Espanha: estado de emergência constitucional?


A partir de Lisboa há quem, a propósito de Espanha, parafraseie, em formato alargado, Thatcher: “Gosto tanto da Alemanha que prefiro que haja duas”


A partir de Lisboa há quem, a propósito de Espanha, parafraseie, em formato alargado, Thatcher: “Gosto tanto da Alemanha que prefiro que haja duas.” A realidade ajuda. Logo a Constituição de 1978 consagra no preâmbulo vários “povos de Espanha” e, já no artigo 2.o, “o direito à autonomia das nacionalidades e regiões” que integram a nação espanhola. O texto constitucional regulou a possibilidade de criação de comunidades autónomas dotadas de poderes significativos, reservando para o Estado as competências em matéria de relações externas, defesa, justiça, pauta aduaneira, legislação com carácter uniforme ou garantindo a igualdade entre cidadãos. Ainda que com excessos em matéria de corrupção e de endividamento, o regime das autonomias deu boas provas em quase 40 anos de democracia.

Mas a Espanha que alberga várias Espanhas tem pelo menos um foco crítico da solução constitucional. O governo catalão tem agendado para 1 de Outubro um referendo sobre a independência. A questão colocada é um exemplo de escola de uma pergunta tendenciosa: “Quer que a Catalunha seja um Estado independente em forma de República?”. Apela ao voluntarismo (“quer”) e mistura a memória da República suprimida pela ditadura franquista com o menos bom momento da monarquia que levou à abdicação por parte de Juan Carlos. De caminho, o referendo é inadmissível à luz da Constituição e faculta ao governo de Rajoy a invocação do artigo 155.o, um regime de excepção constitucional que permite impor, pela força, o cumprimento da Constituição e das leis que sejam desrespeitadas pela comunidade autónoma ou “defender o interesse geral de Espanha”.

A transição para um Estado federal foi já aprovada pelo PSOE no congresso de Junho, ainda que os termos do contrato federal (basicamente quem paga e quem recebe…) estejam por definir. Tal permite jogos florais que mostram que o caminho a percorrer, mesmo no PSOE, é ainda longo: a Andaluzia quer “um modelo federal cooperativo”, Valência reivindica um “federalismo assimétrico” e as Baleares desejam “uma federação de ilhas”.

Está em curso uma intensa negociação entre PP e PSOE para encontrar um modelo federal comum que seja suficientemente atraente para evitar que uma maioria de catalães opte pela secessão. PP e PSOE continuam a opor–se ao referendo catalão e acenam, para desgosto das restantes comunidades autónomas, com a possibilidade de a dívida catalã ser perdoada no todo ou em parte. O pacto federal visa retomar a posição hegemónica no sistema partidário, deixando de fora os novos concorrentes, Podemos e Ciudadanos.

Se os independentistas catalães se deixarem retratar como radicais que recusam uma proposta de Estado federal, acompanhada de uma benesse financeira, há reais possibilidades de, à semelhança do que aconteceu na Escócia, perderem, ainda que pela margem mínima, o referendo. E se tal acontecer, a questão independentista ficará arrumada durante longos anos.

Mas se Madrid invocar o artigo 155.o e actuar com mão pesada ao abrigo do estado de excepção constitucional, suprimindo aspectos essenciais do regime autonómico, haverá uma maioria de catalães que se sentirão atacados e votarão sim no dia 1 de Outubro.

Uma Espanha distraída pela negociação do pacto federal não é um parceiro ideal no seio da União Europeia. Uma Espanha frágil e dividida não está em condições de fazer propostas credíveis ou de reagir a propostas alheias. Realizadas a 24 de Setembro as eleições na Alemanha, seria bom que Espanha conseguisse rearrumar as várias Espanhas e participar no novo concerto europeu.

 

Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990