O art. 37.º da Constituição garante a liberdade de expressão determinando expressamente que “o exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado sob qualquer forma de censura”. Na Constituição do Estado Novo de 1933 é que se estabelecia no seu art. 8º, § 2.º, que “leis especiais regularão o exercício da liberdade de expressão do pensamento, de ensino, de reunião e de associação, devendo, quanto à primeira, impedir preventiva ou repressivamente a perversão da opinião pública na sua função de força social, e salvaguardar a integridade moral dos cidadãos”.
Quando uma Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género recomenda a uma editora privada a retirada de duas publicações para crianças do mercado, dizendo que o faz “por orientação do ministro”, e “disponibilizando-se para colaborar na revisão dos conteúdos das mesmas”, o que se verifica é nada mais nada menos do que o regresso da censura. Na verdade parece que o país resolveu regressar aos coronéis censores do antigamente, para aparecer um ministro ou uma qualquer comissão a decidir o que é que se pode publicar.
Neste caso ocorre a agravante de, conforme demonstrou Ricardo Araújo Pereira na televisão, nada haver nos livros para as crianças que justificasse uma medida dessa natureza. Mas isso é o habitual, uma vez que o que caracteriza sempre os censores é o serem profundamente estúpidos, mandando apreender livros à menor suspeita. No antigo regime contava-se a história de um livreiro que foi visitado pela polícia, que lhe quis apreender os livros ditos “subversivos”. E de facto apreenderam-lhe uma série de livros, mas o livreiro ficou estupefacto quando verificou que entre os livros que levavam se encontravam as obras completas de Racine. E naturalmente protestou contra a medida, dizendo que não via razão nenhuma para lhe levarem os livros de Racine. A resposta do fiscal foi elucidativa: “Racine, Lenine, Estaline, é tudo a mesma corja!”. Sim, o que caracteriza os censores é sempre uma profunda ignorância sobre os livros que censuram.
Um administrador da editora já veio dizer que não tinha memória de uma situação dessas no Portugal democrático. Tem toda a razão. Este país orgulhava-se de defender a liberdade de expressão. Em 1989, na altura em que, pelo mundo inteiro, várias editoras recusavam publicar a obra de Salman Rushdie, “Os versículos satânicos”, devido à fatwa que o Ayatollah Khomeini tinha lançado, a secretaria de Estado da Cultura apoiou moralmente a sua tradução para português, defendendo a nossa Constituição. Nessa altura, Portugal não alinhava em fatwas contra livros.
Face à gravidade disto, ou se demite a Comissão ou se demite o ministro. Coronéis censores já teve este país durante tempo demais.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990