Richard Bona. “Eu não tenho nacionalidade, sou um ser humano”

Richard Bona. “Eu não tenho nacionalidade, sou um ser humano”


Tem uma profunda dívida para com as bicicletas, deve-lhes as cordas do primeiro instrumento e ter sido nelas que fugiu aos controlos policiais em Paris, onde aprendeu o jazz.


Tocava na igreja desde os cinco anos de idade, as pessoas vinham de longe para o ver manusear uma espécie de xilofone tradicional. Nasceu nos Camarões, viveu em França e nos Estados Unidos da América. É um dos maiores baixistas de jazz. Já atuou com muitos dos grandes nomes da música. O seu programa é claro: “Através da música, posso retratar a história de um povo sem ter de me cingir a um livro. O piano e a trompete vêm da Europa; a conga e o bongo, de África; as maracas, dos índios. A música ensina-me a explorar e conhecer as minhas raízes”, explica o músico, que atuou em Sines com o seu projeto afro–cubano. Para ele, este convívio com a diferença a que a música obriga é a base da tolerância.

Nasceu nos Camarões, viveu em França e nos Estados Unidos da América, li na Wikipédia que tem nacionalidade portuguesa, pode dizer–se que é um verdadeiro músico do mundo.

Sou uma criança do planeta Terra. Não sou de um local ou de um sítio em particular devido à minha visão do mundo, de todas as músicas e dos seres humanos. Eu não pertenço a um país, sou do grupo humano. Como digo às pessoas: “Não tenho nacionalidade, sou um ser humano.” 

E Portugal foi um acidente? Como tem a nacionalidade portuguesa?

Porque a tenho. E estou orgulhoso disso.

Foi uma grande contratação, para a seleção nacional, ter um músico com a sua qualidade. Nós é que ficamos a ganhar. (risos)

Folgo que toda a gente esteja contente com isso. A razão é muito simples, tenho nacionalidade portuguesa porque fui casado com uma portuguesa.

Numa entrevista sua ao “Le Monde” disse que os blues não podiam ser confundidos com uma só cor da pele pois aquela forma de tocar as notas tinha vários afluentes e raízes pelo planeta inteiro. Podemos considerar que os blues podem ser uma espécie de linguagem comum entendível por grande parte da humanidade?

A música tem a mesma raiz e finalidade em todo o planeta. Não sei onde foi o seu início. Mas trabalho atualmente com músicos afro-cubanos. Hoje são chamados assim, mas o que é a música afro-cubana? Quando recuamos ao passado distante, vemos cantos nacionais em Espanha, vemos o contributo da música originária dos escravos africanos com uma pazada dos escravos chineses e uma pitada da cultura índia. Porque antes que os espanhóis chegassem às Caraíbas [1492], havia gente que lá vivia, ainda que atualmente estejam esquecidos e tenham sido silenciados. A música é uma das mais velhas expressões humanas. Tocamos música desde há muitos, muitos anos. E hoje, quando olhamos até os instrumentos, percebemos isso. Quando olhamos para o piano, ele é europeu; o mesmo se passa com a trompete e outros instrumentos de sopro. Mas quando observamos a conga [tambor semelhante ao atabaque, usado em par ou em trio], o bongô [instrumento musical do tipo membranofone, composto por dois pequenos tambores unidos entre si] ou o batá [tambor horizontal, formado por uma caixa de ressonância (geralmente um cilindro de madeira) coberta com couro nas duas extremidades, sendo um dos lados maior que o outro], são tudo instrumentos africanos. Quando se vê as maracas, elas são de origem indígena, e é isso que faz a riqueza e aquilo a que hoje se chama música afro-cubana. Esta tradição, como aliás todas as tradições musicais, resulta de uma mistura e deve ser tomada como uma herança que é devida à história de muitos povos. Seja em Cuba ou no Nepal, a música é propriedade de toda a humanidade.

Aos cinco anos de idade, quando começou a tocar na igreja de Minta, foi música tradicional que tocou?

Eu cresci como músico tradicional. Mas tive a sorte de viajar para muitos pontos do mundo. Sou um verdadeiro estudante de música e gosto de ouvir a música de todos os povos. Devíamos todos ser estudantes de música, porque ela vem da nossa vida e é a nossa linguagem comum. Através da música é possível chegar aos outros. A música é uma excelente escola, ela ensina-nos a humildade, o respeito e a racionalidade. Querem convencer-me que os números são mais racionais que a música. Eu digo o contrário: a música é muito mais racional que qualquer ciência com números.

Não se pode dizer que a música está antes da racionalidade, que é um pensamento e uma emoção, mesmo antes de haver uma reflexão organizada sobre as coisas?

Veja, se nos dão dez euros a dividir entre nós três [Richard, o entrevistador e a fotógrafa], isso vai ser impossível de dividir.

3,33333…. uma dízima infinita periódica, de facto. 

Será até ao infinito. Mas com a música podemos partilhar tudo, por três, quatro, seis, pelas pessoas que quisermos. A música é justa. Quando abraçamos a música profundamente, nós abraçamos uma forma de pensar e a justeza de espírito. É por isso que tento demonstrar que é uma escola que não termina nunca: quanto mais nós sabemos, menos sabemos. 

Tem uma dívida histórica para com as bicicletas: o seu primeiro instrumento construiu-o com os cabos dos travões de uma bicicleta. Em Paris evitava ser identificado pelos controlos de imigrantes usando a bicicleta nas suas deslocações. 

É verdade. Para não encontrar a polícia. Era na época que era ministro do Interior francês Charles Pasqua, foram tempos duros para os imigrantes. E eu não tinha os papéis de residência, e a única forma de me deslocar na cidade era de bicicleta pois, regra geral, só faziam controlos policiais nos transportes públicos.

Era muito visível o racismo em França nessa época em que lá viveu?

O racismo é uma coisa de que nunca falo. As pessoas perguntam-me: “Por que razão não falas nunca de racismo e não aproveitas a tua situação para o denunciar?” Explico-lhes que nunca falo porque não lhe quero dar importância. As pessoas que são racistas são doentes. Isso é uma patologia, e eu não sou médico. “I don’t wanna, you don’t talk about it.” Eu gosto das pessoas, tenho sempre uma magnífica receção em todos os sítios onde vou, é disso que quero recordar-me, do resto não quero nem falar. 

O que significa o seu reencontro com a música cubana? Já tocou música tradicional em Duala, toca jazz com os grandes músicos deste mundo, porquê este projeto afro-cubano ?

E ainda quero tocar flamenco. (risos) Isto é devido à minha personalidade e é também a minha forma de ser e de conseguir abraçar o mundo através dos seus músicos e das suas diversas tradições musicais. Essa ideia de que, por exemplo, os músicos de flamenco devem ficar no seu canto ignora que a música é só uma e uma só linguagem. Se abrimos a porta, ficamos maravilhados com a imensa beleza que há nesse “exterior”. É também uma forma de exteriorizar qualquer coisa. Mesmo gente que não sabe tocar música sabe que, se abre a porta aos outros, os outros dão-lhe algo de novo e maravilhoso em troca.

O seu avô foi muito importante para a sua formação.

Ele tinha uma sabedoria muito particular. Ensinou-me que era preciso abraçar a diferença. Um dia voltou-se para mim e disse: “Não tenho muita coisa a ensinar-te. Nascemos na mesma aldeia, comemos a mesma comida e cantamos as mesmas canções”, e exemplificou-me com comida: “Quando tu comes em África, lavas a mão e comemos todos no mesmo prato; no Japão, o japonês vai dar-te dois pauzinhos e mostrar como comer; se fores ter com um português, ele vai dar-te talheres (uma faca e um garfo).” E ele explicou-me: como tudo na vida, a música também era isso, permitia abraçar a diferença para abraçar a tolerância. 

O seu avó tinha um conceito muito particular sobre o sucesso, não era?

(Risos) Portei-me mal na igreja. Tinha oito anos e tocava balafon [uma espécie de xilofone primitivo] na igreja. Ele disse-me uma coisa, que eu não percebi na altura, que as pessoas vinham de muito longe, algumas faziam muitos quilómetros para me ver tocar. Eu fiquei chateado e fiz greve. E ele explicou-me que se eu tivesse muito talento, ia subir muito alto e que nessa ascensão ia ultrapassar muita gente. E um dia, quando chegasse ao topo, só me restaria descer. E voltar a passar pelas mesmas pessoas com quem me cruzasse ao subir. Também por isso, tenho de ser humilde, para ser bem tratado quando deixar de ter sucesso. Mas, pequeno, eu não o entendi. Hoje percebo. E trato toda a gente com respeito.