças e dos riscos globais que se manifestam nos planos interno e externo produzindo uma fronteira cada vez mais ténue entre os conceitos tradicionais de Segurança Interna e Externa. Plano conceptual, mas de extrema relevância que, ao contrário do que acontece com os seus diversos homólogos internacionais, o legislador português ainda não se quis verdadeiramente debruçar.

Têm sido vários os exemplos de participação das FA em missões de interesse público. Recordo, a título de exemplo, o Plano Lira que incumbe a participação do Exército em ações de prevenção e deteção de incêndios florestais, o Plano Faunos que, em conjunto com o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, contribui para a reparação da rede viária florestal, para a vigilância armada e espaços florestais ou para a abertura de faixas, o Plano Aluvião que o incumbe de missões de busca e salvamento e apoio logístico em casos de cheias, já para não falar nas missões de salvamento marítimo ou na colaboração direta com os municípios em áreas tão abrangentes como a colocação de sinalética.

Portanto, convém que sejamos claros de uma vez por todas e assumamos a resposta à pergunta social, cada vez mais audível, e que se prende com a incompreensão da não utilização dos meios aéreos pelas FA no combate aos incêndios.

As limitações das FA no combate aos incêndios por meio aéreo, generalizando, não têm nada que ver com o argumento de limitação do quadro constitucional ou legislativo, até aqui recorrentemente utilizado pelo poder político. As suas limitações decorrem de “guerras” e tutelas de poder entre o Ministério da Administração Interna e o Ministério da Defesa Nacional. É um problema político de anos a que faltou coragem para ser dirimido. O lamentável disto tudo é que tenha sido preciso um relatório com quase três anos, com contributos muito válidos das FA, e uma pilha de cadáveres com mais de 100 pessoas para que se começasse a resolver o problema. Caso contrário estaríamos absolutamente na mesma. Disso, não tenhamos dúvidas.

 

Vice-presidente do grupo parlamentar do PSD. Docente universitário

Escreve à segunda-feira