A cada tempo me questiono sobre o que pensaria José Luís Sapateiro se ainda estivesse entre nós. O que nos diria sobre este tempo em vivemos de quase inexistência de “mercado de capitais”, de profunda crise da entidade que deveria ser motor da sua valorização.
Em 1996, nos 25 anos da “lei Sapateiro”, a CMVM promoveu um balanço desse tempo. Raquel Godinho, noticiando o que se havia passado, diz-nos bem do estado a que chegamos. “Há mais de dois anos que o mercado de capitais português não acolhe nenhuma nova empresa. Os últimos têm mesmo sido marcados pela saída de algumas. Mas nem sempre foi assim. Em 1995 chegaram a estar 169 empresas na bolsa nacional.” Por estes dias, o país enreda-se mais uma vez em discussões estéreis sobre o futuro do mercado, não descobrindo soluções que resolvam a autorizada situação em que se encontra a CMVM.
Identificamos três universos de problemas que atacam a comissão de mercados. O primeiro problema é o da consagração da bastardia. A CMVM não se afirmou nestas duas décadas como um ente com uma dimensão própria, com uma cultura e uma doutrina que emergisse do seu espírito de corpo. Antes se revelou numa espécie de mimetismo do Banco de Portugal, uma permanente ambição de ser igual na prática e nas bondosas prebendas. A comissão de mercados não encontrou, na última década, um espaço de afirmação nacional e internacional, submergiu na leitura lavradeira da sua liderança. A exigência de sempre, relativamente à equiparação com o banco central levou a que se instalasse uma apatia nas suas estruturas, que se não mostrasse na relevância das congéneres.
Um olhar para a criação programática dos quadros da CMVM poderá dizer-nos que a inteligência instalada se não viu remunerada com estímulos, com afirmação académica, com intervenção no pensamento europeu. Tudo isto se negou não por culpa dos seus quadros, antes pelo contrário. A CMVM tem dos melhores ativos humanos dos reguladores portugueses, mas a dinâmica interna transformou-os em burocratas e temerosos.
O segundo problema foi o da falta de renovação da sua estrutura apesar das últimas exonerações. O mau tempo que vivemos no país nos últimos anos impediu a CMVM de se adequar às novas realidades da informação e da comunicação, não concedeu espaço de presença para o crédito institucional perante investidores e perante os portugueses. Mas mais, a atitude permanente de reação fez muito pela desconsideração ibérica dos mesmos investidores, confirmou Portugal, ainda mais, na lateralidade das opções dos grandes promotores internacionais.
Para esta irrelevância concorreu, igualmente, a forma como as antigas Bolsas de Valores de Lisboa e Porto foram absorvidas por grandes players internacionais, cujo objetivo, de colocar as empresas nacionais no mercado Europeu, não foi atingido, perdendo-se, por arrasto, o efeito de pequeno investimento. O estímulo da classe média para a poupança é, nos dias de hoje, essencialmente, dirigido a seguros.
O terceiro problema é o que nos leva aos próximos desafios. Quando Gabriela Figueiredo defende um “mercado de capitais mais robusto, profundo e atrativo; ao serviço das necessidades de financiamento alternativo e da capitalização das empresas; que permeie as boas ideias, o investimento responsável e o empreendorismo e que seja capaz de contribuir para o crescimento do emprego e da economia”, consegue reunir a unanimidade dos ouvintes. Porém, ao olharmos para as grandes linhas estratégicas que a sua administração consagra, não encontramos os caminhos para esse futuro, verificamos uma visão escriturária da sua instituição. Uma verdadeira evolução na continuidade.
Os problemas que se atravessam no caminho da CMVM são enormes, carecem de visão e de arrojo. A confiança dos investidores não se faz com uma comissão de mercados que se gasta em requerimentos; a globalização e deslocalização de empresas não se afirma como destino sem qualquer ação que a limite; a crescente utilização de tecnologias deveria obrigar a novos centros de competências que olhassem os campos blockchain e fintech com as precauções e com a amigabilidade que o futuro nos concede. Mas mais, os produtos plain vanilla não mobilizaram, ainda, a comissão de mercados para uma outra atitude, para uma envangelização contra o delito que anda sempre à frente dos pesados sistemas de decisão públicos.
Os processos mais recentes, em especial o do BES, perguntaram-nos sobre o que pode fazer a CMVM pelos investidores. A essa questão não se obteve uma resposta definitiva. A comissão de mercados não avaliou, ainda, o impacto na respeitabilidade da sua ação e não estima o gasto a fazer para retomar o seu papel. Mais, as inovadoras obrigações europeias, com o DMIF II à cabeça, implicam verificação in loco para a venda compliant. Pouco se vê, por agora.
Um retorno ao Auditor Geral do Mercado de Capitais dos anos 1980 pode confirmar-se na inexistência de “gestores de processo”, na ausência de confiança para a decisão micro, na impossibilidade prática de se obter uma resolução em tempo. Um olhar sobre o regulador português, na sua comparação de decisão micro com o espanhol, poderemos estimar o dobro do tempo em despacho sobre licenciamento, ou sobre preços de produtos financeiros complexos, por exemplo. No que se refere ao branqueamento de capitais a comissão de mercados é só correio do Banco de Portugal e das instituições europeias, não se identificando serviço ou agente competente para responder célere às solicitações externas.
Por último uma avaliação sobre a verificação/correio. A CMVM é, ainda hoje, perita em correio registado no universo da supervisão. Acontece com os auditores, com as instituições financeiras e agentes de mercado e até com as polícias. Está aqui, no alívio da consciência e responsabilidade através de carta, o cancro maior da comissão de mercados. A lentidão, que preocupa, da nova administração pode vir a fazer “novos mortos” e o país a descer, ainda mais, na confiança dos investidores. Aqui, por maioria de razão, justificava-se uma forte intervenção SIMPLEX.
Deputado do Partido Socialista