O nosso estilo peculiar de não gostarmos de uma discussão profunda, de não acreditarmos que é sempre vantajoso sustentar opções e decisões, leva-nos, por vezes, ao ridículo. A minha passagem pelo MIBEL, mercado ibérico de eletricidade, fez com que tivesse constatado duas coisas simples. A primeira, sempre lesta, era a da proclamação acéfala do primado da “legislação comunitária”; a segunda, mais lamentável, era a que fazia de nós os tipos mais ocupados do mundo, os menos respeitosos dos nossos homólogos.
Em cinco anos, havendo duas reuniões por ano do Conselho de Reguladores, só foi possível ver o anterior presidente da CMVM uma vez nessas reuniões. O meu amigo Amadeu Ferreira, vice-presidente, era quem nos dava o gozo da sua companhia. Mas do lado espanhol conheci dois presidentes da comissão de mercados, sempre preocupados e sempre intervenientes. Este “profissionalismo” não é coisa que abone em nosso favor.
Mas as negociações técnicas eram, também, suportadas por duas visões incomuns. Portugal guiava-se biblicamente por uma certa interpretação extrapolada das diretivas bruxelenses, os espanhóis guiavam-se, guiam-se, por interesses próprios, mesmo que contrários a Bruxelas.
Perguntar-se-á das razões. Elas são simples. Em Espanha nenhum governo deixou de garantir para si o poder de decisão sobre as ajudas indiretas, a estratégia e a implicação nos consumidores do universo das comunicações, da água, dos transportes ou da energia. Em Portugal, o(s) regulador(es) tem medo do poder político, vive aterrorizado com o facto deste invadir uma sua vedação de competências, mesmo que não seja validada por uma visão completa do poder que a U.E. lhe concede.
Estes universos não são únicos nesta dicotomia. Mas passou a ser mais clara esta disparidade de comportamentos quando em Espanha se concentraram todos os universos da regulação sectorial numa só agência.
A regulação europeia não é uma construção assente em fundações sólidas, autorizadas pelos tratados. O Tratado de Lisboa afirma-se em dois universos – um, o referente à partilha de poderes dos bancos centrais; o outro, o relativo às restantes regulações e supervisões. No primeiro caso verificamos uma fortaleza corporativa entre BCE e autoridades nacionais, no segundo caso não encontramos identificação de comportamento entre os países membros.
A concorrência é o universo primeiro, quase fundador, da regulação e da supervisão. Claro que há ainda as questões que se ligam à defesa do consumidor, à proteção da saúde, à garantia mínima da qualidade de serviço e segurança. Mas, se examinarmos os diversos pacotes jurídicos que regulam hoje os setores mais importantes das economias, não encontramos um caminho que seja entendível, opções que atravessem todo o espaço da união, regras claras que sejam assumidas por todos.
Olhando para o setor das comunicações germânico, ou o setor energético francês, logo descobrimos que a regulação assenta na valorização das grandes companhias, numa concorrência controlada, uma quase aceitação de “cartel” com diversos floreados e reverentes matizes. Acresce que a aplicação das regras de concorrência pela Comissão Europeia (guardiã dos Tratados) é de geometria variável conforme os Estados-Membros, sobretudo nos domínios das comunicações e energia. O aspeto mais evidente está no cumprimento das regras de auxílios de Estado, onde existe uma monitorização cuidada das medidas nacionais mas também uma menor eficácia em medidas de âmbito regional e local, penalizando países com matrizes de decisão mais centralizadas, como é o caso de Portugal.
As agências europeias sectoriais, ainda recentes, não demonstraram uma capacidade de implicação dos estados membros para uma efetiva e saudável regulação. Mais, não consagraram uma formatação na influência política que seja relevante para os diversos públicos.
As diretivas e os regulamentos que implicam os setores, transferidos para os ordenamentos jurídicos nacionais, demonstram uma total desconexão. Entre agências nacionais que se afirmaram no passado mas que estão a perder influência, observando-se como caso mais grave o do Reino Unido antes do Brexit e agora os de Portugal e da Polónia, e outras que, fruto de desequilíbrios de mercado, conseguem aumentar o seu poder regulamentar, há uma imensidão de visões, opções para todos os gostos dependendo de velhas relações.
Acontece que o caminho seguido não concede a afirmação da regulação progressiva, não nos permite verificar um poder real no que se refere à organização dos mercados integrados. Ora, a não existirem esses mercados não devem os pequenos países ser mais papistas que o Papa e abrir as portas de forma a serem uma gota de água no enorme oceano da influência política comunitária.
As revisões periódicas dos patrimónios regulamentares europeus, a cada quatro/cinco anos, dizem também que há uma diferença enorme entre o poder de fogo das grandes empresas e a capacidade de determinar o futuro europeu por parte dos estados membros. Portugal, olhado numa perspetiva dos setores regulados importantes é, nas comunicações, a influência da Portugal Telecom e, nas energias, a capacidade de convencimento da EDP. Por onde andam as administrações públicas e as representações diplomáticas? Andam, apesar de excelentes profissionais que ainda existem em diversos ministérios, pelo jogo da vírgula perante um texto previamente negociado pelos poderes fáticos.
Há país para além de tudo isto? Pode haver! Mas a existir ele só pode ser comandado, digo bem – comandado – de forma diferente na frente externa. E isso é um problema para um Ministério dos Negócios Estrangeiros que se revela, na frente comunitária, enfraquecido e, por vezes, malvado.
Deputado do Partido Socialista