Há quem se entretenha a conduzir carros por quilómetros e quilómetros só para ver até quando aguentam depois de acesa a luz da reserva. Não é uma atividade muito produtiva nem tem grande finalidade, mas como a reserva existe, é preciso testá-la. Mesmo arriscando ficar sem combustível num sítio ermo ou danificar o motor, estes testadores de reservas acham-se verdadeiros desbravadores de caminhos desconhecidos, arriscando viver no limite.
Dentro do PSD parece haver quem considere Pedro Santana Lopes como uma reserva moral do partido e goste de testá-lo quando a luz do combustível político social-democrata acende. Mesmo com todos os sinais de perigo, insistem que se deve conduzir o partido com essa reserva.
A metáfora do automóvel na história do PSD não é exclusiva de Santana Lopes. Já tínhamos a de Cavaco Silva e da viagem para fazer a rodagem ao Citroën contada por este, com orgulho, sobre o ano em que assumiu o poder (no congresso de 1985, na Figueira da Foz, câmara que, curiosamente, Santana Lopes haveria de gerir mais tarde) e criou um adjetivo que ninguém sabia que existiria e que marcas iria deixar: o cavaquismo.
Só que mais inverosímil do que a ideia nonchalante do homem de Boliqueime quando chegou à liderança (essa atitude de “eu, na verdade, não queria, porque não sou nada dado a essas coisas do poder, mas as circunstâncias e os outros obrigaram-me”), aplicada à realidade atual, é a de que ainda exista combustível no tanque de Santana Lopes para conduzir o PSD com a sua reserva moral.
Não há dúvida de que o antigo primeiro-ministro tem uma capacidade de emergir do esgotamento de reservas como se viesse do nada, como se estivesse sempre guardado numa área nobre da arrecadação do PSD para qualquer coisa no futuro – curiosamente, ficamos sempre com a sensação de que foi o próprio Santana Lopes a colocar-se lá.
Nos jogos de vídeo existem sempre truques para conseguir vidas intermináveis. No jogo político português, Santana Lopes é o seu equivalente: o permanente regressar depois do game over. E como nos jogos de vídeo, o seu corpo político não exibe cicatrizes post mortem. E o discurso é o de quem começa tudo de novo, com uma característica que agrada a muitos jogadores: a de estar sempre ligado ao jogo de vídeo original – reparem como faz sempre a ligação a Sá Carneiro e à geração fundacional quando se refere ao partido como PPD/PSD.
Curiosamente, o Super Mario Bros, clássico dos jogos de vídeo, foi lançado no mesmo ano do congresso do PSD na Figueira da Foz – como dizia Sérgio Godinho, isto anda tudo ligado: “Quando eu nascer para a semana, ó mana/ quando eu nascer para a semana/ hei de ouvir o teu parecer/ hás de me dizer/ se é cada coisa para seu lado/ ou isto anda tudo ligado.”
No livro de memórias que publicou este ano, o ex-Presidente Jorge Sampaio confessa que “estava farto” de Santana Lopes quando decidiu soltar a “bomba atómica” e dissolver a Assembleia da República em 2004, porque o primeiro-ministro (a quem o chefe do Estado aceitou dar posse depois da fuga de Durão Barroso para a Europa, mesmo contra muitas vozes dentro do país e do PS) “estava a deixar o país à deriva”.
Desse curto período à frente do governo de Portugal, Santana Lopes deixou–nos um legado de metáforas sobre bebés (o governo era “um bebé nascido de um parto difícil e, por isso, a necessitar de incubadora” e os “irmãos mais velhos que, em vez de acarinharem o bebé, lhe dão estaladas e pontapés”) e, acima de tudo, sobre meninos (a sua célebre canção de campanha, esse hino de dor e resiliência chamado “Menino Guerreiro”, que nem sequer era original, mas do brasileiro Gonzaguinha, também cantada por Fagner, onde Santana Lopes surge retratado assim: “É triste ver este homem/ guerreiro menino/ com a barra de seu tempo/ por sobre seus ombros/ eu vejo que ele berra/ eu vejo que ele sangra/ a dor que traz no peito/ pois ama e ama”) – um dos maiores contributos para a cultura portuguesa depois do poema “Ao menino Deus em metáfora de doce” de frei Jerónimo Baía.
O que não nos deixou foi boas memórias. E a maneira como o ex-provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (cargo para o qual foi nomeado por Passos Coelho e renomeado por António Costa, num sinal da sua capacidade de ser uma peça de puzzle que encaixa em todo o lado) se lançou nesta corrida à liderança social-democrata como se fosse o último dique antes da inundação de Rio mostra que o PSD ou é um partido sem memória ou possui uma capacidade extraordinária para formatar o disco do computador e voltar a carregar dados, esperando que essa informação velha em disco novo traga resultados inovadores.
É quase como se no PSD acreditassem noutra canção de Fagner, esta com letra de Florbela Espanca: “No misterioso livro do teu ser/ A mesma história, tantas vezes lida!/ ‘Tudo no mundo é frágil, tudo passa…’”