A generalidade dos países democráticos tem uma cultura de assunção de responsabilidade dos governantes pelos falhanços ocorridos nos departamentos que tutelam que passa, naturalmente, pela sua demissão, independentemente da sua responsabilidade pessoal no caso. Há dias, a ministra da Defesa holandesa demitiu-se na sequência de um relatório sobre um acidente ocorrido em 2016 que matou dois soldados num treino militar no Mali.
Em Portugal, pelo contrário, é preocupante a cultura dos governantes de fuga total às suas responsabilidades e da incapacidade de se demitirem, mesmo quando todo o sector que tutelam colapsou. E os primeiros-ministros, a quem caberia exigir responsabilidades aos seus ministros, pactuam antes totalmente com essa situação, dando-lhes cobertura política integral, façam eles o que fizerem. Foi assim que Passos Coelho manteve Paula Teixeira da Cruz no cargo quando se deu o colapso total do sistema de justiça. E, agora, António Costa vai fazer o mesmo com Constança Urbano de Sousa, mesmo depois do arrasador relatório da comissão técnica independente sobre o incêndio de Pedrógão Grande.
O desastre da actuação do governo neste caso é brutalmente agravado pela forma como se pretendeu varrer para debaixo do tapete as responsabilidades do Estado na morte de 64 pessoas. Logo na noite do incêndio, o Presidente, Marcelo Rebelo de Sousa, garantiu que se tinha feito tudo o que se podia fazer e a ministra da Administração Interna recusou–se a apresentar demissão, dizendo entre lágrimas que iria antes resolver os problemas.
A opinião pública exigia, porém, a assunção de responsabilidades. Por isso, devido ao descrédito em que caíram os inquéritos parlamentares – já que os deputados votam sistematicamente de acordo com a posição do partido que lá os pôs –, o parlamento resolveu criar uma comissão técnica independente para fazer um relatório sobre a tragédia. Marcelo promulgou o diploma, mas avisou que se tratava de uma “experiência sem precedente”, receando naturalmente a falta de controlo sobre o conteúdo de um relatório feito por entidades externas. E, de facto, pela primeira vez assistimos à elaboração de um relatório que chama os bois pelos nomes e é arrasador para todo o sector da protecção civil, demonstrando a total incompetência dos nomeados e de quem os nomeou.
Perante isto, o Presidente e o primeiro-ministro – coordenados, como habitualmente – minimizaram a importância do relatório, dizendo que o iriam ler no futuro. Mas quando a imprensa começou a esmiuçar o seu conteúdo, com forte impacto na opinião pública, Marcelo resolveu descolar finalmente do governo, exigindo a assunção por este das suas responsabilidades. Mas António Costa respondeu publicamente a Marcelo que em caso algum iria demitir a sua ministra. António Costa demonstrou assim que gosta muito de Marcelo quando ele faz elogios ao governo, mas que não lhe liga nenhuma se ele se desviar um milímetro desse registo. E Marcelo lá engoliu a resposta, aparecendo depois num seminário a apelar aos políticos que “se empenhem mais no domínio dos cuidados paliativos”, ao mesmo tempo que lamentava que o deixassem a falar sozinho, já que todos no governo estavam, “infelizmente, em dia tão ocupado [que] não puderam conceder uns minutos da sua atenção para estarem neste encontro”. Mas tal é perfeitamente compreensível face à absoluta necessidade de cuidados paliativos que têm os membros do governo, depois da dor aguda e permanente que lhes causou este relatório. Apesar disso, já se sabe que a Administração Interna vai continuar a ser gerida por uma ministra politicamente em estado terminal.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990