Está o verão português no fim e continua a pergunta insistente pela culpa, sempre a pergunta por ela, e só por ela. De quem foi a culpa, já se apurou a culpa, quanta culpa? Culpa, culpa, culpa. Seja a respeito dos incêndios em geral ou de Pedrógão Grande em particular, seja a respeito de Tancos, seja da árvore da Madeira, e disto e daquilo e daqueloutro. E não é este o primeiro verão assim, nem será o último, nós somos assim. A culpa é como a lepra: alastra e a cura é difícil. O mesmo se passa com a saudade. E sofremos muito de ambas, saudade e culpa. Mas não é importante apurar responsabilidades? Claro que sim, certamente que é, e esse é um passo imprescindível numa sociedade saudável. O que já me parece menos saudável é o clamor pela “culpa instantânea”, ou seja, a vertigem de encontrar muito rapidamente e com muita certeza resposta para a questão de saber de quem é a culpa.
A culpa é, por definição, complexa, esquiva, tem muitas faces, e não raro apresenta uma fisiologia e uma gramática exigentes. Tempo e culpa são conceitos que nem sempre se dão bem, e querer apurar culpas em excesso de velocidade soa bem, mas pode dar sérios estampanços.
E menos saudável ainda me parece a concentração excessiva do discurso e da discussão públicos, informais e formais, na questão da culpa, como se sofrêssemos coletivamente de uma obsessão pela mesma. Não bastava já a culpa que cada português, como qualquer humano, carrega consigo (pelas suas falhas, traições, insuficiências, desilusões, desejos, e tantas coisas que nem sabe bem o que são e porque lhe carregam na culpa), e ainda cada um tem de suportar uma quota-parte do peso de uma exacerbada culpa coletiva. Será ela manifestação de um histórico e reiterado aligeiramento da responsabilidade coletiva, de todos nós, e/ou será uma perfeita pérola freudiana de profunda culpa coletiva? Talvez uma coisa ou outra, ou ambas, ou não; não importa muito.
O que importa mais é que esse excesso de concentração na culpa, para além da carga de sofrimento que pode produzir, retira energia e foco para outras coisas que são tão ou mais importantes que a busca da culpa, coisas viradas para diante e não para o passado. Coisas como saber o que se pode e deve fazer para melhorar e para evitar a repetição de Pedrógão, de Tancos ou da Madeira. Sem tirar importância ao apuramento de responsabilidades, repito, mas também sem exagerar nesse ponto e, sobretudo, sem negligenciar o futuro, a prevenção, a aprendizagem com os erros – afinal, bem mais importantes. Citando Malraux sobre as execuções na Guerra Civil de Espanha e, afinal, sobre o valor da vida, a história é pouca coisa perante a carne viva, ainda viva. E é preservá-la que importa mais e sobretudo. Não nos distraiamos disso, sob pena de se nos aplicar que nem ginjas outra citação, desta feita da personagem George, de “Quem Tem Medo de Virgínia Woolf?”, que às tantas diz que a ordem das coisas é culpa, compromisso e conformismo, e assim anda o mundo e a vida de cada um.
Escreve à sexta-feira.