Numa primeira leitura do relatório do Orçamento do Estado para 2018 é indisfarçável que se adensa o mito de quebra com os tempos de austeridade, constituindo o afamado “virar de página” uma certa ilusão vã e pueril. Apesar de o documento se consubstanciar num caminho de agressividade fiscal para tributos de incidência indireta (que representam cerca de mais 1200 milhões de euros na receita previsível para 2018), ele torna-se, no que à equidade ou sentimento de justiça diz respeito, num instrumento redistributivo de menor eficácia na sua relação com a tributação direta, pois induz, inequivocamente, uma característica regressiva, uma vez que, sem prejuízo de se estabelecerem padrões diferenciados de consumo, a carga tributária decresce conforme aumenta o rendimento dos contribuintes. De outro modo, significa que o consumo tem um peso muito mais significativo para os contribuintes de menores rendimentos, pelo que um agravamento fiscal de incidência indireta constitui, sem grande margem para dúvidas, um esforço maior. Vai ser assim, por exemplo, com o previsível aumento do IUC, do IS ou com o ISV. E esse esforço é, por exclusão de partes, austeritário.
Mas poderia fazer relativo sentido se se verificasse uma contraposição na incidência tributária direta (salários) em que se adensasse a sua progressividade. Não é o caso. A principal virtude da incidência progressiva dos tributos é a relação proporcional que estabelece com a conformação com a capacidade de pagamento dos contribuintes. Ora, na proposta de OE e com as alterações dos escalões de IRS de cinco para sete, com incidência especial nos 2.o e 3.o escalões, pode constituir-se como uma violação do princípio da igualdade fiscal a que subjaz o preceito constitucional da progressividade do imposto sobre o rendimento pessoal. O imposto sobre o rendimento assume particular relevo na “constituição fiscal”, não apenas pelo peso que representa no conjunto das receitas fiscais como, principalmente, enquanto instrumento cultor da igualdade económica dos cidadãos. Não é por mero acaso que a Constituição o destaca dos outros impostos atribuindo-lhe o cunho de “diminuição das desigualdades”. Ora, segundo dados da AT, em 2015, o total de IRS liquidado cabia apenas a 51,7% dos agregados. Desses, a percentagem de imposto sobre o rendimento singular liquidado era 2,59% (1.o escalão), 8,92% (2.o escalão), 29,01% (3.o escalão), 40,5% (4.o escalão) e 18,9% (5.o escalão). Percebe-se, destes dados, que os 4.o e 5.o escalões são responsáveis pela liquidação de grande maioria do IRS, pelo que uma alteração nos 2.o e 3.o escalões que se traduza num pretenso alívio fiscal causa um efeito de pressão ainda maior nos dois escalões seguintes, reservando-lhes apenas o alívio com o fim da sobretaxa – o que, de resto, teria de acontecer, uma vez que se tratava de uma medida temporária.
Outra medida pouco explicável, a não ser no plano meramente ideológico, é a complexificação do regime simplificado aplicável aos prestadores de serviços, vulgo recibos verdes. Em primeiro lugar, porque se trata de um abandono do discurso inflamado da esquerda de combate aos “falsos recibos verdes”; em segundo lugar, porque representa um agravamento da tributação bastante considerável e que rompe com o compromisso de uma certa estabilidade fiscal com cerca de 600 mil contribuintes e que vigora desde 2001. Os argumentos aduzidos são bastante falaciosos e, com exceção da cláusula de salvaguarda para os rendimentos anuais não superiores a 16 mil euros, conduzem a uma penalização previsível para estes contribuintes. Poderão dizer os libertários de esquerda que é um ataque à classe média/alta, aos advogados, consultores e afins. Mas não é. É um ataque a milhares de profissionais liberais que não só se encontram à partida penalizados pela volatilidade da natureza da sua prestação, pelo suporte que fazem sozinhos das suas obrigações com a Segurança Social, como, agora, pela imprevisibilidade devidamente quantificável de um aumento de encargos fiscais que os colocará em situação ainda mais precária.
Uma nota final para quem disputa a liderança do PSD. Já que tanto se fala no “centro” e numa governação ao “centro” onde se autocolocam socialistas, comunistas e extremistas de esquerda, convinha ouvirmos nota sobre estas medidas dos candidatos à liderança do partido com maior representação parlamentar. Estas medidas vêm do neocentro político. O tal que dizem alguns, é certo que teremos de ocupar. Será mesmo assim?
Vice-presidente do grupo parlamentar do PSD. Docente universitário
Escreve à segunda-feira