A impossível regulação global


Em “Incorporated” podemos constatar a transferência total da soberania de territórios imensos para grupos económicos detentores de todos os poderes, incluindo justiça e segurança


Como pode um país como Portugal intervir, no universo das suas regulação e supervisão, analisando os comportamentos de mercado, defesa do consumidor e de proteção de dados de empresas globais como são os casos do Facebook ou da Google? A resposta é simples: não pode!

Os mais recentes processos que a União Europeia intentou contra a Apple, a Google ou o Facebook não resultaram na correção das políticas das empresas, não limitaram a supremacia, até sobranceria, com que estas (e muitas outras) manobram os mercados.

As multinacionais, que sempre estiveram na base não militar do conceito estratégico dos Estados Unidos da América, assentavam em marcas e em sistemas de parceria inseridos e dependentes dos patrimónios jurídicos de cada um dos países. A Coca-Cola ou a McDonald’s sempre contratualizaram com base na remuneração da marca, do conceito e das regras de serviço, mas a operação sempre foi local.

Acontece que as novas multinacionais, não só as que se expandem no digital, mas também as que se sustentam no digital para promoverem o comércio físico, já não carecem de cumprir os regimes nacionais para gerirem triliões de dólares a cada exercício anual, para determinarem consumos e para eliminarem a tributação.

Esta realidade, que nega o poder dos Estados, impõe uma governação mundial que não se fique pelas consagrações úteis das Nações Unidas. Mas o lento processo que se visualiza no controlo dos grandes grupos económicos internacionais não tem preocupado sobremaneira o universo das potências.

Ben Affleck e Matt Damon são os criadores da série “Incorporated”, que muitos políticos do mundo ocidental, partidários da desregulação e do desaparecimento do Estado, deveriam ver. Em “Incorporated” podemos constatar a transferência total da soberania de territórios imensos para grupos económicos detentores de todos os poderes, incluindo os mais primários, como a justiça e a segurança.

Dir-se-á que se trata de uma visão “inutópica” do futuro lá situado em 2074, mas quem assim desgradua o problema não atenta no que por agora se consagra. Há já hoje zonas ricas e zonas pobres segregadas onde a lei se aplica de forma diferente; há já hoje uma impenetrabilidade social que faz com que cresçam os fundamentalismos.

Se atentarmos bem no peso internacional da Monsanto, grupo económico universal que determina as políticas agrícolas e o abastecimento alimentar mundial, não estamos muito longe de consagrar uma existência próxima da biotecnológica Spiga que “Incorporated” inventou. Em boa verdade, constata-se, pelos tentáculos da Monsanto, a influência na decisão política, verifica-se o controlo comunicacional, impõe–se a mercancia da investigação, eliminam-se os estudos sobre os impactos da agricultura intensiva e mineira. Tudo sem regulação – mais, tudo na sombra e no silêncio de cada opinião pública.

A regulação económica, olhada em perspetiva, tinha como elemento de análise as atividades controladas dentro de uma determinada zona económica, aparecia como essencial para defender os interesses gerais e afastar os interesses políticos momentâneos. Era uma base ideológica que se afirmava prévia aos arranjos governativos circunstanciais.

Acontece que as obrigações que os Estados assumem e a origem dos que, na esmagadora maioria dos cargos públicos internacionais, se afirmam nas grandes decisões quase transformaram a regulação e a supervisão em máscaras sem valor.

O Goldman Sachs, nascido nos finais do século xix, evoluiu da banca para o tráfico da decisão pública. Claro que ainda ganham dinheiro, muito, mas o que ganham é em influência que determina, cada vez mais, modelos de governação elitizados e cleptómanos. Quando um ex-presidente da Comissão Europeia se planta na presidência não executiva deste grupo “financeiro”, o que se está a consagrar é a captura final da política e da economia livres pelos interesses de uns poucos.

A crise financeira de 2007 e 2008 deu bem ideia de como se resolveu o problema. Há umas centenas de golden boys of the economy que afundaram economias, roubaram aforradores, implodiram empresas. Uma meia dúzia de imprudentes, da qual se destacou Bernard Madoff, foram eleitos como figuras de um tempo que importava eliminar. Mas quando analisamos a pena imposta a Raj Rajaratnam, 11 anos de prisão remíveis, perguntamos se a justiça entendeu bem o que se passou. Raj organizou a maior rede de informadores algum dia vista que, retirando dados confidenciais das empresas, alimentavam o seu fundo. E o mais inacreditável é que essas informações eram confirmadas, de forma criminosa, pela agência Moody’s.

A pergunta que hoje se faz, nesta leitura crua sobre a realidade, é a que se prende com o caminho que os países devem fazer para não se limitarem na sua autonomia. Porém, a resposta não é bondosa – os países quase deixaram de ter influência no novo mundo do comércio internacional. E não se antevê qualquer solução que elimine a razão que os movimentos antiglobalização indicam sobre quem controla os saprófagos da economia transnacional. É por isso que a economia social, mínimos garantidos entre democratas cristãos e sociais-democratas, se esvaiu. E quem não se convencer disso, é melhor mudar de canal…

Deputado do Partido Socialista