ancos é hoje um local onde se encontram várias unidades militares e que tem feito correr muita tinta nos jornais depois de, no final de junho, ter sido roubado material de guerra daquele que deveria ser um dos locais mais seguros do país. No entanto, há 101 anos, este local já fazia manchetes de jornais – não por maus motivos, mas por ter sido palco de um acontecimento histórico.
‘O Milagre de Tancos’ é o nome dado à mobilização de 20 mil homens para aquela zona, que pertence hoje ao concelho de Vila Nova da Barquinha, no distrito de Santarém, no ano de 1916. O objetivo era preparar o Corpo Expedicionário Português para as batalhas que iriam travar na Flandres, durante a Primeira Guerra Mundial.
«Não tínhamos experiência no que diz respeito a manobras de divisão. Até aqui, não tinha existido necessidade de as utilizar. Desde a guerra civil que Portugal só travava guerras de pacificação, de baixa intensidade. Tancos foi a maior manobra militar até àquele momento», explica o coronel Luís Albuquerque, diretor do Museu Militar de Lisboa.
Chegaram homens de muitas partes do país, como Lisboa, Tomar, Abrantes e Leiria. «Há até uma história curiosa com os homens que vieram da Covilhã. Estes não queriam ir para Tancos porque sabiam que, a seguir à formação, iam para a guerra. De lá, saíram três companhias, a marchar, e no final da viagem duas delas tinham desaparecido. O próprio general Tamagnini [responsável pelo comando da divisão de instrução em Tancos] teve de ir à Covilhã buscá-los», conta o responsável.
O local ficou conhecido como a cidade de ‘Paulona’, por existirem muitas tendas de pau e lona montadas naquela zona.
Mais propaganda do que outra coisa
Ao todo, 20 mil homens estiveram em Tancos – um número superior ao que compõe hoje em dia o Exército português, que conta com cerca de 14 mil homens, como explica o coronel Luís Albuquerque. O responsável pelo Museu Militar defende que o ‘Milagre de Tancos’ funcionou principalmente como uma manobra de propaganda orquestrada pela Primeira República e que, na prática, pouco terá servido para os homens que estiveram na frente de guerra: «Tancos não serviu para nada a não ser como exemplo de mobilização. Para mim, o grande milagre foi a forma como conseguiram juntar vinte mil homens em tão pouco tempo, assim como mantê-los lá».
Em termos táticos, a formação de pouco valeu àqueles homens, já que as técnicas aprofundadas durante aqueles em nada se assemelhavam ao que estava a acontecer no terreno. «Se observarmos as fotografias da altura, vemos cargas de cavalaria, trincheiras largas, tudo diferente do que se fazia em França. E não se trata de não ter existido um estudo prévio do que se fazia no campo de batalha, mas os militares tinham dificuldades em adaptar-se às novas realidades. Faziam a guerra daquela forma porque era a que conheciam».
O mesmo responsável explicou que, todos os dias, vários jornalistas dos principais jornais da altura, como ‘O Século’, apanhavam o comboio em Lisboa e iam até Tancos acompanhar as operações, fazendo reportagens diárias. «Foi uma grande manobra propaganda, tentando mostrar o porquê de irmos para França. Porque enquanto muitas pessoas percebiam porque é que íamos para África [defender as colónias dos alemães], a maioria não percebia por que razão íamos para França. E continuaram sem perceber», refere o coronel.
Do milagre ao fracasso
«[Dar a conhecer o que se fazia em Tancos e a entrada de Portugal na Primeira Guerra Mundial] Era fundamental para a Primeira República. Quando começa a Grande Guerra, Portugal era ainda reconhecido por poucos países (…) Julgo que o envolvimento na guerra é uma tentativa de fazer sobreviver a República, de marcar uma posição», defende o coronel Luís Albuquerque.
No entanto, este foi um esforço que acabou por funcionar ao contrário – o que era anunciado pela Primeira República como um milagre e uma participação importante num cenário europeu, acabou por tornar-se num fator importante para a queda do sistema político vigente em Portugal desde 1910.
Recorde-se que, em 1891, Portugal declarou bancarrota e o país viveu uma grande crise financeira – as dívidas só ficaram pagas no Estado Novo. Por isso, em 1916, a população passava por grandes dificuldades e as contas eram feitas à risca. Para além disso, seis anos antes, Portugal tinha deixado a monarquia e regia-se agora por uma constituição republicana. Muitas mudanças, muitos constrangimentos. Mas isso não impediu os responsáveis governativos de despender grandes quantias na formação de soldados e na guerra.
Como explica o coronel Luís Albuquerque, «era necessário sustentar 20 mil homens, mais os cavalos e as mulas que transportavam os materiais. Para além disso, foram feitos grandes investimentos: nesta altura, Portugal comprou vários camiões, por exemplo». Despesas como esta tiveram um papel crucial na queda da Primeira República e, consequentemente, no fim do liberalismo em Portugal.