A mistura é estranha. Ressoa hipnótica quando se escuta, no Centro de Artes de Sines, “Fome que és sede/ Fundo feito farto a valar/ Nada enche que preencha/ Esta ânsia de tomar”. Era a segunda vez que ouvia Medeiros/Lucas. A primeira vez, em Lisboa, na Casa do Alentejo, no Mexefest. O contraste entre a voz profunda de Medeiros e um quase rock alternativo foi um choque. Desta vez, tudo era mais intimista, o som ressoava dissonante e contemporâneo, mas a voz continuava a hipnotizar. Antes da conversa avisaram-me que só Lucas costumava falar aos jornalistas, e que, das poucas vezes que Medeiros respondeu numa entrevista, disseram-lhe que se parecia com Caetano Veloso, e ele anuiu: “Somos filhos da mesma escrava.” Medeiros/Lucas abriram a semana do Festival das Músicas do Mundo 2017, na passagem de Porto Covo para Sines. Fica aqui a conversa para identificar o ovni.
Li num artigo do “Público” que pediram, em anúncio, um escritor, como as bandas pediam no passado um baterista de rock. As palavras têm muita importância no vosso projeto?
Lucas – Sim. Mas deixa-me esclarecer, aquilo não foi exatamente um anúncio no jornal. Foi diretamente à pessoa, mas o título do email era “músicos procuram escritor”, enviado ao João Pedro Porto. Eu tinha acabado de ler um livro dele, “Porta Azul para Macau”, e tinha ficado impressionado. Ainda por cima, ele era açoriano, o mundo é pequeno, e obtive o email dele, e decidi fazer esse título da mensagem, com uma espécie de piada privada. Se a pessoa tivesse sentido de humor, percebia; se não tivesse sentido de humor e não percebesse, a coisa caía em saco roto. E estava feita a seleção. E ele, apesar de ter sentido de humor, confessou-me que olhou para o título do email e, antes de abrir, pensou: “Vai para o lixo ou não vai para o lixo?” (risos) Finalmente, abriu o email e gostou da nossa proposta. É verdade que as palavras são importantes para nós. Metade do primeiro disco eram textos roubados que o Carlos [Medeiros] já cantava. Depois, nós os dois andámos à procura de outros textos para roubar. Como dizia Picasso: “Os bons roubam e os maus copiam.” (risos).
Sendo a ilha pequena, como é que vocês os dois se encontraram?
Lucas – As ilhas são pequenas mas são nove, e há bastante mar entre elas. O Carlos já anda nesta vida há muito tempo, e eu há menos tempo. Conheci-o num concerto na ilha Terceira. Era um concerto com vários artistas açorianos: estava o Carlos, o Luís Bettencourt e o Zeca Medeiros. Eu já conhecia os outros dois, mas ainda não tinha ouvido o Carlos. Lembro-me de pensar: “Aquele Carlos Medeiros será um primo do Zeca Medeiros?”
Toda a gente pensa que é primo do Zeca Medeiros?
Medeiros – Quase toda a gente. É uma chatice. (risos)
Lucas – Lembro-me, chegou à parte dele, de o ouvir cantar, e pensei: “Nunca ouvi nada assim.” Andei a semana toda à procura de coisas sobre ele. Na altura estava o Carlos Guerreiro a fazer um workshop de produção de instrumentos em que toda a gente conhecia o Carlos, e disse-me: “Não conheces ‘O Cantar Na M’Incomoda’?”, Aquilo está esgotadíssimo, mas alguém me arranjou a versão MP3 do disco. E eu aí começo a fazer uma versão, “Experimentar Na M’Incomoda”.
A vossa primeira colaboração é uma espécie de diálogo epistolar via música?
Lucas – Sim, eu coloquei o disco dele na net, achei que tinha de ser ouvido. E, a certa altura, eu participava numa associação cultural no Faial e arranjei forma de convidar o Carlos para cantar “O Cantar Na M’Incomoda” no Faial. Ele aceitou mas, quando apareceu, disse-me: ”Eu nunca cantei este disco.” (risos) E nós desenrascámos uma banda.
A minha experiência nos Açores é muito particular, fui lá em reportagem sobre a “Justiça da Noite” [milícia de comerciantes da Terceira que agrediam “criminosos”] e os deportados [pessoas que eram expulsas dos EUA para as ilhas, por terem praticado crimes], e fiquei com a ideia que há um peso muito grande nas ilhas por serem um espaço fechado e cercado por mar.
Medeiros – Há isso. Com aquela névoa e humidade. Eu sofri. É opressivo. Se se tiver uma vontade de isolamento. Mas não é só isso. Também existem lados positivos.
Lucas – Até o ar é pesado.
A vossa música tem alguma coisa disso? Se estivessem na Califórnia estavam a soar como os Beach Boys?
Lucas – Se calhar. Mas há influência do local. Para já, os Açores sempre foram uma terra de palavras, onde há muitos escritores. E às vezes é depressiva, com alguns deles a matarem-se.
Medeiros – Não é só o local que contribui para isso, são também as características da poesia e da introspeção de ser poeta.
Por facilidade, há rótulos e prateleiras de estantes para percebermos as coisas. Vocês em que prateleira acham que ficavam bem?
Lucas – Acho que é complicado de responder. Talvez numa prateleira dos que são difíceis de colocar numa. Pode ser pretensioso dizer, mas eu gostava que o nosso trabalho estivesse na prateleira perto do Zeca Afonso, pelo menos naquela onde estão trabalhos como “As Minhas Tamanquinhas”.
Mas estão um bocadinho fora de época. O Zeca Afonso surge imerso num movimento musical que tem expressão em vários países. Como é ser Zeca Afonso hoje?
Lucas – Revemo-nos nas preocupações sociais e políticas, mas também nas preocupações musicais e formais de ir mais longe nesse domínio. É música portuguesa. São canções que começam pelo peso das palavras e, a partir daí, surgem as músicas.
A vossa música não é imediata, precisa de alguma maturação e trabalho para a escutar.
Lucas – Para mal dos nossos pecados (risos). Não é fácil. Principalmente o primeiro disco era bastante pesado. Mas não é intencional. Não faço questão de ser difícil. É aquilo que eu faço e aquilo que eu ouço. O Nick Cave é pesado? Ele consegue ser bastante negro.
Não vos estou a ver cantar a “Nazi Girlfriend” (risos). Para além do amor e da morte, pretendem cantar outras coisas?
Medeiros – Temos feito um esforço.
Lucas – Temos também um lado político. Mas não panfletário, como aquilo que cantamos no tema “Transparência”: “De que te vale a transparência, se primeiro cegas; de que te vale ser de vidro, se primeiro quebras; de que te vale a humildade, se primeiro perdes.” Uma alusão a uma altura em que temos a troika e que nos exigem uma suposta transparência, mas para o nosso mal.
Ouvi-vos antes de Sines no Mexefest, em novembro de 2017, e as músicas pareceram-me diferentes, mais rock.
Lucas – Depende do ambiente. Nós aqui tocamos para gente que estava sentada. Na Casa do Alentejo as pessoas estavam de pé, a nossa abordagem às músicas tinha de ser mais forte e imediata, até porque é um festival de música alternativa, mais rock e hip hop. Acresce que tocámos com outro baterista. O Gonçalo Santos tem uma abordagem diferente, mais marcada. O nosso baterista de hoje é um grande percussionista. Adoro tocar com os dois, mas torna-se diferente. Nós gostamos de tocar em sítios diferentes. No outro dia tocámos numa igreja dos Açores, em trio, e foi excelente.
Carlos Medeiros, há quantos anos é que canta?
Medeiros – Desde jovem.
O que lhe deu para isso?
Medeiros – Foi qualquer coisa, não sei. Mas as primeiras músicas que eu cantei em público, lembro-me. Estava todo a tremer, tinha aprendido uns acordes no violão, e cantava “Canta camarada, canta, canta que ninguém te afronta” [o hino dos contrabandistas cantado por Zeca Afonso], isso antes do 25 de Abril. Mandaram-me sair para fora do palco, eu pensei que era uma questão política porque eles berravam “tirem este gajo do palco”, mas era só porque estava a cantar muito mal [risos], que falhanço.
Foi a única vez que o público pediu a PIDE (risos). E depois desse falhanço, porque insistiu?
Medeiros – (Risos) Porque fiquei convencido que aquilo era só política, mas foi muito mau (risos). Depois insisti. E fui andando. O percurso normal de um cantor antes do 25 de Abril, cantava músicas do Zeca Afonso e bebia muito, o que ajudava (risos). Depois do 25 de Abril continuei a insistir com música popular e música de intervenção, essas coisas da esquerda: autogestão!
E depois, na ressaca da revolução, como foi?
Medeiros – Mantive-me, era anarquista e dizia para comigo: a luta continua!
Mas com os atentados da FLA [Frente de Libertação dos Açores, organização de extrema-direita que agredia militantes de esquerda e fazia atentados bombistas no chamado Verão Quente, em 1975] como é que era para si?
Medeiros – Complicado. Levei uns sopapos na cara. Ameaçavam que me iam bater. Bebia muito. Bebia mais. Eu não era ninguém, só os mais ativos de esquerda foram expulsos das ilhas. Adotei o lema de beber, beber muito e calar. Aquilo, na altura da FLA, era complicado. Eu tive foi de me calar e bebia por causa do falhanço da revolução, chorávamos todos no ombro uns dos outros (risos). Os revolucionários ficaram tristes, pelo fim do sonho.
E depois da ressaca, como prosseguiu?
Medeiros – Para falar verdade, continuei a beber, deixei foi de cantar. Até que insistiram muito comigo para gravar um disco. E comecei a fazê-lo na brincadeira: tomava uns copos e gravava umas coisas. E depois insistiam. Eu só cantava com os copos. Agora deixei-me disso.
Já não bebe?
Medeiros – Não, e é duro. É a melhor droga que já tomei. Agora não bebo e comecei a cantar. É uma droga do caralho. Aquilo é bom e tem muitas variedades. Agora só canto.