Conheça a misteriosa história de La Mambanegra, que encantou no Festival das Músicas do Mundo de Sines. No último álbum de um dos mais importantes grupos da Colômbia, “El Callegüeso y su Mala Maña”, conta-se a história do bisavô de Vélez, um herói do bairro operário da cidade de Cáli. A tetravó de Vélez foi escrava, o seu neto, e bisavô de Jacob Velez, tinha o nome de Tomás Rentería, e tentou entrar com amigos num concerto do famoso Trio Matamoros, que viviam em Nova Iorque e estavam de digressão em Cáli.
Foram barrados pelos seguranças. Horas mais tarde, quando se enfrascavam num bar, por frustração, chegaram os músicos de surpresa. Passaram todos a noite a tocar e a beber, enquanto se bailava no bar. Um dos músicos do Matamoros, Ciro, convenceu Tomás de que tinha de ir para Nova Iorque conseguir fortuna e fama. No dia seguinte, ele pegou nas suas poucas coisas e lançou-se ao caminho. Perto do Panamá, apanhou um barco para Cuba. Quando estava perto de Havana, os marinheiros roubaram-lhe os parcos haveres, bateram-lhe e atiraram-no, inconsciente, ao mar. Foi salvo por um pescador. Tinha perdido a memória. Quando acordou, o seu salvador disse-lhe: “Esperava-te, el Callegüeso.”
O homem sem memória viveu sete anos em Havana, onde conheceu o músico Chano Pozo, célebre percussionista cubano, um dos gigantes do jazz afro-cubano, que morreu em Nova Iorque em 1948. Chano Pozo ofereceu-lhe uma flauta africana de ébano, “La Mambanegra”, que tinha o poder de devolver a memória a quem a tocasse. Quando pergunto a Jacobo Vélez sobre a coincidência de a flauta ter nome de serpente venenosa, tal como o réptil que convenceu Adão e Eva a comerem o fruto da árvore do conhecimento, no Paraíso, Vélez ri-se e diz-me: “Não há coincidências.” Quando Tomás recuperou a memória, quis agradecer a Chano, mas não conseguiu. Disseram-lhe que ele tinha ido para Nova Iorque para tocar com Dizzie Gillespie. Tomás resolveu ir atrás dele para Nova Iorque, onde fundou uma orquestra de salsa nos anos 40. O rasto de Tomás, El Callegüeso, começa a esfumar-se. Prometeu à namorada ir com ela para a Nigéria, para poder visitar a terra dos seus antepassados. Mas nunca mais apareceu.
Em 2012, um grupo que investigava a vida de El Callegüeso chegou a uma pista estranha. Um taxista afirmava haver um homem velho, que tocava flauta, numa casa do bairro operário de Cáli. “É um senhor sempre vestido de branco que anda sempre com uma flauta na mão.” Foram ter com ele, que confirmou que era do sangue de Jacobo. Ofereceu-lhes a partitura das nove músicas que compõem o álbum. Quando o quiseram visitar mais uma vez, só restava uma mulher que lhes disse que ele tinha ido embora, “para a Nigéria, procurar a tumba de uma tal Nina”.
É possível fazer realismo mágico com a música?
Com a música? O que se passa é que o realismo mágico é um recurso literário. Levá-lo à música, não sei o que seria. Nós temos um contexto do ponto de vista editorial. A história da banda está suportada com história. E essa narrativa tem matizes de realidade e de ficção, mas na hora de construir a música entram outros conceitos. E este recurso literário é mais aplicado nas letras mas, de certo modo, pode dizer-se que contagia tudo.
De alguma forma, a história do seu bisavô e a possibilidade de aquele misterioso homem de branco, com mais de 100 anos, ser ele, podem expressar de que é feita a música dos La Mambanegra. A viagem entre Colômbia, Havana, Nova Iorque e a Nigéria também é a miscigenação daquilo que é tocado.
Digamos que há uma característica nisso que tem mais que ver com o que somos como latino-americanos e até como somos como humanos. Todos somos uma só raça e o nosso encanto está nisso. Somos um universo e, cada vez que nos encontramos, que se encontram esses universos, eles chocam-se e passam-se coisas. A história que canta a música de La Mambanegra é essa: como somos de diferentes formas, numa canção podem estar elementos de música da América Latina misturados com elementos de música da Jamaica e apimentados com soul e estilo James Brown. Temos aqui vários lugares no mundo numa só canção. Há uma raiz aqui que é muito importante: África. Mãe África, como eu lhe chamo.
Qual é a importância de África?O ritmo?
Mais do que isso: a intenção de contar uma história. É sempre o que eu procuro. Seja abstrata ou entendível. A música que vem de África, que se transforma na América ou na Europa, tem um conteúdo primário que tem que ver com o coração, o esqueleto e o tambor. É emocional, visceral, intuitiva. É sexual e visceral. Tem paixão. E isso atrai-me.
Isso não é exclusivo da música africana. Na Europa, quando apareceu a valsa, havia gente que dizia que as meninas de boas famílias não a deviam dançar porque era uma música obscena e sexual. (risos) Na Colômbia viveu-se desde o final dos anos 40, com o assassinato de Gaitán [candidato liberal morto pelos conservadores] e o Bogotazo [revolta popular depois da morte do político progressista], aquilo a que se chamou “A Violência”. Desde essa época que andam em guerra. Isso está a mudar?
Vamos pelo princípio. A história da humanidade está cheia de violência. A diferença na América Latina é que ela é hoje o que é depois da invasão de uma potência militar com ideias religiosas, políticas e económicas. Foi uma imposição pela força.
Fala da chegada dos espanhóis?
Sim. As primeiras pessoas que chegam são pessoas difíceis, são militares e delinquentes. As pessoas que chegam trazem consigo uma energia negativa e difícil, o que vai potenciar ainda mais um choque cultural. Isso foi um processo de uma enorme violência. Aquilo que vivemos na América Latina e na Colômbia é a radiação daquele processo que se detonou em 1492.
Mas a América Latina de hoje não é anterior a esse processo. Olhando para si, tem certamente ascendência europeia, como outras. Toda a gente é uma mistura. Não sou colombiano, mas acho que esta sociedade viveu níveis de violência muito superiores aos dos países vizinhos.
Porque houve uma casta que se impôs e começou a governar. Essa casta era sobretudo de sangue europeu e excluía os indígenas e os negros. E isso é uma luta de classes: uma hegemonia branca classista e racista durante séculos, sobre a maioria da população. Isso gera violência porque é, em si mesmo, um processo de uma enorme violência. Não há equidade. É uma minoria branca que é corrupta. Se isso não se transforma, não vai ser possível que haja paz. É a minha opinião.
A música, por resultar de uma mistura de culturas, pode ter um papel numa transformação e pacificação social?
A música transforma com base no amor. No mundo atual, isso não é o mais importante. As regras do jogo privilegiam o medo e que a economia funcione. A música não funciona do ponto de vista de um detonador para a mudança. A música está inclusive dentro desta estrutura de dominação: a canção que mais se escuta , “Despacito”, ouve-se porque tem muitos milhões de dólares por trás. Não digo que seja uma má canção, mas toda a gente sabe que ela passa porque há um enorme investimento. Não é possível transformar as coisas apenas a partir de uma busca estética. É muito difícil que estas músicas com outras intenções consigam competir com estes músculos financeiros gigantes.
Não é totalmente impossível, tem o caso da canção “Latinoamérica”, dos Calle 13. É uma canção política que vendeu milhões e ganhou uma série de prémios.
Essa é uma exceção, como Manu Chao é outra. Não são a regra no mundo da música.
De La Mojarra Eléctrica, o seu anterior projeto, para La Mambanegra, o que mudou?
Na Mojarra Eléctrica, o que eu trabalhava era a música tradicional afro-colombiana, a do Pacífico sul e do Pacífico norte até ao Atlântico. Trabalhava com raízes muito ancestrais, apesar de também trabalhar elementos mais modernos como o reggae e o hip hop. Agora, no centro de tudo está a salsa nova-iorquina nos anos 70.
Daí a história do seu bisavô que fundou uma orquestra de salsa nos anos 40 em Nova Iorque?
Sim, mas também é devido a outra referência concreta. Há muitos anos, na feira que havia em Cáli, convidaram dois músicos: Richie Ray e Bobby Cruz. Houve sempre um cocktail muito forte entre a cidade e a música latina. Mas eles tiveram muita influência em trazer a salsa a Cáli. E esse amor continua nos dias de hoje. Essa é a cidade onde eu cresci. Alimentava-me de salsa. Quando andava de autocarro, até ao colégio, o que ouvia era Hector Lavoe, Richie Ray e Bobby Cruz, Ruben Blades. Isto faz parte da banda sonora da minha vida. E quando tenho de contar uma história, o que me surge e flui é o que eu sou.
Volto a insistir, para além do encantamento, qual é a importância do seu bisavô e das lendas do bairro operário de Cáli?
Essa história tem que ver com a realidade e a ficção. A história, escrevem-na os vencedores. Nós, como latino americanos, temos uma luta complexa: eu posso rastrear as minhas raízes europeias. Mas a minha tetravó, que vinha da Nigéria, chamava-se Belermina Rentería. Belermina não é um nome africano e Rentería provinha do proprietário de escravos que a tinha, era o nome que o proprietário de escravos lhe deu. Assim, eu não posso rastrear as minhas origens africanas ou indígenas. O que significa que a história é escrita pelos vencedores, mas eu também posso escrever um pedaço da minha história para ser feliz. A história do meu bisavô sustenta-me e faz-me sentir que estou com as minhas outras raízes. Para além disso, dentro dessa história há uma outra história muito bonita: é que há uma flauta transversal negra e africana, chamada La Mambanegra, que permite devolver a memória às pessoas que a tocam. Significa que o Callegüeso perde a memória e, quanto toca a flauta, pode continuar o seu caminho, porque já recuperou a memória. Uma das coisas que transmito de maneira inconsciente é a importância da memória e de sabermos quem somos.
É muito interessante que esta flauta tenha o nome de uma serpente venenosa, tal qual aquela que convenceu, no Paraíso, Adão e Eva a comerem o fruto da árvore do conhecimento.
Exatamente. Não há coincidências. Atrás disso, há uma data de coisas escondidas.
Qual a implicação da história na música?
Dentro da história há um caminho. Ela indica alguns dos pontos-chave da música latina. Isso permite que transmitamos isso, essa memória, de uma forma divertida, com ficção e realidade – o que permite que os jovens possam conhecer esta história de uma forma mais apelativa. Como chegou o Trio Matamoros, em 1933, a Cáli? Coloca-se uma história real, de uma forma interessante, que permita curar o esquecimento. É apenas um grão de areia, mas é alguma coisa.