Da clareza de havermos sido putos – por um dia, umas férias, ou, mais raramente, alguns anos – não se recupera inteiramente. Custa despir as marcas que ficam daquela pré-história ingénua, empolgada, rude e instintiva, de onde nos chega, como de uma cozinha nos fundos, o cheiro infeccioso que, entre todas as brisas que beliscam o ar desta terra, menos se confunde com o da naftalina. O que nos devolve às épicas caçadas de então. Este encantador refogado que lança tão longe o pau ao apetite, faz dele uma besta traga-mundos.
Alfred Jarry não recuperou nunca dos tempos de escola. Ano após ano, os dotes que lhe eram naturais tinham o reconhecimento dos professores, e houve prémios, todo o tipo de distinções, antes que a sua diferença já não pudesse andar em grupo, e tivesse já a desenvoltura que o viu trocar os sucessos por uma colecção de fracassos, a partir da entrada na École Normal Supérieur e na Sorbonne. No prefácio a “Messalina” (Sistema Solar, 2016), a mais recente das suas obras mudadas para um português feito sombra ilustre do original, Aníbal Fernandes notava como o jovem soube sobrepor às falhas académicas “ a memória de uma brilhantíssima ‘diferença’, um obsessivo gosto por palavras raras e inventadas, por excentricidades capazes de o desbanalizar em todas as triviais situações do quotidiano”. E o mais distinto dos nossos praticantes da tradução enquanto arte da cumplicidade adianta que o culto desta ‘diferença’ era em Jarry um programa: “A indisciplina cega de todos os instantes faz a principal força do homem livre”, escreveu ele num dos seus textos jornalísticos.
A peça Ubu Rei – “a que lhe garantiu a mais persistente notoriedade póstuma” – foi um portentoso acto de galhofa. Jarry à cabeça de uma dessas matilhas aleivosas de liceu, com o curso livre da mais sã e inspirada maldade, fúria armada dos dentes de muitas bocas, uma peça assombrada de valentes risadas. O alvo era o professor de física, uma dessas alimárias que sempre foram essenciais a instigar cedinho os putos à revolta contra a estupidez do ser boçal que estava ali para lhes dar lições. Aníbal Fernandes fala numa máquina de guerra em cinco actos. E António Pires, encenador da versão que se estreia hoje no Museu Arqueológico do Carmo, refere como a actualidade desta peça se robusteceu com a subida de Donald Trump ao poder. “Nem foi a chegada à Casa Branca”, corrige, “foi mais é aqueles disparates no Twitter. Então não sou rei, não sou presidente!” António Pires, que é também um dos directores do Teatro do Bairro, nota que “o disparate daquilo tudo é o ridículo agarrado ao poder”. E vê-nos a todos perante figuras de autoridade que não apenas Trump, mas outros aprendizes de ditadores espalhados pelos quatro cantos de um planeta em versão apequenada, de frente para o que fica cada vez mais difícil de distinguir de “uma birra de miúdo”, em que a vergonha caiu em desuso e “tudo é feito à descarada”.
A peça, que estará até dia 20 nas ruínas do convento do Carmo, tem o aparato absurdo e inventivo da artilharia própria da infância. Trata-se de um triunfo chistoso, com a noite caída naquele cenário austero que sobe para uma nota amalucada, com os 15 actores a darem a sensação de que se divertem à brava, e o público escangalha-se. Tudo corta, tudo se engalfinha, tudo serve para desferir golpes, num baile de remoques de que ninguém sai ileso. O espaço cénico tem uma profundidade bastante inusual, e a encenação não desperdiça. A peça parece menos uma elocubração teatral, bem arrumada e amarrada, do que uma elaboradíssima sátira desenvolvida em muitas horas de recreio entre as aulas. Nesse sentido, o Teatro do Bairro faz muito por elucidar esse aspecto da arte que cruza com a sátira que nasce trocada entre bilhetes na sala de aula, as doces infâmias ditas nos corredores, suficientemente alto para acossar, suficientemente baixo para se espalharem difusamente, como rumores, nesse espírito crítico desenvolvido nessas cooperativas de ofensa à autoridade.
A versão que serviu de base de trabalho é a de Luís de Lima e Alexandre O’Neill, e o encenador diz que foi Luísa Costa Gomes, colaboradora do Teatro do Bairro – e que já traduziu as várias peças de Jarry para uma outra representação levada à cena no São João –, que me recomendou esta versão. Fê-lo, segundo Pires, “depois de eu lhe ter dito que, achando isto um texto tão adolescente, tão bruto, tão primário, queria uma representação muito aberta, sem rodriguinhos, uma coisa crua”. A acção desenrola-se na Polónia, que foi a maneira de Jarry a situar “em Parte Nenhuma”. E fazendo-se valer de outras indicações do poeta francês que os surrealistas viriam depois a reclamar com um precursor do seu movimento, Pires gostou da ideia de uma peça que acontece na Eternidade, em que se pode escutar o disparo de “revólveres no ano mil e tantos, vereis portas abrirem-se para planícies cobertas de neve sob um céu azul, e fenderem-se chaminés enfeitadas com pêndulos para servirem de portas, e palmeiras verdejarem aos pés das camas, para darem de comer a pequenos elefantes encarrapitados em prateleiras”… Isto são indicações de Jarry. O encenador, tão experimentado no quid pro quo com poetas, na interpretação de sonhos e no tráfico a partir das liberdades mais fantasistas, aproveitou-se da noção de “um mundo virado de cabeça para baixo”. “Comecei a pensar num espelho d’água.”, conta. “Inicialmente pensei em ter petróleo, quis que andassem dentro de petróleo, mas depois não havia dinheiro para o espelho de petróleo… Teria de fazer fatos novos todos os dias. Seria uma sujidade de todo o tamanho, e isto num monumento destes… (Risos). Se chegarem ali, está lá o reflexo todo do céu, e do convento.”
Quanto ao privilégio de que o Teatro tem gozado ao abrigo de um protocolo com o Museu Arqueológico do Carmo, e que lhe permite levar à cena uma peça por ano, no verão, o encenador reconhece toda a diferença que faz. “É a terceira vez que encenamos uma peça aqui. Fiz aqui o “Romancero Gitano” [García Lorca], e, no ano passado, estivemos aqui com o “Cimbelino”, do Shakespeare, que correu muito bem, esteve sempre cheio. Gosto disto, de fazer teatro ao ar livre. Estamos aqui num sítio de uma grande beleza. Também serve para o mostrar às pessoas – o público tem a oportunidade de vir aqui à noite, e é outra coisa.” Depois de, logo no início da peça, um gato ter atravessado a cena junto aos camarins que a ladeiam, e que Pires diz que serve para aludir ao teatro de marionetas – a que Jarry se dedicou –, enquanto o encenador falava com os jornalistas, passavam algumas gaivotas. “Passam gatos, gaivotas, a lua… Hoje não anda aí, mas ontem a lua estava ali dentro de água. Eu olhei: “Olha ali a lua!” (Risos) Tem um pouco a ver com essa coisa meio surrealista, ter a lua ali, metida no tanque.”
Pires nota que, como aconteceu nos dois anos anteriores, no final do espectáculo, desmonta-se a cenografia mas alguma coisa fica para trás. Neste caso, o espelho d’água, onde durante a peça as figuras de poder chapinham, pisam o céu, e fazem as suas birras, proferem disparates que vinculam a vida dos outros. “O espelho d’água fica cá durante o dia. Quase como se fosse uma instalação. Já no ano passado deixámos sempre alguns elementos. Quando fiz o “Romancero Gitano” tínhamos um candelabro suspenso aqui no ar, e lá ao fundo uma fogueira e umas cadeiras muito altas, do João Mendes Ribeiro. Estas coisas resultam quase como instalação do museu. Quando cheguei às seis da tarde, estavam os turistas a fotografar-se no espelho d’água. (Risos).”
Assim, os elementos juntam-se nesta carnavalesca produção que ganha ainda força por via de outro protocolo, desta vez com a Act, sendo esta a peça em que os finalistas do curso se vêm misturados com actores profissionais. Jarry ficaria orgulhoso. O seu Ubu é essa grande besta que a todos já nos maçou, triturou e de quem foi vital urdir uma impiedosa e ridente vingança. O professor que todos tivemos, o pulha do patrão que temos, o funcionário embriagado com um nico, um naco ou um excesso de poder. O Rei já não vai apenas nu, os pequenos mestres já não são apenas uns estafermos emproados. Chegámos a um tempo em que são as coisas que mais nos fazem rir aquelas que mais nos deviam assustar. E nesse aspecto, Jarry está mais actual do que nunca, porque o terror, como ele o viu, tinha pinta de palhaço.