AdC – o supervisor transversal de ontem


A AdC comporta hoje uma robustez ao nível jurídico, quer no campo da supervisão quer no campo da confirmação, que está muito longe da inicial, em 2008


Quanto analisamos o desempenho da Autoridade da Concorrência (AdC), na sua relação com as congéneres do espaço da EU, poderemos dizer que Portugal se não apresenta, de forma alguma, menor. A autonomia de funcionamento, as atribuições que estão entregues, o desenho orgânico, a implicação legislativa sobre os mercados e a participação no sistema internacional deixam Portugal numa posição aceitável.

A questão não está no que temos, a questão está no que poderíamos ter, tendo em conta os recursos e os poderes do regulador. E é por isso que uma análise crua sobre o tempo de vida da AdC nos diz que Portugal tem todas as condições para ir mais longe, para ser melhor, mais eficiente.

O nascimento da AdC é marcado pela leitura excêntrica do seu líder primeiro. É assim em todos os reguladores, quiçá em todas as iniciais estruturas burocráticas. Decalcada da então Direção-Geral do Comércio e Concorrência, por imposição normativa europeia e pela opção de agencificação através de maior regulação e menor regulamentação, a AdC quis demarcar-se, desde logo, do Ministério da Economia e, de forma geral, do governo, com a sinalização constante ao mercado que se tratava de uma entidade independente, mesmo sob pena de não cooperar em matérias e assuntos triviais, tanto com o poder político como com a restante administração pública.

Entre 2003 e 2008, Abel Mateus de-senvolveu uma AdC policial, com marcas de “reconhecimento” que ainda hoje se comprovam. Terá sido uma vantagem este tipo de atuação? Se olharmos para o resultado das práticas desses anos, medidas em termos do desenvolvimento dos processos contraordenacionais concluídos e pelo seu sucesso, a resposta pode não ser muito positiva. E se observarmos as implicações que se tivessem notado em mercados tão significativos como o financeiro ou das comunicações, não encontramos uma resposta cabal.

Não se conhece nenhuma área económica que tenha sofrido penalização, alteração legislativa sistémica ou prática comercial decorrentes das iniciativas inspetivas ou contraordenacionais por parte da AdC. Ou seja, constatámos outputs mediáticos, mas com inexistentes outcomes.

Abel Mateus foi uma figura importante. Em termos de marcas no panorama económico português só comparável a António Nunes, presidente da ASAE, mesmo que menos exposto, mesmo que mais previdente no avanço mediático. Mas os grandes grupos económicos não deixaram de o considerar nefasto, e os poderes públicos não deixaram de demonstrar incomodidade. Estes lados “maus” poderiam permitir uma larga aprovação pública, pelos consumidores, firmada através da constatação da eficácia na ação da AdC, mas tal também não aconteceu.

O sucesso da prática contraordenacional, jurídica e judicial da AdC esteve muito marcado pelo enquadramento legislativo, que tardou em ser revisto. Só muito tarde, pela mão de Fernando Serrasqueiro, secretário de Estado do Comércio, se abriram portas para a adequação estatutária da concorrência, para um maior sucesso do contencioso. Importa constatar que, por exemplo, o processo relativo ao cartel de fornecimento dos tira-reagentes aos hospitais públicos só teve desfecho em 2016, quase oito anos depois de iniciado.

A AdC comporta hoje uma robustez ao nível jurídico, quer no campo da supervisão quer no campo da confirmação, que está muito longe da inicial, em 2008. Tem inclusive uma ferramenta inexistente noutras áreas em Portugal, que é nem mais nem menos que uma forma encapotada de poder assegurar delações premiadas, através do seu programa de clemência (atualmente previsto no capítulo viii da lei n.o 19/2012, de 8 de maio (artigos 75.o a 82.o).

Mas ela é suficiente para os tempos que vivemos? A resposta é negativa, porque se comprova fraca no entendimento dos revisores internacionais.

Um outro universo de análise que poderemos fazer sobre os primeiros anos da AdC é o que se refere à concretização das medidas impostas aos operadores em função da atividade de concentração ou incorporação que motivou o seu parecer ou aprovação prévios. Um olhar para o setor financeiro, bancário ou segurador poderá comprovar, sem grande investigação, o insucesso dos “remédios” impostos pela AdC. Partindo do comportamento do BCP, o agente que mais se socorreu da AdC para a sua política de crescimento orgânico, poderemos dizer que se constata uma sucessiva driblagem das decisões da AdC (confirmam os processos da CMVM e do BdP), quer através da recuperação de negócios e áreas de atividade segregadas e depois incorporadas, quer através do não cumprimento integral das incumbências.

Está aqui, até hoje, um dos grandes problemas que se colocam à AdC: o da verificação subsequente às decisões que o seu conselho regulador providencia e a sua medição e implicação futuras (o dossiê CMEC’s pode ter sido uma das poucas exceções).

A visão policial, iniciada por Abel Mateus, desenvolvida de forma menos intensa por Manuel Sebastião e Ferreira Gomes, concedeu notícias de abertura de telejornal, mas estas não se transformam em considerações finais sobre os processos. A banca e os combustíveis são dois exemplos de como se mantém a perceção de várias “entradas de leão” completamente inconsequentes, como o ensonamento das máquinas administrativas, a ausência de foco na investigação, a capacidade de escolha dos media certos para se manter vivo o processo ou a leitura efémera do ato de supervisionar, que pode levar ao cansaço público.

Acresce que esta fragilidade é preocupante pelo efeito de contágio. Se a entidade de responsabilidade horizontal, com maior disponibilidade de recursos financeiros e intelectuais, se evidenciou pouco eficaz, como poderiam assim os reguladores setoriais garantir sucesso nas suas áreas?

A AdC vive o terceiro tempo da sua leitura institucional. Não se adivinha a linha de ação clara que deveria imperar. Mas a isso voltaremos. O que interessa avaliar, por agora, é o facto de se ter constatado que Ferreira Gomes alargou o universo de intervenção da AdC, mas não lhe concedeu doutrina definitiva para o sucesso.

Apesar de tudo, Ferreira Gomes trouxe uma certa inflexão na cultura da AdC: reforço e disponibilidade para a cooperação administrativa, sabendo-se da utilidade da informação existente na administração pública face aos ainda diversos procedimentos administrativos exigidos para os operadores económicos. Uma AdC a funcionar como um lobo solitário não só é ineficaz como potencia disrupção em áreas onde é evidentemente necessário trabalho conjunto e sinergia, como é, por exemplo, o caso da cadeia de valor na fileira agroalimentar. Esta nova equipa aparenta optar pela via antiga, rechaçando o trabalho de interligação com outros setores burocráticos.

Manuel Sebastião, anteriormente, manteve-se debaixo do tema dos combustíveis durante toda a sua gestão e não consagrou a aceitação pública do entendimento programático dos serviços da AdC.

A mais recente solicitação remetida pelo governo português aos serviços da UE, para que se pronunciassem sobre a existência de práticas anticoncorrenciais no universo dos combustíveis, mesmo sabendo este que as implicações tributárias nunca ajudaram a uma análise definitiva, profunda e cuidada, demonstra o desconforto dos poderes públicos de hoje, talvez até da generalidade dos portugueses, perante um tema que nunca foi cabalmente esclarecido. A distinção entre a leitura de inexistência de práticas ilegais, assumida pelo regulador, e a opinião, fundada em constatação empírica, de que as práticas são ilegítimas (apesar dos combustíveis low-cost) tem criado um dano à AdC que terá de ser resolvido. Essa resolução não pode ser assumida só pelo governo, deverá ser, em primeiro plano, uma prioridade do regulador. Mas, até hoje, a AdC fechou-se numa definitude que não convence. É este o ponto e é este um primeiro elemento da análise que se seguirá.

Deputado do Partido Socialista